CAP. 1
O NOVO CENÁRIO
Kirkwall nunca mais se esqueceu do que aconteceu há um ano atrás. Um Ferelden chegara à cidade, crescera fazendo fortuna, tornara-se o seu primeiro e único Campeão e acabou liderando os magos contra os Templários numa guerra que partiu a cidade ao meio. A imagem da Comandante Meredith transformada em uma estátua de lírio vermelho depois de chegar ao ápice de sua loucura marcou a vitória de Hawke.
Os Templários recuaram, os magos sobreviveram e o Campeão fugiu. Nunca mais foi visto.
Agora o acontecimento se tornara lenda escutada em toda Thedas e descrita em Contos do Campeão, uma prova de que os Templários podiam ser desafiados. Conflitos em todos os cantos foram cada vez mais frequentes. Todos os Círculos foram se desfazendo, a Chantria perdeu o controle e os Templários debandaram sem rumo. Uma grande guerra entre magos e Templários devastou o Sul. Em uma última tentativa de alcançar a paz, a Divina Justina V convocou o Conclave e chamou os líderes e os principais integrantes de cada grupo para chegarem a um acordo. Entretanto, uma enorme explosão atingiu o Templo das Cinzas Sagradas matando todos no local. Um rasgo no véu chamado de "A Brecha" surgiu no céu, criando várias fissuras que permitiu a invasão de demônios em uma Thedas desprotegida.
Enquanto isso, Orlais sofria uma guerra civil e os Guardiões de Adamant desapareceram.
Foi nesse cenário que a Inquisição foi instaurada, encabeçada até agora por um elfo mago titulado como o Arauto de Andraste.
Andraste usar um mago como seu arauto era uma ideia inaceitável para a Chantria.
Hawke
A boa notícia é que os Investigadores e todo o resto da cambada desistiram de lhe procurar. A má é que terei que ficar por aqui por causa do buraco no céu. Lavellan está sendo chamado de Arauto de Andraste e precisa de toda a ajuda possível pra consertar essa merda. Pra mim é uma boa chance de compensar os erros do Loirinho, ainda me sinto responsável pelo que ele fez. Não. Você não precisa vir. Continue escondido. Esse mundo está louco e você não só tem o dom de se meter em problemas como está com um elfo que tem o dom de lhe trazer mais problemas. Se você não atraiu toda a ira de Thedas pra cima de vocês é porque Orlais está em guerra e tem um buraco no céu jogando demônios por toda a parte.
Mande a resposta pro endereço do Bodhan. Rouxinol sabe de tudo, até da hora que eu vou ao banheiro. Ela está começando a desconfiar da Elda.
Bianca manda lembranças.
Varric
_ É muito estranho. _ Hawke se encostou na borda do navio cheio de peixe que saía de Val Royeaux _ Se eles não estão mais se focando em mim, por que Varric está tão preocupado?
_ Ele tem motivos. _ Fenris debruçou-se ao lado do mago.
Durante um ano, Fenris e Hawke passaram suas vidas trabalhando para grupos de resistência, maioria das vezes liderados por escravos foragidos. Moraram três meses em Antiva, onde trabalharam como bardos mascarados depois que o elfo descobriu que em algum momento de sua vida aprendera a tocar alaúde (Ele tentou ensinar Hawke a tocar, mas chegou à conclusão que como músico ele era um excelente mago). Graças a Fenryel e sua mentora, Maevaris Tilani, conseguiram morar alguns meses em Tevinter, protegendo a magistrada dos conspiradores e também investigando os abusos contra os escravos e as manobras políticas. Depois de saberem que uma organização de traficantes havia partido para o Sul, os dois se mudaram para Orlais - onde as máscaras não se restringiam aos bardos - e passaram a morar num apartamento em Val Royeaux.
O elfo escolhera abandonar a velha armadura de escravo nos últimos meses e tentava se acostumar com isso. A armadura atual era verde e marrom com detalhes em couro, consistindo em couraça, grebas e manoplas deixando os dedos das mãos e dos pés de fora (Fenris sempre odiou luvas e sapatos). No quadril, porta armas de couro de bronto, e no pulso direito, como sempre, o lenço vermelho.
_ Toda a atenção se voltou pra essa Inquisição. _ Hawke argumentou. _ Não tem mais sentido eu continuar me escondendo.
_ Não significa que a Inquisição deva saber do seu paradeiro. Só vai lhe trazer problemas.
_ Devo reler a parte do "elfo que tem o dom de trazer problemas"?
_ Eu vou ouvir isso para o resto da vida? _ Rosnou _ Sim, você ajudou todo o seu círculo social com os problemas deles, inclusive a mim. Mas pense. Uma cidade inteira dependia de você sem motivo algum. O que acha que a Inquisição faria se lhe encontrasse?
Hawke pareceu surpreso. Não tinha pensado nisso.
_ Iriam querer que você fizesse alguma mágica para consertar as coisas, mesmo que sua vida dependa disso. _ O guerreiro arrematou _ Eles protegerão esse Arauto como se as vidas deles dependessem disso, mas você... Eles não vão ligar pra você.
Fenris olhou para o céu. Os ventos marítimos estavam demasiadamente fracos, fazendo a embarcação navegar mais lentamente. De onde estavam a Brecha era apenas um ponto longíquo iluminando as nuvens. Era fácil ignorá-la naquela distância depois de duas garrafas de cerveja barata. Nem parecia a responsável por tantos problemas.
_ Magia. _ O elfo resmungou entre os dentes _ É sempre magia.
_ Achei que ia dizer "magos".
O elfo deixou escapar um muxoxo melancólico antes de se desencostar da borda do navio e tocar a face do namorado. Se os magos de Tevinter foram os responsáveis pelas feridas de seu corpo e alma, Hawke havia sido o bálsamo a fechá-las. Não somente como o amigo que ele jamais achou que conheceria um dia, mas também por sentir um amor tão grande por ele que decidiu se tornar seu fiel protetor.
_ Você abusa da sorte, Hawke... Meu medo é que um dia ela se acabe.
O mago colocou a mão sobre a que lhe tocava o rosto e sorriu com carinho.
_ Não preciso de sorte. Eu tenho um belo e habilidoso elfo pra me proteger.
Fenris riu sem querer:
_ Amarrar você no pé da cama pra impedi-lo de se meter em encrencas conta como proteção?
_ Ahn... Não. Mas podemos achar outra utilidade pra essa ideia. _ Segurou-lhe a mão e beijou-lhe os nós dos dedos _ Está bem. Vamos fazer do jeito de Varric. Ainda temos que encontrar o Guardião mesmo.
_ Aquele que falou sobre o seu irmão?
_ Esse mesmo. Se ele estiver falando a verdade, Carver está em perigo.
"Espero que Aveline tenha conseguido levá-lo para longe daquela fortaleza."
Carver corria pelas Fronteiras Livres com Aveline quando um terror brotou na frente deles e desferiu um golpe tão forte que fez um estrago no escudo da Capitã da Guarda. Aveline foi empurrada para trás pela figura monstruosa, esguia e barulhenta, e Carver saltou para desferir um ataque de espada na cabeça da criatura. Um guincho estridente foi soltado e o oponente desapareceu.
_ Outro terror. _ Aveline guardava a espada e o escudo. _ Isso não acaba nunca.
_ Essas coisas são piores que abominações. Ainda bem que esse era mais fraco.
_ Não acho que era. Alguma coisa o feriu antes de nós o encontrarmos.
Carver guardou a espada e seguiu em frente:
_ Apóstatas, Templários, Demônios... O caminho até Kirkwall vai ser longo.
_ Se pudéssemos voltar pela trilha que eu vim nós voltaríamos, mas aquela fissura apareceu do nada e... Hn?
A mulher parou de andar. Carver fez o mesmo. Havia um corpo há poucos metros deles, perto de uma grande rocha, estirado na terra manchada de sangue e com um cajado ao alcance das mãos. Cabelos longos, loiros e maltratados, barba espessa e mal feita, pele danificada pelo tempo.
_ Agora sabemos o que feriu aquilo. Um mago. _ Aveline concluiu.
Ela andou até o corpo sendo seguida pelo rapaz. Quando se aproximou do homem caído, se agachou para analisá-lo e seus olhos se arregalaram com o resultado:
_ Espere... Esse é Anders?
_ Que?!
_ Criador... Ele está respirando.
Carver agachou-se perto dela e o sacudiu o mago:
_ Anders. Hei, Anders!
Nenhuma reação. Aveline pegou uma das poções da bolsa e passou para o Guardião. Carver abriu a tampa com os dentes e derramou parte do líquido na fenda formada pelos lábios de Anders, que imediatamente tossiu, contraiu as pálpebras e abriu os olhos bastante desnorteado.
_ Não... Fique longe... Não há o que temer... _ Fechou os olhos e desmaiou novamente.
Aveline sacudiu a cabeça:
_ Pobre homem. Deve ter finalmente enlouquecido.
_ Deve estar cansado, não louco.
Carver entregou a própria espada para Aveline e jogou o corpo do mago por cima do ombro. Os olhos da capitã foram ficando mais abertos e sua boca mais contraída na medida que ela via o Guardião pegar o cajado com a mão livre e se levantar.
_ Carver... Você não está pensando em levá-lo para Kirkwall, certo?
_ Não. Mas não posso deixá-lo aqui. Eu devo a minha vida a esse patife.
_ Se Sebastian nos encontrar, que o Criador tenha pena de nossas almas.
Kirkwall.
Como a Guarda da Cidade esqueceu de fechar os portões da Elferia, Merrill pediu que os elfos fechassem. Sem Templários e com um Visconde provisório, cuja autoridade era sempre questionada, os elfos se encontravam cada vez mais abandonados e começavam a tomar suas próprias iniciativas. Muitos sempre contavam com a ajuda da maga de sangue, a quem tinham sincero respeito ou, no mínimo, extrema cautela.
O dia tinha sido cansativo para Merrill. Uma horda de demônios invadira a cidade pela Costa Ferida e deixara muitos elfos debilitados. Aveline estava ausente e Varric estava em Refúgio, sendo a elfa a única pessoa com habilidades suficientes para impedir a invasão. Sem Círculos e sem Ordem, magas como ela eram - no mínimo - um mal necessário.
Orana a ajudava a cuidar dos elfos na maior parte de seu tempo. Ela tinha noções de primeiros socorros e sabia receitas paliativas básicas. Além disso, sempre usava as moedas que recebia de Hawke para comprar donativos, o que era de grande ajuda para Merrill. Os curandeiros estavam cada vez mais escassos e não tinha ninguém que fizesse a caridade de Anders.
Mas os trabalhos de Merrill não se resumiam à Elferia. Havia um segredo com ela, que jamais deveria ser compartilhado com qualquer um que tivesse medo da magia. As únicas pessoas que a elfa esperava que a ouvissem sem julgar estavam longe dali. Uma era Isabela e a outra Hawke.
Seu eluvian finalmente mostrara a verdadeira natureza.
Merrill tinha descoberto que era possível passar por ele. Isso aconteceu em um dia que uma elfa conseguiu atravessar o seu por dentro: Briala.
_ Eu não perguntei. Como conseguiu restaurar o seu? _ Questinou Briala na sua segunda visita. Estava bem mais receptiva que da primeira vez em que se encontraram, quando uma luta havia sido travada e a magia de sangue de Merrill garantiu a vitória fácil da dalishiana.
Um feito que interessou bastante a embaixadora.
_ Um demônio me ajudou. _ Merrill respondeu.
_ E você diz isso com toda essa naturalidade? Eu sabia que você era especial, mas você consegue se superar.
A maga sorriu timidamente e serviu mais chá. Em seguida sentou-se na poltrona à frente da visitante:
_ Como você faz pra atravessar meu eluvian? O que tem do outro lado?
_ Um demônio chamado Imshael deu uma chave de acesso para a Imperatriz Celene. Agora a chave pertence a mim. _ Respondeu com orgulho _ O que tem lá é um mundo que pertence apenas a nós, elfos.
_ Eu... Poderia vê-lo?
_ É sobre isso que vim falar com você. Uma maga de sangue seria bem útil para lutar pelo nosso povo.
_ Oh. Na verdade eu estava pensando em investigar esse lugar. Sabe... Isso pode contribuir muito para a nossa história. Nossos idiomas, nossos deuses... Tudo foi perdido.
_ Nosso povo não tem tempo para histórias. Você viu o que acontece ao seu redor. Os elfos são humilhados e tratados como escravos. Eu não posso consertar tudo, mas podemos começar com Orlais. Gaspard e Celene podem cair a qualquer momento.
Merrill baixou a cabeça em silêncio. Um sinal para Briala de que aquilo não seria suficiente para convencê-la.
A embaixadora mudou a estratégia:
_ Vamos fazer o seguinte. Você me ajuda a derrubar os líderes de Orlais e em troca eu lhe deixo explorar tudo o que o eluvian tem a oferecer.
Merrill escutou com mais atenção.
A noite havia chegado.
Anders abriu os olhos repentinamente, sentindo o corpo tremer. O farfalhar da fogueira chegara aos seus ouvidos e seu corpo estava dentro de um saco de dormir. Ao seu lado tinha um cantil com água e uma cesta de frutas e pães com pedaços arrancados. Aveline descansava num saco de dormir e Carver cochilava sentado aos pés de uma árvore. Eles o haviam resgatado.
Sabia que tinha tido um pesadelo, mas agora não se lembrava de nada.
Sentou-se rapidamente e começou a comer o pão em grandes mordidas. Estava faminto - lembrou-se - a ponto de perder uma luta por fome, sede e cansaço. O buraco no céu fora obra de um mago e a guerra entre magos e Templários deixara todos hostis com qualquer um que portasse um cajado, mesmo os curandeiros. Para completar, a notícia do que Anders tinha feito à Elthina tinha sido espalhada por Sebastian e agora todos os religiosos que o reconheceram tentaram entregá-lo para o príncipe. As chances de conseguir abrigo e comida em algum lugar eram quase nulas.
Anders não ligava. Também achava que a solidão era o melhor para ambos os lados.
_ Hei.
O chamado veio de Carver.
_ Deixe para Aveline. Ela também vai acordar com fome.
_ O que fazem aqui? _ Anders arrancava um pedaço de pão com os dentes e o engolia com água _ Os Guardiões estão por perto?
_ Não. Meu irmão pediu para Aveline me manter afastado deles por enquanto. Isso é tudo que precisa saber.
_ Obrigado pela ajuda.
_ Eu lhe devia um favor. _ Fez uma pausa para analisar o estado do apóstata _ Você está uma merda.
O mago deixou a risada fraca escapar, antes de comer as frutas:
_ Estou com sorte por estar vivo.
Aveline mexeu-se dentro do saco de dormir e abriu os olhos. Ao se deparar com Anders desperto ela ganhou um aspecto sisudo:
_ Ah, ele acordou.
_ Acordou. Agora preciso escrever ao meu irmão sobre o paradeiro dele.
_ Carver, não.
_ Ela tem razão. _ Anders concordou com a capitã _ Ele não precisa saber. Hawke… Eu não posso me envolver com Hawke.
_ Não me diga que está tentando esquecê-lo. Sério?
_ Sebastian está espreitando Kirkwall. _ Aveline lançou a indireta para Carver _ A última coisa que a cidade precisa é de uma invasão. Não temos um Visconde oficial e os Templários marcharam sem rumo sabe-se lá para onde. A cidade só pode contar com a própria guarda.
O Guardião ficou em silêncio.
_ Agora pode dormir. _ Disse Aveline _ Eu fico de vigília dessa vez.
_ N-não... Não se preocupe, eu prefiro ficar acordado.
_ Se não dormir não vai ter energia suficiente pra continuar viajando.
_ Eu não quero dormir, Aveline. Se quiser pode ficar acordada comigo.
Anders lançou um olhar desconfiado:
_ É o chamado, não? Você está ouvindo?
Carver perdeu toda a cor. Esse semblante atônito confirmou as suspeitas de Anders:
_ É por isso que está fugindo?
_ N-não! Não sou um covarde como você, mago! _ Negou furioso _ Eu estava pronto para me livrar deles indo para as Estradas Profundas, mas meu irmão... Meu irmão deve ter descoberto isso de alguma forma. Eu falei do chamado para os veteranos, mas eles... Eles disseram que os comandantes estavam discutindo algo.
_ Talvez eles estejam mais preocupados com as fissuras. _ Aveline arriscou _ É uma questão mais importante que deter criaturas sombrias.
_ Mas nós nem sabemos lutar contra demônios! Muito menos fechar aquelas fissuras! Não. Isso está errado.
_ Quando você começou a ouvi-lo?
_ Um pouco antes daquilo aparecer no céu.
Carver olhou para o céu, onde havia uma luz verde por entre as nuvens.
Continua
