Insanidade Mútua
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Presente de aniversário ( muito atrasado) para Ms. Cookie.
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Primeiro vem a fumaça. Depois os olhos rubros. E, só então, a loucura.
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"Quais são suas últimas palavras?"
"Vai pro inferno."
E a arma dispara.
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O caixão está sendo abaixado. Ele não é capaz de acreditar na cena que presencia. Sente vontade de impedir o coveiro de fazer seu trabalho, mas sabe muito bem que não pode fazer isso. Ele é só um idiota tentando ganhar algum dinheiro para sobreviver. Um idiota que nem sabe o que aconteceu. Ele sabe que não deveria ficar muito ali, que sequer deveria ser visto por alguém, mas não se importa. Sente ódio, raiva e desprezo de quem quer que tenha feito isso. Ainda não tem nomes, não sabe nada, mas descobrirá através de seus contatos. As mãos se apertam com força contra o paletó, enquanto vê a terra cobrindo o mogno do caixão. Ele nunca mais sairá de lá outra vez.
Não suporta ver o restante da cena, nem escutar as falsas palavras de bajulação do padre mesmo estando tão longe. Não quer ver o restante da família e também não quer ser visto. Seria problemático. Cansado de acompanhar, simplesmente se retira dali, indo até o carro que o aguarda.
"Para onde, senhor?" O motorista pergunta, ajeitando o espelho da BMW. Ele não quer chamar muita atenção, então resolve que um carro mais simples como este era melhor.
Hao ergue os olhos para Luchist. Eles estão estranhamente rubros, estranhamente mais-assustadores-que-o-normal. "Eu preciso de informações e preciso já."Ele aperta os dedos contra o tecido da calça e o motorista entende o recado. Seu patrão não está para brincadeiras. Não naquele momento.
O desgraçado que fez isso ao seu irmão vai pagar. Seja ele quem for.
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Eles demoram para chegar até o lugar das informações, mas não é por incompetência de Luchist por escolher o caminho errado. Hao pediu, antes, para que ele fosse até uma sorveteria onde costumava estar com o irmão. Ficaram lá durante meia hora e Hao disse apenas seis palavras:
"O meu irmão gostava muito daqui."
De certa forma, Luchist sente pena dele. Hao podia ser uma pessoa forte e digna de causar medo aos outros, mas ainda não passava de um jovem rapaz que, certas vezes, demonstrava algum traço de infantilidade. Luchist não se lembra de muitas destas vezes e aprecia o momento. Vão para o carro sem que Hao diga nada ou toque no sorvete que comprou. Na silhueta da sombra dele, o motorista ainda vê o reflexo do irmão gêmeo de Hao.
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Durante nenhum momento, Hao chora. Nem mesmo quando pede para Luchist deixá-lo sozinho no quarto, derrama alguma lágrima. Talvez considerem-no insensível, mas ele não liga; é verdade. Foi treinado para isso e será assim pelo resto de sua vida. Cobre o rosto com o braço direito e estende uma das mãos para o lado. Um filhote mia e se aproxima lentamente dele, como se perguntasse pelo outro irmão. Hao olha para ele com certa ternura e lhe acaricia os pêlos, cansado demais para pensar no que quer fazer. Sente-se derrotado pela perda do irmão.
Abraça o gato, mas, mesmo assim, as lágrimas se recusam a vir.
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No dia seguinte, sua vida volta ao normal como se nada tivesse acontecido. Luchist diz que ele pode tirar mais dias se quiser, mas Hao se recusa a esperar. Está no escritório antes mesmo de amanhecer e tem ao seu lado uma garrafa térmica de café—vazia. O homem desconfia que ele passou a noite toda ali, mas não comenta nada; Hao está realmente empenhado no que faz.
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Há duas semanas que ele não sai do escritório, mas isso não deixa seu trabalho acumular. Ele lida muito bem com seus problemas pessoais e dá as ordens sem se alterar em nenhum instante. Nem mesmo quando um carregamento de armas foi perdido, ele perdeu a linha de seu raciocínio. Resolveu tudo com muita calma, deixando os pormenores nas mãos de seu homem de maior confiança: Luchist. Este mesmo insiste que ele saia um pouco dali, mas Hao se recusa. Nem mesmo aquelas três belas garotas são capazes de alegrá-lo um pouco. Há olheiras embaixo de seus olhos e ele não come direito desde a morte do irmão. Apenas fica na frente daquele computador, procurando pistas e, vez ou outra, acendendo um cigarro. Luchist notou isso.
"Senhor...desculpe-me a intromissão...mas quando foi que começou a fumar?" Pergunta, não com hesitação, mas com respeito. Luchist não o teme, porque já foi salvo por sua piedade. Hao ergue os olhos em sua direção (rubros, mas eles não são rubros, são castanhos) e o encara. Cinco segundos, Luchist não resiste mais do que isso.
"Eu não sei." Ele responde, voltando ao trabalho.
"Talvez precise sair um pouco, senhor." É apenas uma sugestão, mas Luchist sabe como o humor de Hao Asakura altera-se facilmente. Não se move de onde está e não muda a postura polida. Está pronto para suportar qualquer coisa por seu patrão. O olhar dele não é menos assustador que da primeira vez e Hao o sustenta por mais tempo. Fecha o notebook e se levanta.
"Talvez você tenha razão, Luchist." Ele diz com um tom mais suave, mas não menos sério. "Prepare a minha moto."
"Como queira, senhor." O homem deixa a sala e Hao acende outro cigarro, encarando a fumaça. Quando foi mesmo que começou a fumar?
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É noite e ele está correndo com a moto pelo centro de Tókyo. Mentalmente, ele faz a retrospectiva dos seus últimos dias de trabalho, tomando cuidado para não furar (muitos) faróis. O céu está bonito e estrelado e Hao sabe que seu irmão adoraria ver isso. Mais uma vez, sente ódio.
(Eles são de outra facção da máfia, mas também lidam com assassinos profissionais)
O farol abre e Hao torna a acelerar. As ruas estão bastante movimentadas, mas ele relaciona isso ao horário; segundo o relógio digital que vira na última esquina, eram sete da noite e este é um horário no qual muitas pessoas estão voltando do trabalho.
(Esses assassinos costumam trabalhar sozinhos se aproximando das vítimas para matá-las)
Ele corta o trânsito sem se importar com as buzinas dos carros ou com o tráfego de pedestres que também é muito grande. Acelera mais a moto, como se quisesse chegar rápido a algum lugar que ele não sabe ao certo qual é, mas sabe que vai acabar chegando uma hora ou outra.
(Mas, certas vezes, também podem simplesmente cometer o crime desde que não deixem pistas para trás)
Hao estaciona num calçadão, próximo à praia e começa a caminhar pela areia. Yoh gostava de ir até o fim daquele caminho e subir nas pedras para observar o mar e o céu. É perigoso, mas é muito divertido, nii-san!
(É uma política bastante frívola, mas que deu certo até hoje)
Ninguém costuma ir até lá, muito menos àquela hora. A praia está completamente deserta e tudo o que ele ouve, é o som das ondas quebrando nas rochas. Sua atenção é tragada brevemente pelo movimento hipnotizante das ondas; é difícil vê-las durante a noite, mas Hao consegue distinguir suas silhuetas quase que perfeitamente. Sobe nas pedras e encara o mar.
(Eles não costumam errar)
E a encara.
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É só por um momento. Só por um milésimo de centésimo de segundo que ela o encara por cima do ombro. Só um, só um. E volta a desviar os olhos para o mar. O mar negro, o mar como os olhos dela. Foi só um vislumbre, nada mais do que isso. Hao se aproxima lentamente e senta-se ao seu lado. Não diz nada, não precisa dizer nada. Ela não o olha, porque tem a impressão de conhecê-lo.
Ele também não olha, porque já decorou suas nuances. Ela é loira e tem olhos negros como o mar tragado pela noite. E seus olhos têm o poder das ondas quebrando nas rochas. Ele não precisa saber mais nada sobre ela, pensa. Mas ao mesmo tempo quer saber tudo. Aquele momento é feito pelo silêncio e pelas ondas do mar.
Elas o fazem lembrar constantemente da presença de Yoh e isso é um pouco melancólico. Lembra-se da primeira vez que vieram juntos até ali e não passavam de crianças. Naquela época, tudo ainda era bom. Tudo ainda era divertido. Eles não se afastaram com o tempo, mas Hao deixou de comparecer às reuniões familiares. Ele deixou de ser parte dos Asakura de uma maneira bastante sutil.
(Eu não quero um marginal como você dentro da minha casa, Hao. Não sei com que está metido, mas é bom que não coloque mais os pés aqui. Você nunca foi mesmo uma boa influência para a nossa família.)
Ele suspira, olhando brevemente para o lado. Tira um cigarro do bolso do terno e oferece-o para a mulher sentada ao seu lado. Ela nega com a cabeça e encolhe um pouco os ombros. Está ficando mais frio. Com o zippo recém-comprado, ele acende o cigarro e o traga lentamente. Arde um pouco como respirar ar frio, mas ele não se importa. A fumaça, de certa forma, o acalma e ele se lembra um pouco mais de Yoh. Quase pode ver o seu sorriso desenhado na névoa que se dissipa com um sopro.
(Não faz mal que eles não queiram mais te ver, nii-san. Eu vou continuar te visitando e nós ainda vamos sair juntos para ver as estrelas, né?)
A loira não o encara diretamente, mas ele sente que, poucas vezes, ela desvia os olhos como se quisesse lhe perguntar algo. Alguma coisa que talvez fizesse sentido, ou que talvez não fizesse. Algo muito mínimo que talvez machuque ou não. Ou talvez seja apenas impressão dele. Expira novamente a fumaça e o vento a leva na direção dela.
"Você vai acabar se matando com isso." Ela diz, cobrindo o rosto para afastar-se da fumaça.
"Eu sei." Ele responde, dando de ombros. Talvez seja isso mesmo que eu esteja procurando, ele pensa, mas não diz. Naquele momento, ainda não pode pensar em ser tão egoísta assim. Pensa em seu irmão, seu querido irmãozinho dentro daquele caixão, sem nunca mais poder sorrir. Seu irmão que teve uma bala atravessando seu pulmão e morreu afogado no próprio sangue. Seu irmão. Os olhos brilham e novamente são rubros. Hao não se vira para olhar a mulher, mas sabe que agora ela o encara. Ele aprendeu a lidar bem com esses olhares. "Te incomoda?"
Ela apenas suspira com indiferença, encolhendo-se mais por conta do frio. É indiferente a isso, mas Hao sente que algo em sua presença a incomoda. Não é só impressão, porque ele aprendeu bem a ler o rosto das pessoas, mesmo que elas sejam tão frias. Talvez pudesse estar enganado, porque ela parecia um pouco mais difícil de lidar, mas só um pouco. "Tanto faz." É uma resposta vaga. Hao traga o cigarro uma última vez e joga suas cinzas no mar. Tira o terno e joga sobre os ombros dela; um ato de cavalheirismo.
A loira não agradece e nem ele espera que ela o faça. Ela apenas se encolhe dentro do paletó e estreita um pouco os olhos. Hao não faz idéia do que ela está pensando, mas também não se esforça para adivinhar. Os olhos castanhos (não rubros, mas sim castanhos) nivelam entre uma tonalidade acinzentada, como se tivesse sido tomado pela própria fumaça do cigarro. Ele se lembra mais do que deseja lembrar e aperta os punhos com força.
(Eu o encontrei na rua, tremendo de frio. Será que podemos ficar com ele, nii-san? O nome dele será Matamune!)
A unhas cravam lentamente na pele, mas ele não sente. Aperta com mais força, com mais intensidade. Como se quisesse sentir a dor. Ele se lembra do sorriso largo e da inocência. E se lembra de como seu irmão era desastrado e de como o amava.
"Está sangrando." A voz dela o desperta dos devaneios e Hao olha para as próprias palmas, onde finos filetes ganham forma de fios, escorrendo lentamente, pingando no chão. Os olhos refletem o líquido rubro e ele sorri.
"Acho que lembrei demais." Ele diz, erguendo-se. "Está esfriando."
"É." Ela concorda, erguendo-se também. Os olhos. Dois pontos negros que não temem o rubro. Dois pontos negros que atraem o seu olhar. Ela quer dizer mais algo, mas não diz. Ele também quer dizer, mas é melhor não.
Não se despedem. Apenas vão embora, como os dois estranhos que são.
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Está tudo desenhado em sua mente. Ele traça um mapa do que deve fazer no dia seguinte, já que a noite não parece passar. Matamune está adormecido em seu colo, enquanto ele se ocupa em buscar os nomes. Só não está no escritório porque Luchist insistiu para que descansasse. Ele chegou a cogitar a hipótese, mas não pode ter descanso até que encontre a pessoa que matou o seu irmão. Ele busca por nomes e informações e está disposto a pagar qualquer preço por isso. Ouve o gato ronronar baixinho e acaricia seus pêlos. Por um instante, o felino abre os olhos e o encara. Hao tem a impressão de que ele vai chorar a qualquer momento.
"Não se preocupe, Matamune. Eu vou achar a pessoa que tirou Yoh de nós e ela vai pagar." O gato mia baixinho e roça a cabeça na barriga do rapaz. Ele apenas sorri levemente e volta ao trabalho. Precisa de nomes e sabe que irá consegui-los. Por bem ou por mal.
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Não é muito difícil lidar com esses problemas quando você tem duas coisas: dinheiro e poder. É óbvio que ambas andam lado a lado, como irmãos gêmeos que não podem se separar. E Hao possui os dois. Demorou cerca de três semanas, mas teceu uma teia de informações infalível para chegar até onde queria. Não se importa em travar uma batalha entre as facções da Yakuza, já que eles ousaram a se meter com seu irmão.
Lentamente, ele acende o cigarro e segura o homem pelos cabelos, apoiando o joelho sobre suas costas. Ele está deitado no chão e não suporta mais apanhar. Traga o cigarro e enche os pulmões com aquele doce veneno. "Podemos fazer isso da maneira fácil ou difícil, você que escolhe."
O homem quer responder algo. Quer dizer qualquer coisa para se livrar do olhar ensandecido e assustador de Hao Asakura. Sente que sua espinha vai se partir a qualquer momento enquanto ele puxa seus cabelos para cima. E ouve um trincar. Grita, mas ninguém responde. Está afogado em um mar de sangue e morte, porque é o último sobrevivente. Ele não quer morrer, porque tem uma família para qual voltar e amanhã é o aniversário de sua filhinha, Eliza.
"F-foi uma mulher, é tudo o que eu sei."
Ele não é nada mais que um capacho. Hao suspira e o solta, erguendo-se. O homem sente um enorme alívio e, por um instante, acha que vai sobreviver. Mas ele apenas acha. Um tiro em sua nuca coloca fim à sua patética existência. Em um último momento, ele imagina o urso de pelúcia guardado no armário e sabe que sua filhinha jamais o terá. Morrer é uma sensação de vazio da qualquer ninguém pode fugir e ele ainda tenta se agarrar com força à vida, mas a morte não o deixa escapar. Sente que, aos poucos, o frio vai tomando conta de seu corpo, enquanto as batidas do coração vão ficando mais fracas. Está desesperado e quer gritar, mas apenas um murmúrio borbulhante escapa por seus lábios. Em sua última visão, ela tem olhos rubros e um sorriso de Cheshire.
"Eu não gosto que me façam esperar." Ele joga o cigarro no chão, propositalmente num caminho banhado por gasolina contrabandeada. Começa a caminhar dali enquanto as chamas se aproximam dos barris. Observa, ao longe, tudo explodindo e entra no carro que o aguarda ao lado de fora. Aquilo vai ser mais difícil do que ele pensou.
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É uma mulher, ele pensa consigo mesmo enquanto estaciona a BMW perto do calçadão. Recosta o corpo sobre ela, ao lado de fora e acende outro cigarro. O horizonte é colorido por tons de vermelho alaranjado, enquanto o sol desaparece para dar lugar à noite. Hao fica pensativo, porque tudo isso o faz lembrar de seu irmão—não que seja possível esquecer-se dele, é claro.
Seus pensamentos retrocedem novamente para o passado. Ultimamente, sua vida tem sido assim. Pensar no irmão, viver para encontrar o assassino, destruir a vida desse desgraçado para só então voltar a respirar. Enquanto isso, Hao Asakura aproveita o veneno que lentamente o consome. Hoje as olheiras estão mais profundas e as lembranças estão marcadas em sua alma como cicatrizes que jamais se fecharão.
"O que você tem contra a política do bom ar?"
A ironia desprovida de emoções é o suficiente para que Hao saiba quem é o seu locutor, antes mesmo que tenha o vislumbre de seu rosto ou dos olhos de meia-noite que, com certeza, atrairão sua atenção. Por um ínfimo segundo, quando olha naquela direção, não vê a si mesmo, mas seu irmão refletido no fundo daquele mar negro sem fim.
Seus olhos se estreitam e ele enxerga tudo turvo, como se tivesse sido apanhado por uma sensação de mal-estar que não é passageira. A loira o encara, arqueando as sobrancelhas, quando o vê soltar o cigarro. Ela diz algo, algo, algo...mas tudo fica negro. Tão negro quanto os olhos dela.
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É noite.
Todos os cômodos daquela casa estão cobertos por lençóis de seda branca e a única luz que enxerga é a que escapa através dos vitrais da (igreja?) sala onde se encontra. É a luz da lua que faz tudo se tornar breu e o lugar tem um estranho cheiro de lembranças e poeira de livros antigos.
Levanta-se lentamente do chão e escuta um barulho de incessante goteira. Caminha até uma porta (a única que vê no cômodo) e a abre. Não está trancada (mas por que deveria estar?) e não sente dificuldades para avançar. O lugar é frio e as paredes são banhadas de sangue e desespero. O último vestígio de luz ficou para trás, mas há uma vela ao seu lado que ele não sabe exatamente de onde surgiu.
Medo, ele não sabe muito bem o que é isso, mas talvez esteja começando a descobrir esse sentimento em seu interior. Suas mãos estão trêmulas e os músculos de seu corpo estão enrijecidos, como se cada passo fosse dado dentro de um mar de piche. Não há sinais de que o corredor acabe, mas, ao longe, ele escuta gritos. Aquela voz lhe é estranhamente familiar, mas de quem seria?
Sente a necessidade de correr quando um pulsar incômodo começa em sua têmpora, mas os movimentos são demasiado lentos. Ele corre contra a correnteza de um rio invisível, avançando por aquele corredor eterno, entrando em bifurcações e escutando gargalhadas de seres imaginários.
Os gritos ecoam em sua mente, pedem por sua ajuda, clamam por sua presença. O coração pulsa com força no peito e o ar é tragado de seus pulmões enquanto ele avança por aqueles corredores infinitos e bifurcações intermináveis. As lembranças aparecem na sua frente como se fossem filmes em preto e branco e quanto mais ele avança, mais pesadas suas pernas se tornam.
Por fim, ele enxerga a saída. Alcança a maçaneta fria com a ponta dos dedos e vê o sangue verter através dela. Hesita por um momento, até que reconhece aquela voz: é seu irmão. Abre a porta chamando por ele e o vê de pé, o sangue vertendo de seu peito.
"Por que você não veio me ajudar quando eu te chamei, nii-san? POR QUE VOCÊ NÃO ME AJUDOU?!"
"Yoh..."
"É TUDO CULPA SUA."
O grito se converte em desespero, em dor. Aquele corpo que deveria estar morto avança em sua direção e Hao vê-se imóvel diante do perigo que se aproxima na forma física de seu irmão. Ele quer falar algo, mas a voz está travada em sua garganta. Quer se desculpar, dizer que sente muito, mas então sente as mãos apertarem seu pescoço, tirarem o restante de seu ar. Os olhos de Yoh estão vermelhos, um reflexo de seu próprio olhar.
"Você me matou."
A fumaça começa a envolver tudo e ela tem cheiro de sangue e lembranças ruins.
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Ele desperta com o som do vento acariciando os vidros da janela em uma de suas melodias mais fantasmagóricas. As paredes do quarto são brancas, mas estão totalmente cobertas pelas sombras da noite.
(Olhos negros)
Hao sente uma espécie de aperto no peito, como se estivesse novamente revivendo aquele pesadelo, mas agora dentro de sua própria realidade. Estaria eternamente preso no mundo dos sonhos, condenado a vagar de um pesadelo para o outro sem jamais poder acordar? Finalmente, a visão toma foco e ele se assusta com as cortinas dançando ao som da canção do vento. Já faz tanto tempo que não se assusta dessa maneira, que se sente um completo idiota.
"Parece que enfim abriu os olhos."
Aquela voz novamente. A mesma que havia escutado antes que as chamas negras daquele sonho consumissem sua sanidade lentamente. A mesma voz desprovida de emoções, talhada com gelo, pura e ferrenha, pronta para lhe dilacerar a qualquer momento. Ele ergue o rosto e encontra-se com a escuridão daquele olhar estranhamente pálido.
Sente as palavras secas em sua garganta e leva uma das mãos até o pescoço, sentindo o sabor do sangue. É quase como se alguém realmente tivesse lhe sufocado, lhe tirado o ar lentamente. A loira o encara arqueando as sobrancelhas e se senta na cadeira colocada ao lado da cama. Nota as marcas roxas em seu pescoço e estreita um pouco os olhos. "Eu fiquei fora desta sala por cinco minutos e você conseguiu fazer isso?"
Ele suspira profundamente e senta-se na cama. Passa uma das mãos pelos longos cabelos castanhos e volta a encarar os olhos escuros dela. "Eu tive um pesadelo. Só isso."
"De qualquer forma, vejo que está melhor, senhor Asakura." A loira levanta da cama e estende o café intocado que havia pego para si.
"Obrigado, senhorita...?"
"Anna. Anna Kyoyama." Ela diz, mas o olhar não está preso ao dele. O olhar está focado nas mãos. Nas mãos que seguram as suas.
Há um momento de silêncio que paira no ar exatamente como a fumaça do cigarro que não está aceso naquele momento. O vento ainda acaricia o vidro da janela e as mãos dela são tão frias, ele pensa. Tão frias quanto os olhos que não o encaram, mas não é como se ela estivesse com vergonha disso. Ela apenas parece ter uma reação um pouco diferente do normal. Não cora, não o afasta. Apenas o olha com um misto de curiosidade e indiferença, porque as mãos de Hao Asakura são quentes.
São os olhos. Os olhos que tragam tudo, assim como as ondas do mar. Os olhos que capturam o seu olhar, os olhos que refletem seu irmão, ele próprio, tudo. Os olhos. Hao afasta as mãos lentamente (elas ainda estão quentes), mas não deixa de olhá-la durante nenhum momento. Nem mesmo quando leva o café fumegante aos lábios e dá o primeiro gole.
"Obrigado também por me trazer aqui, Anna." Ele inspira o ar lentamente, sentindo o corpo aquecer-se por conta do café. "Acho que passei muito tempo sem dormir, tem sido uma semana bastante corrida." Sorri ligeiramente.
"Eu compreendo perfeitamente." Responde de maneira bastante polida. "Mas deveria se cuidar melhor, senhor Asakura. Agora que vejo que já está melhor, posso ir para minha casa." Ela ergue-se da cadeira e se vira para deixar o quarto.
"Está de carro?" É uma pergunta simples, talvez automática demais. Nem mesmo ele sabe como chegou ali ou se está de carro, mas nada disso importa.
"Não," Ela o olha por cima do ombro, os olhos negros cintilando, quase escondendo as pupilas também negras, mas Hao as diferencia por muito pouco, por quase nada. "eu vou pegar um táxi."
"Eu te levo." Não é uma pergunta, apenas uma afirmação. Anna o encara, aqueles olhos um pouco castanhos (mas então por que estavam rubros?), um pouco não-castanhos e são os olhos de quem está acostumado a dar ordens, de quem vive disso e para isso.
Talvez ela devesse negar, pensa. Porque aceitar, seria se submeter à vontade dele, mas pensar nisso é um pouco ridículo, um pouco sem sentido. E não faz diferença também. Anna Kyoyama apenas dá de ombros e Hao sorri. E ela vê aquele sorriso, mas é só um vislumbre. Como uma ferida sendo aberta de dentro para fora, sangrando e formando os lábios crispados. Ela não olha muito tempo, porque não quer olhar. E Hao Asakura tem total ciência disso.
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Ela não costuma deixar muitos homens entrarem na sua casa, mas a verdade é que nem está pensando nisso enquanto ele a empurra de encontro à porta do apartamento. É com dificuldade que encontra as chaves e com mais ainda que consegue entrar, sendo empurrada para dentro. Anna pode contar nos dedos quantas vezes fez isso; nos dedos de uma única mão. Isso não significa que lembre de nomes, mas não que importe agora. É difícil pensar quando aqueles lábios quentes correm por seu pescoço.
Anna tenta traçar uma linha imaginária que explique o que está acontecendo agora em sua mente, enquanto Hao apenas se ocupa em empurrá-la até que encoste contra uma parede qualquer. As mãos dele são habilidosas e correm por seu corpo sem pudor algum. Anna sente vontade de dar-lhe um tapa muito forte no rosto, mas as forças lhe faltam quando aquele olhar penetrante a encara e, sem dizer nada, ele a beija. E então ela se lembra da carona.
Tudo deveria ter acabado quando ele estacionou na porta do prédio, mas a conversa dos dois (que conversa? Do que falavam mesmo? Sobre as ações do governo? Sobre a crise mundial? Sobre bares?) era tão interessante que não faria diferença se ele a acompanhasse até a porta do apartamento, correto? Errado. Hao Asakura não é o tipo de homem que te corteja para um jantar de gala. Ele não é romântico, mas, em nenhum momento, isso tira o poder que ele tem de conquistar uma mulher, pensa Anna, enquanto corresponde ao beijo dele com volúpia. Não importa também o que acontecerá depois. Neste momento, ela quer apenas estar com ele e nada mais. É melhor arrepender-se daquilo que fez do que se arrepender pelo que não fez. Esse é o seu lema e ela o seguirá até o fim.
Talvez sejam os olhos castanho-rubros ou a lábia que ele possui. Ela nunca saberá dizer os motivos que a conduziram a deixar que um completo estranho (mas será que era mesmo?) entrasse em sua casa e tirasse, uma a uma, suas peças de roupa, junto, também, com a sua sanidade. Como se fosse algo retirável, um pedaço descartável, ele arrancou-a lentamente dela. E Anna sentiu a razão deixá-la, dando lugar à loucura, mas então por que continuar? Por que não parar, por que, por quê?
Muitas perguntas sem nenhuma resposta aparente. Ela se deixa levar, embriagada pelo veneno das palavras dele. Tantas vezes viu-se no lugar do predador e agora se vê como a própria presa. Ainda está em seu juízo perfeito, mas quer entregar-se a ele mesmo assim. Desejou cada partícula de seu corpo, desde os lábios quentes até a tatuagem (um dragão? Um lobo? Uma cobra? Um demônio?) que dedilhou suavemente com a borda das unhas. Um minuto, uma hora, uma eternidade. Desejou que o tempo parasse para que pudesse contemplá-lo, mas de que adiantaria se ele logo se tornaria um brinquedo quebrado? Desejava-o aquela noite, poderia não desejar mais quando o dia raiasse. Mas também não quis pensar nisso, não quis pensar em mais nada. Apenas entregou-se ao jogo daquele demônio sedutor, esquecendo-se de tudo, a começar pela própria sanidade.
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N/A:
Eu acabei, porra.
Depois de dois meses - talvez até mais - trabalhando nessa fic, eu acabei. Resolvi dividir, porque, bem ficou um pouco maior do que eu imaginava. Mas, tia cookie, saiba que todo o meu afeto por você está nessa fic. Espero que o atraso compense o presente, assim como Nove Sorrisos compensou pra mim.
Como vocês podem ver, o Yoh morre logo no começo da fic e, ironicamente, essa foi a parte igual das nossas fanfics. Transmissão de pensamentos, tia. Mas isso foi necessário, porque tudo gira em torno da morte do Yoh.
Conforme for passando a fic, eu explico o que está acontecendo. Essa parte é bem introdutória e eu resolvi cortar aqui porque..porque a nana disse que fica legal assim 8D
Deixo os agradecimentos pro fim. Por hora...
Reviews para manterem a sua sanidade e os dentes intactos.
