Capítulo 1 - Um Muro de Mil Cores

"Minha pequena Lily,

Sou capaz de ouvir a chuva agora. A água descendo das nuvens me lembra suas lágrimas quando finalmente foi capaz de admitir o quanto me amava. Você é capaz de imaginar o quanto fiquei feliz? Talvez se eu lhe disser que essa felicidade ainda agora, enquanto escrevo-lhe, ecoa por todo meu ser, você seja capaz de compreender.

Agora sinto que posso dizer-lhe a verdade, que você não mais se assustará com ela.

Lembra do nosso primeiro encontro em Hogwarts? Se não, deixe-me refrescar-lhe a memória. Você vestia seu uniforme grifinório e andava distraída pelos corredores, com a cabeça enfiada nos seus malditos livros, quando esbarrou em mim e deixou cair todas as suas coisas. Claro que percebendo minha casa - Sonserina - e o meu ano - sétimo – abaixou-se constrangida para apanhar as próprias coisas, mas, antes que pegasse tudo, eu, maldosamente, a impedi, chutando com a ponta do sapato acidentalmente seu mais precioso livro, poções. Pensei que você fosse uma Weasley traidora do sangue, pobretona. Mas devia ter notado que o tom do cabelo dos Weasley jamais seria tão vivo.

Foi ai que você levantou os olhos para mim, algo que nunca deveria ter feito. Ao contrário do que eu esperava ver, neles não havia uma sombra sequer de raiva, ódio, ou mesmo medo. 'O que havia?', você me perguntaria. 'Nada' eu lhe responderia. Para acrescentar logo depois 'e tudo, ao mesmo tempo'. Você não imagina quantas respostas eles me deram de uma única vez. Disseram-me que você não era uma Weasley. Que não me conhecia. Que não aprovava minha atitude. Que não me aprovava. Mas que apesar de qualquer coisa me amava. Pura e simplesmente porque era tudo que eu precisava e, de algum modo, você sabia. Doeu saber disso em um único olhar e você, minha querida, nem pode imaginar o quanto. Mas o que mais me perturbou, quando você partiu em silêncio depois de apanhar todos os livros, foram as dúvidas que me deixou. Quem era você? Quem era você para me desaprovar? Uma segundanista grifinória com livros demais nas mãos. E, principalmente, de onde vinha todo aquele amor, aquela paixão, compaixão

Pela primeira vez em toda minha vida, fiquei em silêncio na frente de uma grifinória, de uma sangue-ruim. Mas meu silêncio não durou apenas aqueles minutos. Foram horas. Todo o resto do dia para ser mais precisa. Até eu vê-la novamente no café da manhã do dia seguinte. Recordo agora que minhas colegas de quarto chegaram quase ao desespero por causa do meu silêncio, do olhar catatônico que devia ter no rosto. Na manhã seguinte quando cogitavam a possibilidade de que eu tivesse recebido algum feitiço, você entrou no salão comunal. Meu mundo voltou a ficar colorido e com um sorriso olhei para as amigas frívolas que tinha na minha frente dizendo para se acalmarem. 'Eu estou bem', disse, mas sabia que não permaneceria assim por muito tempo. Não até ter a certeza de que o seu olhar, aquele olhar, seria para sempre só meu. Desde aquela época eu já era egoísta, e muito.

Depois desse dia, minha única preocupação foi descobrir uma maneira de me aproximar. Passava vinte vezes ou mais pelo corredor onde havíamos esbarrado antes, com a esperança de que acontecesse novamente, mas você nunca mais realizou aquele caminho. Enquanto andava de um lado a outro no meu dormitório ficava imaginando o que diria se a encontrasse, o que faria. Você obviamente era muito nova para entender a amplitude do meu sentimento, por isso nada mais natural do que ansiar apenas por amizade.

Aos poucos a sondei, descobri mais coisas sobre você através dos outros e dentro de semanas já sabia quanto tempo você passava na biblioteca, quais suas aulas e o horário de cada uma. Fui tão sutil em descobrir tudo isso como apenas uma boa sonserina poderia ser.

Me aproximei lentamente e com pequenos favores fui me tornando sua amiga. Começou com você derrubando a pena e eu apanhando, depois era um livro que eu a ajudava a pegar e no final você recorria a mim para tirar dúvidas da matéria, lembra?

Lembra onde nos encontrávamos sempre? Na mesa, ao lado da janela que dava para uma parede, entre estantes. A mais escura, a mais afastada, a que os casais enamorados ocupariam não fosse uma de nós chegar mais cedo para pegá-la. Você ainda senta lá? Ali não éramos vistas. Era perfeito para mim que não queria dar explicações, motivos por estar andando/ajudando uma grifinória.

Meu mundo costumava ser como a vista através daquela janela. Antes de você aparecer eu só via os uniformes verdes da Sonserina, enxergava apenas os que vinham de uma boa família bruxa. Confesso que no início tive medo de me aproximar, me contaminar com seu sangue, mas percebi que, como qualquer pessoa normal, você não andava sangrando por ai. Depois que começamos a conversar, até o muro que estava na frente (ou atrás) da nossa janela me pareceu mais colorido, mais cheio de tons.

Sempre falávamos de coisas banais. Estudos, uns garotos chatos que a ficavam perturbando e se achavam o máximo, mas eu absorvia cada palavra, simplesmente pelo som da sua voz. Cada olhar, apesar de nenhum nunca mais ter sido como o primeiro, eu nutria esperanças. Aos poucos ia te conhecendo melhor, decorando seus gestos e te preparando para aceitar meu mais simples pedido ao término do ano.

Confesso agora que te manipulei, ou pelo menos tentei, e peço perdão por isso.

Uma chuva fina caia naquela manhã, quando nos despedimos, marcando o fim da primavera e o início do verão. Foi a primeira de muitas despedidas.

Estava parada de pé, encarando a janela, e tentando decorar a parede do outro lado dela, mesmo sabendo que era impossível, porque depois que te conheci nunca mais a vi igual, ela sempre estava diferente, como aquela chuva fina que a molhava e que deixava gotas por toda extensão do vidro, confundindo e atrapalhando minha visão.

Senti seu olhar às minhas costas e me virei. Vê agora como seu olhar era poderoso? Tão forte que eu podia senti-lo. Quantos olhares você consegue sentir? Não falo sentir-se incomodada como quando te encaram. Eu sentia a força e amplitude dos seus olhos mesmo que eles não estivessem fixos em mim.

Virei-me e a observei durante alguns segundos, até que você se voltou para mim. Minha pequena Lily, você tinhas lágrimas nos olhos. Pode imaginar o quanto me senti culpada por isso? Por manchar aquele verde tão puro? Sei que não pode. Mas pode entender o orgulho que acompanhou a culpa. Faltava pouco agora, ou talvez não faltasse nada, talvez você já fosse minha. Mas eu não queria amedrontá-la, você era muito nova ainda, um passo em falso e você sairia correndo assustada (como realmente fez) e não voltaria.

E em um gesto completamente inesperado e impensado, como apenas uma criança seria capaz, você me abraçou. Lembra que fiquei sem reação por alguns segundos? Não era o choque por estar abraçando uma sangue-ruim. Não, isso eu já havia superado há tempos. Era a surpresa por estar sendo abraçada pela pessoa que eu mais amava, de verdade. Agora você me perguntaria 'como "de verdade"?' e eu lhe responderia com um sorriso, o tipo de sorriso que só você consegue arrancar de mim, 'Você já me abraçava todos os dias sem querer, com os olhos.' Mas assim como você, Lily, errou naquele dia em me olhar, errou também nesse em me abraçar. Um abraço foi tudo que bastou para que eu sentisse como me iludia ficando satisfeita apenas com seus olhares. A partir daí eu ansiava por contato, contato físico

Pode entender agora porquê eu, naquele dia, chorei em seus braços? Chorei enquanto você me acalentava, como se soubesse de tudo, como se entendesse tudo. Você, tão mais nova e tão mais madura. Quantos amores havia tido até então? Não me espantaria se você respondesse 'nenhum', mas você certamente se assustaria se eu o dissesse. Você foi meu primeiro amor e provavelmente será o último, porque, posso sentir, não a amo apenas com o coração, este é frívolo e o da maioria das pessoas, pelo que pude perceber, muda de amor a cada mês, mas a amo com a alma, pois essa é imortal e, mesmo que nesta vida tenhamos sido postas em corpos opostos, posso sentir que a morte não será o fim para nós. Desculpe-me, talvez eu a esteja assustando com tudo isso. São coisas que sinto e sentimentos não foram feitos para serem interpretados ou discutidos, mas para serem vividos, como você mesma diz. Pena que a mim tenham ensinado a controlá-los.

Por ter aprendido bem essa lição não a apertei contra meu corpo com todas as forças confessando-lhe meu amor.

Foi então que eu falei, que a fiz prometer-me, e tenho certeza que não fosse por isso o destino, com toda sua crueldade, nos teria separado para sempre. Você me prometeu o mínimo, prometeu-me que escreveria, que responderia pontualmente todas as minhas cartas, não importando o quanto atarefada estivesse.

Só isso foi o que eu pedi. E era o necessário.

Olhei uma última vez para a janela. Havia parado de chover, mas as gotas ainda estavam lá, atrapalhando minha visão. Desisti de decorá-las, mas antes que pudesse me virar vi seu reflexo nela, seus olhos nas minhas costas, era o mesmo olhar daquele primeiro dia, com o qual você nunca mais me havia presenteado. Virei-me rápida, mas era tarde, você encarava a janela. Graças a você, minha pequena Lily, jamais esquecerei a janela que penei tanto para decorar e nem a paisagem do outro lado dela, um muro de mil cores.

Com Carinho,

Narcissa."

O céu trovejava quando Lily saiu do Cabeça de Javali, a respiração desconexa e o olhar catatônico. Pôs as mãos nos joelhos tentando fazer com que seu coração se acalmasse. Os cabelos vermelhos escorregaram pelos ombros e ficaram balançando, apontando para o chão. O pensamento de que Narcissa viesse atrás dela, ou que pudesse encontrar qualquer outra pessoa, a fez correr sob a chuva, que a alcançou gradativamente. Já estava encharcada quando encontrou uma fenda em uma árvore próxima a casa dos monstros, que poderia servi-lhe de abrigo e esconderijo ao mesmo tempo.

Eram tantos os pensamentos os quais atravessavam sua cabeça simultaneamente que nem ao menos havia percebido que todo seu corpo tremia e os nós dos seus dedos estavam arroxeados.

Narcissa, seu anjo de porcelana, havia dito que a amava. A voz com a qual lhe contara isso fora tão doce, como apenas um ser divino seria capaz de possuir, mesmo que revelando uma verdade amarga. Imaginou que a voz do anjo Gabriel deveria ter o mesmo tom ao falar à Virgem.

A Virgem na qual seus pais acreditavam, para quem sua família rezava e que lhe condenaria ao inferno se não ousasse seguir suas convenções. Se recriminou por pensar isso de alguém que, lhe haviam ensinado, era só amor e compreensão. A mulher santa , na qual acreditava, deveria ter passado por sofrimentos também, pois era humana. Se não a perdoasse, haveria ao menos de compreendê-la.

Compreender que não podia negar um sentimento tão forte. O demônio não seria capaz de plantar amor no coração de alguém, logo aquilo tudo só podia vir de Deus. Provavelmente não o mesmo Deus cheio de regras tolas no qual sua mãe acreditava, mas um senhor bondoso, de barba branca que gostava de brincar com o destino e que habitava seus sonhos quando criança.

"Deus nunca lhe dará um fardo maior do que possa carregar." Esse sentimento era uma provação. Se fosse capaz de admiti-lo, estaria apta a passar por qualquer obstáculo que surgisse como conseqüência. Se não, estaria negando aquilo que tinha de mais precioso e, mais importante, estaria negando a alguém o direito de amá-la.

Friccionou os dedos sem perceber, a água pingando das mangas do uniforme. Olhou pela primeira vez para o céu, o qual estava escuro pelo cair da noite e pelas nuvens que camuflavam o brilho da lua. Foi só então que abandonou o estado catatônico, confusa e assombrada ao mesmo tempo.

Todos seus colegas deveriam estar em Hogwarts àquela hora. Ela precisava voltar também, e escrever a Narcissa.

Saiu do esconderijo para a chuva só então notando o quanto estava frio. Expirou forte e percebeu que podia ver o ar dar voltas e desaparecer, se misturando ao ambiente ao deixar sua boca. E dentro de alguns dias seria verão, aquele tempo estava mesmo maluco. Caminhou durante cerca de meia hora no escuro, sob a chuva, até se dar conta de que não fazia idéia de onde estava.

O desespero a invadiu de uma só vez, fazendo lágrimas brotarem de seus olhos. Estava sozinha no meio de uma quase tempestade e perdida. Seus joelhos fraquejaram derrubando-a no chão lamacento. Erguendo os olhos para onde Deus e a Virgem deveriam estar, Lily uniu as palmas das mãos trêmulas e molhadas e rezou pedindo, não para que fosse encontrada ou para encontrar o caminho certo, mas para que fosse feita a vontade deles.

Quando terminou a prece, sentiu mãos macias, como as de Narcissa, tocar-lhe a face e a erguer em um abraço. A imagem a sua frente era de uma beleza surreal, por isso julgou que delirava, até que um hálito quente bafejou-lhe a face devolvendo-lhe a vida.

Narcissa parecia chorar, agarrada a ela murmurava frases desconexas e pedia perdão por falhas não cometidas.

- Se você quiser... se for preciso, prometo, nunca mais repetir aquelas palavras novamente... para que você não, não... para que continue...

Afastando-se apenas o suficiente para que pudesse encarar Narcissa, Lily a silenciou pondo o indicador sobre os lábios dela.

- Cale-se! Quero ouvir você repetir muitas e muitas vezes aquela frase, porque também eu hei de repeti-la para você.

Sem esperar por palavra, colou seus lábios aos dela em um beijo salgado por lágrimas e adocicado pela chuva.