Inspirada nas personagens criadas por J.J. Abrams e equipe , portanto não me pertencem. As histórias são apenas diversão, não têm fins lucrativos.


"Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos."

Heráclito de Éfeso


I.

Ele prestou atenção na desenvoltura com a qual ela sempre entrava na mercearia. A ponta da bengala mal tocava no que a rodeava. Deixou as latas que estava arrumando e foi instintivamente ao seu encontro. Sabia que ela sentiria o seu cheiro antes que ele estivesse ao seu lado. Ela sorriu seu sorriso triste.

-Você nunca me deixa na mão, não é Knight?

A voz. Ele sempre estremecia quando era apanhado desprevenido assim. A esperança de ouvir aquela voz era uma das coisas que o faziam levantar diariamente da cama. Bússola, novelo de lã para guiá-lo pelo labirinto, estrela, fogueira, qualquer coisa que orientava e dava sentido ao que não tinha mais sentido. Procurou manter-se atento ao que deveria ser feito. Conseguiu que voz saísse simpática, porém comedida.

-O que vai querer hoje, Olivia?

-Aveia, leite, um pedaço de queijo gorgonzola e uma garrafa de uísque.

-Como sempre, nada de comida decente?

-Sabe muito bem que cozinha não é o meu forte, Knight.

Ele sabia melhor do que ninguém. Olhou-a com seriedade.

-Qualquer dia vou cozinhar alguma coisa para você, Olivia.

-Por que não hoje? Se não se incomodar em passar a noite de sábado jantando com alguém como eu?

Ele não se incomodava. Aquele era o menor dos problemas. O fato é que não lhe parecia certo. Iniciou uma evasiva prudente.

-Vamos ver. Depende do movimento.

A Senhora Carlson, a proprietária, era uma romântica inveterada, por isso resolveu se intrometer na conversa. Já percebera que a garota causava impacto em seu funcionário.

-Ele vai sim, Olivia. Ele faz uma pasta deliciosa. Vou mandar uma garrafa de Chianti para acompanhar. Peça a ele para fazer seu molho à bolonhesa.

Ele engoliu seco. Gostaria de ficar mais perto dela, mas sabia que não era a coisa certa a fazer. Não era algo totalmente honesto.

-Vou mandar entregar tudo em sua casa.

-Espero você à noite, Knight. A senhora também está convidada Senhora Carlson.

-Obrigada, mas vou ao cinema com Alfred. Não faltará oportunidade.


-Pode ficar aqui, por um tempo. O aluguel está pago por dois meses.

Aquilo foi dito com uma voz impessoal, onde não havia emoção nem comprometimento. Era uma simples informação.

O lugar era pequeno, mal iluminado. A única janela da saleta dava para um beco triste e encardido. Cimento, poeira e uma total ausência de paisagem. Tudo muito silencioso. Havia também um quarto, uma cozinha diminuta e um banheiro antiquado, com azulejos brancos. Tudo era muito limpo, tão limpo que parecia uma acomodação de hospital. A cama era de ferro, assim como a mesinha de cabeceira e o armário. Não havia colcha, só lençóis muito brancos e um travesseiro. Nenhum quadro ou vaso de planta. Nada que revelasse um toque individual. Ele olhou para August, interrogativamente. O outro não pareceu se dar conta. Finalmente perguntou.

-Como vou me manter aqui?

O outro fez uma pausa, parecia estar procurando a informação certa dentro de si.

-Há um trabalho para você. Uma mercearia, bem perto daqui. O endereço está sobre a mesa. Com o tempo poderá conseguir outra coisa. Apresente-se amanhã de manhã, pois o balconista só será demitido hoje à noite.

Eles tinham o irritante conhecimento dos diferentes planos temporais. Aproveitou para tirar uma dúvida que o afligia.

-Pelo que pude perceber, estamos em Boston.

-Sim, é verdade.

-É seguro para as pessoas que eu fique aqui?

-Você passou a não existir nas outras duas realidades. Aqui, porém, você provavelmente não causará dano.

-Provavelmente?

-As variáveis nem sempre permitem a exatidão.

-Devo entender que não há uma versão alternativa de mim neste universo?

-Você está morto.

-E Walter?

-Os alternativos de seus pais estão vivos.

Ele teve o impulso interno de avançar, mas algum pudor o deteve. De qualquer forma, eles não entenderiam.

A porta se abriu. September entrou no recinto. Sua fisionomia mais do que inexpressiva, era dura, distante. Trocou um olhar com August. Em breve eles iriam embora. August notou sua hesitação.

-Mais alguma coisa?

-Como eu morri, por aqui?

-Por que quer saber?

-Tenho medo de cruzar com algum deles na rua. Não quero deixá-los confusos.

-Não é o caso.

-Que nome vou usar?

-Peter Knight. Há uma carteira com documentos e um pouco de dinheiro sobre a mesinha de cabeceira.

September agora o olhava atentamente. Seu olhar era uma broca. Desapiedado, desapegado, mas inesperadamente curioso.

-Quer saber se ela existe aqui, não é?

August voltou a cabeça para ouvir a resposta. Peter surpreendeu-se com a própria reação. Sua voz saiu áspera, quase gutural. A irritação transparecia nas palavras.

-Nenhuma versão dela é ela, entendem? Então não quero saber de nada.

August e September olharam-no atentamente, mas nada disseram. Saíram no mais absoluto silêncio.

O tempo passava lentamente. Para ele, cada dia era a travessia de uma piscina cheia de cimento. Era algo de grudento, pastoso, que parecia se agarrar à sua pele. O tempo antes era água ou vento; agora era lama, lodo. Sentia-se enjaulado, no entanto poderia ir e vir, livremente a qualquer parte daquele universo.

Aparentemente ele não causava problemas. Ele recordava as sinistras florestas de âmbar com pessoas aprisionadas na eternidade. Aprisionadas em algo pior do que a morte. Ele se identificava com elas. Era prisioneiro, mesmo podendo ir a qualquer parte. Ele interagira com a Máquina, e agora estava ali. Tinha tanta sorte que continuava vivo para poder continuar a ser infeliz.

Ele repetia para si mesmo que iria se acostumar. Em algum momento seu corpo aceitaria a ideia de que era para sempre. A resignação era o seu exercício diário. Procurava se aplicar nas tarefas cotidianas. Evitava cuidadosamente as coisas que a evocavam. Mas dentro de si, algo se recusava a aceitar. Esperava o final da semana, para dentro dele esperar uma nova semana. Tudo ali era meio sem gosto, sem textura.


Então ele a viu, pela primeira vez. Ficou chocado. Usava o mesmo cabelo louro, o rosto sem nenhuma pintura, mas as roupas eram diferentes. Vestia uma calça jeans e uma camiseta azul. As roupas eram bem simples e informais.

Algo dentro dele fez com que ele não se limitasse a observá-la. Acompanhou-a pela loja, a uma pequena distância. Ela se orientou razoavelmente naquele espaço desconhecido.

-Posso ajudá-la?

Ela se voltou e ele sentiu o impacto.

O choque de vê-la entrando no lugar medíocre onde trabalhava foi usurpado pela consciência de que ela usava uma bengala dobrável e olhava sem ver. Aqueles olhos verdes, fixos, doeram como um soco no estômago.

Levou alguns instantes para se refazer. Ajudou-a a escolher as mercadorias, depois colocou o pequeno embrulho em seus braços. Ela o segurou com cuidado, como se fosse uma criança de colo.

Ele acompanhou-a até a calçada. Não parecia seguro em deixá-la partir. O cão guia estava amarrado. Ele afagou o pescoço do animal. Era um pastor alemão esplêndido. O cão fechou os olhos, feliz com o carinho. Ele soltou a guia, deu a ponta para ela segurar. Ela agradeceu jovialmente e seguiu confiante pela calçada.

Ele provavelmente estava preparado para resistir a qualquer versão de Olivia Dunham, mas não a uma versão cega.