MAIS UM ANO SE PASSOU

CAPÍTULO 01: JANEIRO

Conforme haviam dito aos seus pais, Sherlock e John marcaram com Harriett um jantar no apartamento para depois virarem o ano num pub. Watson achou que era muita boa vontade do namorado, já que ele não gostava de tanta interação social assim, mas nem falou nada.

Só que durante o jantar, as coisas ficaram um tanto... estranhas.

-Então, vocês tem planos para o ano que vem? - Harry tentou ser simpática.

-Planos?

-Sim. Agora que se assumiram como casal. Casais fazem planos.

-Ah, sim. Planejamos ter um filho juntos.

-Nossa, que rápido! Geralmente as pessoas se casam primeiro, depois planejam filhos.

-Sim, é o usual. Mas a prima do Sherlock vai fazer uma fertilização in vitro para ter o filho dela, então vamos aproveitar que ela se ofereceu para gerar o nosso junto.

A reação da Harriett foi horrível:

-Agora é assim? O Sherlock e sua família é que ditam as regras? Eles decidem a sua vida e você concorda sem reclamar?

-Harry...

-Não, John. Eu sou a sua IRMÃ. Eu posso ser lésbica, mas tenho um útero. Eu poderia gerar um filho para você. Eu tenho ovários, poderia ser sua doadora.

Sherlock rolou os olhos. Suspirou.

-Harry, por favor, menos. Em sã consciência, além dessa explosão de ciúmes e orgulho feminino, você conseguiria mesmo ficar nove meses sóbria para gerar nosso filho? Você se cuidaria, fazendo a dieta adequada para ficar bem e gerar uma criança saudável?

-Sherlock, você está sendo cruel.

-Estou apenas sendo lógico. É óbvio que a nossa primeira escolha, caso minha avó não tivesse se interposto e obrigado praticamente a Wilhelmina a gerar essas duas crianças, seria pedir um óvulo da sua irmã. Mas as coisas não seguiram o rumo habitual de uma família gay comum. Nosso primeiro filho vai ser fruto de uma experiência genética, algo pioneiro no mundo. Um bebê com a carga genética dos dois pais. Se tudo der certo e conseguirmos criar um, quem sabe o próximo não seguiremos o roteiro e pediremos um óvulo seu, cunhada? Mas você precisa não destrui-los no vício.

Harriett engoliu em seco. Só molhou os lábios no vinho e virou o rosto para a janela, fingindo total interesse nas luzes lá fora. John sentiu pena dela, mas apesar da crueza das palavras e da crueldade intrinseca a elas, Sherlock estava dando uma meta de vida para sua irmã.

Eles foram ao pub depois, brindar com os amigos, mas o clima festivo tinha esfriado um pouco.

O aniversário de Sherlock se passou sem que Wilhelmina desse notícias. John ficou meio ansioso, mas Sherlock descartou quaisquer chances dela engravidar em Janeiro:

-Se ninguém nos avisou nada até agora, os embriões não vingaram. E se na próxima nada acontecer, talvez não seja totalmente culpa de Yoshihiro que eles não tenham tido filhos ainda.

-Talvez seja toda essa ansiedade atrapalhando...

-Se Wilhelmina não conseguir manter os bebês, pode ter certeza que haverá uma revolução dentro do clã, qualquer mulher em idade de procriar sendo requisitada para abrigar nosso filho. Depois que a possibilidade surgiu, Ronald não vai dormir enquanto não torná-la real.

John riu:

-Wilhelmina tem razão nesse ponto: era pra ser uma gestação, não um filme de ficção científica...

-Você está falando de sentimentos? Oras, Watson, é o bebê mais desejado de toda uma família, a ponto de colocar até as novas gerações de prontidão para gestá-lo. Quer mais ainda?

-Vendo por esse ângulo, não. - John beijou o topo da cabeça de Sherlock. - Alguma coisa interessante no jornal?

-Este anúncio... Alguém está procurando um ganso branco de rabo preto para comprar.

-E o que tem de mais?

-O período natalino já passou. Por que alguém assaria um ganso no mês de Janeiro?

-Porque as pessoas gostam de experimentar receitas novas independente da data? E como você sabe que a pessoa está procurando um ganso pra assar?

-Porque não posso compreender que alguém em plena Londres esteja procurando um ganso para ser pet de apartamento. - Sherlock deu um olhar cético e John riu.

-Bem, realmente... não! Mas por que tem que ser um branco com o rabo preto?

-Geralmente essas cores tem um grande apelo entre as religiões primitivas e as não cristãs, mas nunca ouvi falar de uma que usasse GANSOS.

-Até eu estou ficando curioso... mas o número não é da City...

-Não. É de Salisbury, o que é mais intrigante. Porque alguém de Salisbury procuraria até em Londres esse ganso? O que ele tem de especial?

-Talvez seja como o das histórias infantis. Ele ponha ovos de ouro! - Watson riu, mas Sherlock ficou olhando pra ele com um olhar de admiração.

-Por isso que eu te amo.

-Oh, obrigado. Mas o que eu fiz dessa vez?

-Você colocou as engrenagens que estavam enroscadas para girar, John, só isso! - Sherlock começou a procurar por restaurantes e números de telefone. - Alô? Bom dia, eu gostaria de saber se vocês servem ganso no cardápio normalmente. Não? Sim, eu sei que o período natalino já passou, mas tenho uma esposa grávida com vontade. Tem alguma sugestão? Oh, muitíssimo obrigado. Vou ligar para eles. - Sherlock piscou para o Watson e fez a próxima ligação, contando a mesma história. Até que o terceiro restaurante confirmou que sim, teriam ganso para o jantar.

-Para o jantar?

-Sim. Compramos os animais, matamos, limpamos e marinamos aqui mesmo, com todo o cuidado e higienização. Nosso patrão não confia nos frigoríficos e prefere supervisionar o trabalho todo. Os gansos chegaram ontem à noite, já estamos limpando, à noite teremos as carnes preparadas, o senhor poderá trazer sua esposa.

-Muitíssimo obrigado. - Sherlock ria ao desligar. - Muito bem, esposa grávida, os animais estão abatidos e eles estão limpando. Pegue sua jaqueta e vamos lá pegar os miúdos.

-Pegar os miúdos. Tá falando sério?

-E eu sou pessoa de contar piada, John? - Sherlock amarrou o cachecol e colocou o sobretudo. - Vamos resolver um caso de desaparecimento de joias.

John nem se importou em fazer cara de perdido. No restaurante, Sherlock se identificou e pediu para conversar com o dono.

-Boa tarde, senhor Holmes. Sim, conheço o senhor e sua fama. Espero que não haja nenhum corpo no meu freezer.

-Bem, senhor, também espero. O motivo que nos traz aqui hoje é outro. Tive boas recomendações do seu restaurante, que vocês compram as aves, matam, limpam e marinam aqui mesmo.

-Sim! Tudo é feito num local próprio, à parte da cozinha, muito bem esterilizado.

-Eu poderia examinar os gansos que vocês preparam hoje?

-Por favor. Pretende jantar aqui?

-Sim.

Os três homens se viram frente a cinco gansos recém abatidos, marinando na cozinha.

-Adoro esse cheiro de tempero. As entranhas estão aqui também?

-Estão nesse compartimento à parte. Quer examiná-las?

-Não notou nada estranho nelas?

-Não.

Sherlock examinou os miúdos dos gansos com nervosismo. Ele não podia ter errado. As pistas levavam a isso.

-O senhor só recebeu esses cinco gansos?

-Vou lhe contar porque o senhor iria descobrir de qualquer jeito, senhor Holmes. Mas não. Encomendamos seis, mas o sexto chegou quase morto. Nem tratamos dele, temos uma reputação a zelar. Já mandei suspender a compra com essa granja, onde já se viu, nos enviar um animal naquele estado?

-E como era esse animal?

-Era um ganso até bonito, branco com o rabo preto...

John sentiu um arrepio descer pela espinha.

-Ele morreu, chegou a ser jogado fora?

-Um dos empregados da cozinha se ofereceu para levá-lo. O ganso estava em um estado deplorável, com os olhos vidrados e o ventre entumescido.

-Desgraçados! - John e o dono do restaurante se viraram para Sherlock, que parecia muito irritado – Como ousam maltratar um animal que não tinha nada a ver com isso? Posso falar com esse seu empregado?

-Ele saiu e ainda não voltou...

-Tem o endereço dele?

Logo estavam os dois num táxi e John ardendo de curiosidade. Mas se ele conhecia o namorado, ele estava em intensa atividade mental e não ia responder suas perguntas. Então tentou unir as peças que tinha em mãos. Seu comentário sobre o ganso botar ovos de ouro, Sherlock procurar o ganso, o ganso estar doente e uma pessoa se oferecer para tratar dele. Essa pessoa ia curar a doença do ganso ou ia matá-lo? Tudo para manter a reputação do restaurante ou por motivos próprios e escusos?

-Estou confuso. - John confessou após um tempo. - Nada disso está fazendo muito sentido...

Mas antes que Sherlock abrisse a boca, o telefone dele acusou recebimento de mensagem.

-Ótimo! Lestrade já vem vindo com o mandado e o ladrão.

-Ladrão? O ganso foi roubado?

-Não, o ganso foi vendido para ser comido. O que está nas entranhas do ganso é que foi roubado. HAH! Espera, John, que eu conto de uma vez. Chegamos. Vamos subir para o elemento não escapar.

Sherlock abriu a porta com uma gazua, bem devagar. Conforme eles foram adentrando pelo apartamento, foram sentindo um cheiro forte de...

-Argh! - John colocou o braço em frente ao rosto – que cheiro horrivel é esse?

-O motivo pelo qual você não deve criar aves de médio e grande porte em apartamentos pequenos: fezes ácidas. Aqui, ponha essa máscara, nosso suspeito deve estar abrindo o ganso agora, por isso o cheiro só vai piorar.

Ao chegarem à cozinha, o cheiro estava insuportável. Sherlock engatilhou a arma que levava e anunciou:

-Rudolf , por favor, se afaste desse ganso. Por Deus, eu poderia atirar em você só por torturar um pobre animal até a morte desse jeito.

-Quem é você? Como entrou aqui?

-Seu ex-patrão me deu o endereço, achando que você é o cara legal que salvou a empresa de um escândalo, evitando que eles servissem um animal doente. Mal sabe ele que o animal estava adoecido por conta da ganância e sadismo de humanos. Como você descobriu o truque do ganso?

-Eu vi o prolapso na cloaca e imaginei que fosse utilizado como mula de drogas. Mas não é droga, não é?

-Não. Bem vindo, Lestrade.

-PUTA MERDA, Sherlock! Mas que porra é essa, que cheiro maldito é esse?

-Lestrade, se recomponha. É o cheiro das entranhas de um ganso torturado uns três dias. John, se você não for vomitar ainda, por favor, abra a trouxinha que estava dentro do ganso.

-Ok, vou ficar com esse cheiro no nariz uma semana... OH! Sherlock, mas... você é fenomenal!

-Obrigado, querido. Mas sem o seu comentário eu nunca ia ligar o roubo da safira da vocalista da banda Sapphire ao ganso. - Sherlock ergueu a corrente de ouro com o engate da pedra, admirou, depois entregou ao inspetor Lestrade. - Espero que os vegetarianos e as associações protetoras dos animais despedacem esses caras. Venha, John, vamos andar para absorver ar puro.

Enquanto caminhavam, aproveitando o ar limpo e frio do dia de Janeiro sem neve, trocavam ideias.

-Tá, sim, eu li que a banda Sapphire foi tocar num festival em Stonehenge, mas a joia da vocalista foi roubada. Como ela foi parar no ganso?

-O ladrão, que com certeza tem uma certa experiência em tráfico de drogas, colocou no saquinho e fez a gansa engolir.

-Gansa?

-Sim. Lembre-se que o ajudante da cozinha disse que viu o prolapso da cloaca. Esse é um sintoma típico de fêmeas após botar ovos. O ladrão da jóia era da granja e sabia disso. Ele amarrou o prolapso para evitar que a gansa defecasse até ele ter tempo de tirar a joia em segurança.

-Mas alguém separou a fêmea para a venda...

-Vai saber qual golpe de azar foi esse. Ou ele não colocou ela no cercado certo... Mas o animal sofreu pelo menos um dia e meio.

-Por isso a recompensa era alta. Ele queria achar rápido antes que a gansa agonizasse. Não entendo de veterinária, mas os registros médicos sobre oclusão intestinal acusam a volta das fezes pelo sistemas digestivo. Se a gansa vomitasse as próprias fezes...

-Com certeza, vomitaria a trouxinha e o produto do roubo se perderia. Bem, bem, acho que você não vai querer jantar ganso hoje, não é mesmo?

-Não, Sherlock. Sua esposa grávida dispensa carne. Acho que uma massa do Ângelo vai cair melhor no estômago sensível dela.

Rindo, tomaram um táxi até o restaurante.

N/A: De volta, começando com um caso. No livro, o caso do ganso é mais simples, mas rendeu muita discussão na época, pra saber se era possível esconder uma joia no papo de um ganso ou não, as pessoas ficaram malucas retrucando se o animal tinha papo mesmo. Imagine se fosse hoje, com a internet facilitando as discussões. Conan Doyle ia parar de escrever. Aguardem, que vamos acompanhar os Holmes e a gravidez da Wilhelmina mês a mês. 03/05/2015.