O Rei Prostrará a Promess{e}a Perdida
Ivi Kato Inoquehda se arrumava, o que viria não seria fácil. Havia sido chamada às pressas no hospital. Não era sua hora de plantão. Por que será que estava sendo requisitada naquele horário?
Vestiu um suéter de frio. Já era tarde da noite. Só de pensar no que estava por vir, tinha um arrepio em seu corpo. Ivi era uma profissional exemplar na área da saúde. Sempre procurava fazer o correto, o certo para os demais, embora algumas coisas estivessem lhe incomodando ultimamente.
Ela não era como as outras mulheres. Ela era só ela e ao mesmo tempo carregava a força e a voz de tantas outras em sua jornada. Quando assumia um relacionamento, por exemplo, se dedicava de corpo e alma para aquilo. Não pensava em diversificar suas experiências no território amoroso, pois sempre pensou em construir um sentimento sólido e que perseverasse para a vida toda. Mesmo sendo ímpar em suas características como mulher, ela sempre procurava fortalecer as figuras femininas que encontrava em seu caminho, as quais também eram preciosas à sua maneira. Ao fazer isso, Ivi queria dizer que elas não estavam sozinhas em sua caminhada. No entanto, as coisas estavam diferentes agora.
Eram tempos difíceis. A nova administração do hospital não se acertava na prática, de modo que havia muita corrupção em relação ao manejar das contas públicas. Principalmente no que diz respeito ao presidente da empresa.
Notícias de trabalhadores fantasmas, ganhando salários exorbitantes sem ao menos ter o mínimo de frequência no hospital, era o que mais se falava na empresa da área da saúde. Também comentava-se o fato de existir desvios de dinheiro, isto é, lavagem de quantias volumosas de capital financeiro, além, é claro, de má administração por parte do presidente da empresa em sua coordenação.
Ivi Kato Inoquehda era uma pessoa correta, sem tirar nem pôr. Ela prezava sempre para que as coisas fossem feitas de maneira assertiva, sem prejudicar nunca ninguém. No entanto, não estava nenhum pouco satisfeita com a administração atual.
"Tem algo de muito errado acontecendo nessa empresa e parece que mais coisa será revelada em matéria de corrupção e desvio de dinheiro da área pública SUS e privada", pensava entre si.
Ivi também não gostava do novo presidente do hospital. Em pouco tempo, ele já havia transformado a empresa do ramo da saúde em um negócio lucrativo para igrejas que não fossem do ramo católico. Alguns donos importantes desses locais de devoção (exceções que não representam claramente a mAioros) estavam por trás de importantes porcentagens de ações da parte administrativa do hospital. Sempre que precisava, ou era denunciado por lavagem de dinheiro, os membros do conselho de religião o respaldavam.
"Tem mais coisa que virá à tona, é só ficar atenta", ponderava a garota. "Parece que quer quebrar o hospital de vez, se tivesse poder para tal coisa, possivelmente quebraria o país", analisava a situação em silêncio.
Outra circunstância que incomodava Ivi era o fato do nepotismo escancarado na coordenação da atual administração. Filhas e filhos do atual presidente estavam empregados na atual gestão. Para agravar ainda mais a situação, eram tão corruptos quanto o presidente do hospital. Todos tinham casos ligados com propinas.
"São privilegiados por algum tipo de foro", pensava Ivi.
Só que o pior ainda não havia sido descoberto.
Ivi estava nervosa; ela era uma dentre as várias funcionárias que suspeitavam de negócios ilícitos da nova administração. Aliás, ela tinha certeza.
As movimentações eram muito suspeitas nos hospitais da rede em que trabalhava. Cada vez mais era um ir e vir de indivíduos engravatados, portando maletas e escrevendo códigos binários, com combinações intermitentes, entre si.
Mesmo assim, iria encarar o problema.
"Por que chamam justamente a mim a essa hora da noite?"
Ivi lavou o rosto no banheiro de sua casa. O choque térmico da água gelada com o rosto quente a despertou para que tivesse mais coragem. Porém era muito estranha aquela chamada do hospital a altas horas da noite.
Nunca se esqueceu a vez que encontrara um dos filhos do presidente da empresa.
Ela ficara imóvel ao reconhecê-lo.
"- Não sabe o seu lugar, garota?
Antes de responder, fez um barulho com a garganta, demonstrando todo o seu desagrado em relação à pessoa presente.
- Cof, cof – fez um movimento com a garganta até a laringe. - Só sei que quanto mais alto a pessoa está, maior é a queda. – Emendou a fala do homem aos seus dizeres enigmáticos.
- O que quis dizer com isso? – Perguntou contrariado.
- Nada – proferiu monossilábica. Nos instantes posteriores, ela voltou a seus afazeres."
Deixou as desconfianças, as lembranças, de lado e foi para o hospital.
Vestiu uma roupa de frio, achando melhor pedir um táxi, do que dirigir até o hospital.
"Senhor, por favor, me leve até este endereço, sim?".
Não demorou muito e já estava na frente do complexo hospitalar.
Entrou apressada no hospital.
Ao passar pela recepção, não pode deixar de cumprimentar Aioros.
Aioros com seu olhar ágil, e cabelos pretos/marrons, sempre despreocupado, hoje estava atento e parecia um tanto tenso.
Ivi não podia deixar de considerá-lo atraente, mas o via somente como um amigo.
"Um amigo com um porte atlético muito sexy", pensava Ivi consigo mesma. Como eram próximos, já havia saído diversas vezes, indo inclusive no cinema juntos. Ivi adorava mexer nos fartos cabelos dele, fazendo movimentos de redemoinho. O cheiro das melenas de Aioros era tão agradável. A estima que possuíam entre si era algo incomparável. Os dois eram do signo de sagitário, portanto gostavam de se arriscar em diferentes atividades do dia a dia.
Enquanto isso, os olhos de Aioros acompanhavam a movimentação de Ivi de uma maneira ansiosa.
Na televisão da recepção, estava sintonizado um canal em que passava um filme de ação. Era Point Break que estava sendo transmitido pela enésima vez.
- Quase decorou as falas do filme, Aioros?
- Sim, mas nessa adaptação mais recente, parece que o agente Utah consegue prender o Bodh.
- É aquele que trabalhava como estagiário de detetive, o Utah Torrez que você falou, e não o Ustra, né? – Perguntou Ivi de uma maneira desconfiada.
Ustra foi um dos piores opressores da época da censura brasileira. Em compensação, o personagem da ficção, o Utah, lutava para que não houvesse dor nos interrogatórios realizados com os suspeitos.
- Não, é o Utah! Que tipo de pessoa você acha que eu sou? – Até Aioros tinha conhecimento sobre esse dado histórico.
- E tem gente "brilhante" que ainda defende esse tipo de pessoa, só pode ser igual ou pior. Esses, sim, são tontos. – Monitorando sempre a reação de Aioros, comentou Ivi com asco pela situação descrita.
Aioros consentiu com o rosto.
- Voltando ao assunto, preciso assistir a essa versão – disse a garota com sinceridade. – Bem que isso poderia ocorrer aqui no hospital, né? – Falou de maneira muito baixa.
- Como as coisas andam, não duvido muito que o conjunto empresarial do hospital não vá parar nos telejornais.
- Concordo – disse Ivi de maneira discreta.
- Aioros– Ivi silenciou, para no momento posterior dar prosseguimento à sua fala – você faz ideia do porquê me chamaram nesse horário?
- Eu não sei, Ivi, mas é urgente. Você precisa ir, são ordens do escalão maior. – Ao dizer isso, o rapaz voltou seu olhar para o andar de cima.
- Você quis dizer dos bandidos que estão prestes a cair? – Ivi enfatizou a última palavra de maneira baixa, com a mão na frente da boca para que ninguém pudesse fazer a leitura labial do que dissera.
- Deus te ouça – disse Aioros. – Agora vai logo – sentenciou.
- Aioros– Ivi o olhou diretamente nos olhos– sempre confiei em você, vamos passar por mais esse perrengue juntos, meu amigo.
Aioros fez que sim com a cabeça.
- Olha só, eu quero que você se cuide. Não é para ser indiscreta com os seus comentários, eles estão de olho nos funcionários que podem se rebelar. – Aioros assumia agora a sua atitude protetora de sempre em relação a Ivi.
- Eu sei, mas juntos nós somos mais fortes, podemos combater esse esquema de corrupção que se apoderou do hospital. Se o corpo de funcionários denunciar às autoridades competentes, podemos tirá-los do poder.
- É, eles têm medo. Por falar nisso, já ameaçaram com cortes na folha de pagamento.
- Um a um irá cair Aioros, eu não tenho dúvidas. Agora me deseje sorte, sim? – manifestou Ivi toda a sua confiança estampada em um sorriso.
- Boa sorte – Aioros falou sério. – Em outros tempos riam e se divertiam sempre que Ivi encontrava o rapaz em seu expediente na recepção, mas agora estavam quietos, estavam de olho no que ocorria de errado no hospital.
Diante disso, Ivi Kato foi encontrar o diretor do hospital.
Escutou, do outro lado da porta uma voz hierática.
Era Ino Shino . Ele estava sentado confortavelmente em uma poltrona de couro. Estava de terno e gravata.
A voz que escutou a fez se tornar mais alerta.
Era um timbre grave e forte.
- Entre, Ivi, eu sei que é você. – Disse Shino de maneira imprevista. Queria parecer despretensioso.
- Boa noite, senhor. – Ivi emitiu sua saudação naturalmente ao adentrar a sala do diretor do hospital.
- Não precisa me chamar de senhor – disse Shino, a olhando dos pés à cabeça em uma visão praticamente de raio x.
Disse isso em meio a um sorriso.
Ivi sabia que Shino era solteiro. Ele havia tido muitos relacionamentos, mas agora estava quieto. O olhar examinador de Shino visivelmente a incomodou. No entanto, ela não podia deixar de prestar atenção no quanto Shino era esforçado, isto é, trabalhava com afinco no seu cargo. Era um trabalhador entusiasta. Ela gostava desse comprometimento dele no emprego.
- Há quanto tempo não nos vemos, Srta. Ivi. Da última vez que nos falamos, você me deixou descascando alguns pepinos no hospital. – Disse em meio a uma visão perscrutadora e uma voz brincalhona.
Vendo que Ivi não demonstrava reação, continuou sua fala.
- Sinto muito pelo que aconteceu com ele – Shino trocou de assunto, assumindo agora um semblante sério -, mas aquele rapaz não te merecia – falou com um certo ressentimento e um desdém velado, – você precisa de alguém que se encontre na mesma sintonia que você – disse sem pestanejar, em um interlúdio de palavras.
- Na mesma sintonia que eu? – Indagou Ivi, sem entender aonde Shino queria chegar com aquele assunto.
- Alguém como eu – retorquiu o diretor do hospital.
A voz de Shino apresentava rouquidão.
Ela gostava do som másculo da voz dele. Ao entrar na sala, quando se cumprimentaram, deu para sentir o aroma masculino. Um cheiro de madeira que brincava com os seus sentidos ao adentrar em seu olfato. Era tão prazerosa esta sinestesia, a de poder ver e sentir Shino ao mesmo tempo presencialmente. Ainda mais quando ele parecia tão seguro de si.
- Não, não estou preparada para isso – afastou as sensações que sentia assim que seu pensamento retornou à realidade - , é algo ainda muito recente – disse Ivi sem jeito, quase trêmula. Estava lutando consigo mesma para não dizer nenhuma palavra errada e não estragar a situação. Afinal das contas, ela tinha que se comportar como uma enfermeira, pois estava em um ambiente profissional. Sentimentos deveriam ficar da porta para a rua.
- Mas um dia vai estar pronta – contestou rapidamente Shino. – E é nessa hora que eu estarei lá para você – respondeu Shino a olhando firmemente nos olhos.
Com esse ato, ele queria passar confiança para ela. Queria mostrar que era um homem de verdade, não um garoto. Se estivesse com ele, Ivi teria para si um homem responsável. Um homem que pudesse cuidar bem dela, que lhe desse um sentimento de proteção.
- Por que eu estou aqui? – Disse Ivi após um sinal de desconforto com a garganta, ela queria trocar de assunto. Estava insegura. Ela e Shino no mesmo lugar, em um ambiente fechado, longe de todos, isso poderia gerar situações inapropriadas para os dois representantes de seus respectivos cargos na empresa hospitalar.
- Conhece a família Kido? – após o gesto de confirmação da garota com a cabeça, Shino prosseguiu com o assunto sem se abalar por ter que trocar de tópico de conversa. – Então, um membro da família está passando por um momento delicado, o nome dela é Sésia, ela está em seus momentos finais e precisa conversar com alguém. Ela não quis ser atendida pelo padre Sage, grande amigo da família e pároco conhecido aqui da comunidade.
Shino fez uma pausa antes de retomar suas falas. Queria pôr em ordem os seus pensamentos.
- Ivi, o que essa garota quer é confessar seus segredos para uma pessoa que ela aparentemente não conheça, ela quer estar livre dos julgamentos de alguém que a vira crescer como o Padre Sage. São as vontades finais dela. – Constatou o diretor do hospital.
- Compreendo Sr. Shino – denotando certa tristeza pela situação da menina, Ivi se pronunciou com os olhos baixos.
- Para você, somente Shino – ele sorriu novamente.
Mais uma vez, ela não falou nada.
Com a falta de atitude da garota, Shino rapidamente voltou à discussão, sem qualquer constrangimento pelo silêncio.
- Ivi, lamento muito pelo que aconteceu com Carlos Maeno. – Ele tentou tocar no assunto novamente.
- Eu já superei isso – Ivi respondeu de maneira séria e fria. – Agora posso ir? – Ela queria sair imediatamente daquela sala. Não se sentia à vontade naquele ambiente. O que Shino pensava que estava fazendo com aquele comportamento?
- Pode. – Shino falou um tanto sem jeito pela atitude de Ivi, destinando ainda algumas recomendações à enfermeira, antes de terminarem a conversa. - Converse com a garota, tente passar algum sentimento de conforto a ela.
- Sim, eu farei isso. – Respondeu Ivi com confiança.
Antes, de sair, Ivi permitiu-se fazer um último comentário.
- Você é esforçado, Shino. Vejo você como alguém que sempre quis fazer com que o hospital progredisse, porém você trabalha para um homem muito ruim. Jaell Nabhor Jabino não é exemplo para ninguém. É uma das pessoas que mais está metida com desvio de dinheiro nesta empresa, ele e os descendentes dele. Eu, se fosse você, me desvincularia da imagem dele o quanto antes.
- Ivi, você não sabe do que está falando – respondeu Shino de forma baixa, visivelmente desconfortável pela explanação das ideias da garota à sua frente.
- Foi só um aviso – objetou Ivi, demonstrando, com isso, preocupação para com a figura profissional que Shino desempenhava no hospital. – Eu só não quero que você venha a ter problemas, posteriores a esta situação, decorrentes do seu envolvimento com a figura do presidente no complexo hospitalar – disse de maneira apreensiva. Eu quero ver você livre da influência maléfica de Jaell Nabhor. – disse finalmente. - Eu vou lá falar com a paciente. Até mais – De maneira silenciosa, Ivi se retirou da sala.
- Esse Carlos Maeno atrapalhou tudo – falou Shino para si mesmo, com pesar, assim que Ivi saiu do ambiente de reuniões.
"Shino", Ivi não conseguia tirar o diretor de seus pensamentos.
Já no quarto da paciente, a enfermeira olhou para a usuária do sistema de saúde privado dormindo com certa dificuldade no oscilar de sua respiração.
Estava muito magra, pálida.
Ivi, olhou para o prontuário.
"Essa não, não pode ser, tão nova", Shino não havia avisado a enfermeira um fator crucial no diagnóstico da paciente tratada pela rede hospitalar.
Olhou novamente para a menina, de uma maneira preocupada.
Não pode conter um suspiro quase que inaudível.
Era AIDS, no seu estágio mais avançado, quando o vírus do HIV se estabelece no organismo, no sistema imunológico da paciente.
"Parece que já temos uma pneumonia grave aqui pelo que eu vi no SOAP" (ficha de registro de diagnóstico para o paciente de atendimento conveniado).
De repente, algo chamou a atenção da audição de Ivi, pois a menina se mexeu.
Ivi pronunciou-se em voz alta.
- Sésia, eu estou aqui por você – disse de maneira calma, mas procurando passar confiança em seus dizeres para a garota. - Shino me falou de você recentemente, ele disse que você precisava de alguém que não fosse da sua família para ouvi-la. Bem – fez um pausa – eu estou aqui para isso, conte comigo.
Já eram altas horas da madrugada.
- Você não faz ideia do que eu já cometi na vida – dizia Sésia com lágrimas nos olhos.
- Eu não me importo – afirmou Ivi, de maneira séria. - Estou aqui para ser uma ponte entre o seu passado e o seu presente. Eu quero que você viva – exclamou com sua voz controlada. - Vamos sair dessa juntas? – Cada palavra que Ivi pronunciava estava repleta de esperança, esperava que com isso a garota se animasse e, quem sabe, pudesse auxiliar no contexto de reversão do quadro de agravo da delicada situação em que Sésia se encontrava.
- Vamos sobreviver, hein? – repetiu Ivi, tentando passar a mão pelos cabelos da paciente. Seu gesto era suave.
- Por que não quis falar com o Padre Sage? – Ivi insistiu – Eu sei que é alta a dose medicamentosa presente em seu organismo nesse exato momento, mas eu gostaria que você fizesse um esforço a mais e que não dormisse agora.
- Não feche os olhos, Sésia, você consegue fazer isso por mim? – Ivi implorava à paciente de uma maneira suave.
- Eu o amei tanto... – Dizia Sésia chorando.
- Quem, querida? – Dizia Inoquehda já plenamente à vontade com a usuária do sistema privado de saúde. Ela tinha jeito mesmo para falar com os pacientes.
- Saga. – Sibilou Sésia.
- Que Saga? – Pressionou Ivi. – Vamos, confie em mim – tentava demonstrar confiança para a paciente.
- É alguém especial.
- Você também é – encorajou Ivi– bem mais especial do que ele, não se menospreze. Você merece o mundo, não é porque está passando por um momento difícil que tem que esquecer da sua verdadeira importância, da sua essência.
- Shino me disse que você não está mais com o seu namorado, que ele se foi – disse Sésia, enxugando as lágrimas.
- É. – Comentou Ivi– Viu, todos nós temos tetos de vidro na vida. – Pode-se ouvir um suspiro da enfermeira. Eram memórias difíceis de serem mexidas.
- Você pode me falar um pouco do que aconteceu entre vocês dois, digo isso até eu conseguir tomar coragem para falar o que aconteceu na minha vida – entoava um sonzinho fraco quase desaparecido.
- Sim.
Ivi não gostava de comentar isso com ninguém, mas com Sésia era como se fossem amigas a vida inteira. O que acontecia naquele exato momento era uma conversa sem máscaras, sem enganações, se não estivessem na situação em que ambas se encontravam, com certeza, Ivi e Sésia poderiam ter sido amigas fora do hospital.
- Tivemos uma história juntos, iríamos construir uma vida juntos. Mas aí vieram as desconfianças.
Ivi desconfiava que Carlos Maeno estava envolvido nas transações financeiras ilícitas do hospital. Na noite em que ele morreu, tiveram uma discussão sobre isso.
- Na noite em que seu corpo veio a óbito, nós discutimos, ele saiu apressado de casa... Só sei que o IML, horas depois, ligou, pedindo-me para que eu identificasse o cadáver. Parece que ele foi mergulhar no mar e teve uma convulsão involuntária, isso fez com que ele perdesse o controle da natação... Olha, foi horrível, as ondas tragaram ele para cada vez mais dentro do mar. Horas depois, ele foi encontrado morto na areia da praia. Foi horrível encontrá-lo assim, no IML, sem qualquer sopro de vida.
- Estávamos afastados já fazia um tempo – prosseguia Ivi com o seu relato -, a relação com toda a certeza tinha esfriado. Posso dizer também que muito provavelmente eu não o amava, mas não queria vê-lo assim. Carlos se tornou uma pessoa chata com o tempo, uma pessoa desgostosa da vida. Vivíamos sempre com a mesma rotina, ele nunca fazia nada diferente. Sua presença já não me fazia feliz.
Na verdade, Ivi chegou a ter repugnância de Carlos em certo momento, mas esse detalhe ela não precisava revelar para Sésia.
- Entendo – disse Sésia, atenta a tudo o que Ivi falava.
Em instantes, outras cenas vieram à mente de Ivi, elas apareciam em forma de flash back em sua cabeça.
Ela decidiu filtrar o acontecimento interiormente e não comentar o ocorrido com Sésia para não interferir em sua evolução médica.
Lembrava-se como se ainda estivesse no exato presente em que ocorrera o acontecimento. Podia sentir nitidamente o cheiro do corpo sendo incinerado, invadindo suas entranhas como se fosse por osmose. Era difícil esquecer a cena em que vira o corpo completamente queimado à sua frente. Fazia pouco tempo em que estivera no funeral de Carlos. O corpo dele fora cremado.
Ivi podia visualizar a cena com tintas ainda frescas de outrora. Havia um odor naquele ambiente que impregnava em suas narinas como se fosse o perfume de enxofre, era pior do que carne em putrefação. As chamas bailavam por entre si, aniquilando epitélio, órgãos e qualquer resquício do que já fora considerado humano. Ivi não conseguia chorar, parecia que estava se livrando de um incômodo menor. Estava desfigurado. "Queime e vá embora para sempre", pensava entre si. "Não quero gastar nenhum tempo pensando em você e, se for realmente tão corrupto quanto Jaell, queime e apodreça no inferno para sempre".
Nem sempre as coisas estiveram bem entre eles.
Eram sentimentos controversos que Ivi tinha em relação a ele: o de privação de sua presença e o de livramento.
- Ele nunca quis me dar um filho, Sésia – Ivi comentou o fato em voz alta -, e eu nasci para ser mãe, para gerar um filho ou uma filha minha – disse com pesar pela ausência dele.
- Ao mesmo tempo, sinto-me finalmente livre para ter este filho – dizia Ivi com as mãos em seu baixo ventre.
- Shino parece que gosta de você – lembrou Sésia, aproveitando a brecha que Ivi havia deixado em sua fala. – Ele pode te dar este filho –afirmou a paciente. – Vocês dois formariam um casal incrível – disse com um ar de sapiência da situação.
Ivi ficou encabulada.
- Não sei de onde você tira essas ideias, menina! – afirmou ainda com a pele do rosto quente e vermelha.
- Eu sei o que é amor, e ele sente isso por você! – Sésia expôs os seus pensamentos em relação ao assunto de uma maneira segura e ousada.
- Ah, menina, deixa disso, você diz essas coisas com um entendimento que me impressiona, mas não pode ser verdade – Ivi não pode conter um sorriso tímido ao proferir estas palavras.
- É verdade, ele me confessou – replicou Sésia de uma maneira séria. Ele disse assim para mim, no exato momento em que eu pedi por uma profissional, do seu perfil – fez questão de salientar -, para ter a conversa que estamos tendo agora. Ele disse assim: "vou chamar a profissional que eu mais confio neste hospital, você não pode contar para ela, mas eu a amo", disse isso piscando para mim – Sésia deu uma sonora gargalhada ao contar o fato para Ivi. – Que bom que eu ainda consigo me divertir, embora esteja nesta situação – confessou Sésia.
- Você vai ficar bem – disse Ivi de uma maneira otimista. Após estes dizeres, colocou a mão na testa da garota à sua frente – eu não posso te prometer o mundo, e sim uma possível saída, e a saída é sobreviver – encorajou Ivi à Sésia.
- Além de reconstruir a sua vida – dava continuidade ao seu diálogo, Ivi, de uma maneira confiante -, tenho certeza que você ainda pode ser muito bem sucedida. Pode ter um novo relacionamento, se tomar os devidos cuidados. Você faz ideia do que eu sempre prezei em um homem? – Ivi tentava dar um tom otimista para a conversa que estavam tendo.
Com a negativa da garota, Ivi deu prosseguimento à sua fala.
- Eu sempre gostei de homens trabalhadores, bem dispostos, com vontade de viver e lutar por uma vida mais aprazível. A aparência é a última coisa que eu noto. Ah, e também prefiro homens mais velhos. Somente alguns anos a mais do que eu.
Sésia escutava tudo atentamente.
- Vamos lá, me conte a sua história. – Ivi pegou a mão da paciente e colocou a sua em cima – eu vou ouvir, de maneira imparcial, o que você tanto precisa dizer.
- Você sabe porque eu estou aqui? – Sésia perguntou com delicadeza.
- É porque sua família tem relações com o hospital, com Jaell Nahbor, não? – sondou Ivi.
- Exatamente – respondeu a paciente -, minha família está investindo em algumas alas privadas do hospital.
- Compreendo – disse Ivi com cautela.
- Eu gosto muito desse diretor que vocês tem, o Shino – comentou Sésia, mas este Jaelll não me inspira confiança. Há um comentário muito forte que ele está metido em negócios ilícitos. Você pode me confirmar isso, Ivi?
- Jaell não presta Sésia, há muito tempo ouve um comentário muito grande de que ele estava envolvido com a máfia do tráfico de órgãos no mercado negro para você ter uma ideia.
- Nossa – exclamou Sésia, surpresa com a recente revelação da enfermeira à sua frente – é uma informação e tanto – constatou a menina. - Pois bem, a minha família está relacionada com a indústria farmacêutica, além disso tem ações na indústria armamentista. Suspeito que este Jaell está de lobby com alguns empresários do grupo Kido ou, melhor dizendo, está fazendo transações financeiras ilegais com os mais autos executivos da Fundação Kido.
- Ouve boatos de que ele superfaturava as compras de medicamentos e aparelhos para o hospital, mas não fazia ideia de que ele estava diretamente ligado aos fornecedores. Quanto às armas, é um louco, dizem que dorme rodeado por este tipo de coisa. Uma enfermeira, inclusive, relatou, certa vez, que já o viu circulando no hospital com um revólver preso à cintura. Tudo isso de maneira ilegal, isto é, contra as regras do grupo hospitalar, claro.
- Além disso, se dependesse dele nos aposentaríamos com 80 anos de idade. – Prosseguiu Ivi com o seu discurso. - É um verme em todas as suas formas. Um elemento verdadeiramente detestável; não sabe tratar bem os seus funcionários, além de ser considera um completo machista, pois só sabe falar de armas e de como os homens desempenham bem os seus papéis na sociedade. Ouso dizer que está inclusive casado com uma boneca inflável, sim porque ela não tem voz perante as atitudes grosseiras deste homem – lamentava Ivi.
- Jaell Nabohr é um idoso, é o quê? – quis saber Sésia.
- É um homem velho, um ancião que não tem mais vergonha nenhuma. Depois de idoso, ficou safado. Ninguém gosta dele. Só sabe maltratar os funcionários e funcionárias, um idiota por completo, mas nenhuma providência dele irá passar nesta administração deplorável que ele faz do nosso hospital.
- Está envolvido com o tráfico de órgão internacional, não posso acreditar... – Sésia frisava algumas palavras de Ivi.
- Sim – emendou a enfermeira -, e os descendentes (filhas e filhos) dele, todos tem problemas com lavagem de dinheiro. As frutas podres não caíram longe do pé. – Reparou Ivi.
- Só sabe falar mal das mulheres, xingá-las, é um idiota... Quem apóia esse tipo de gente aqui no hospital deveria ser afastado do cargo – prosseguiu Ivi com sua linha de raciocínio. - Em síntese, Jaell Nahbor é um monstro.
- Vocês não acham que tem que fazer alguma coisa para retirá-lo do hospital o quanto antes? – sugeriu Sésia.
- Há um movimento forte para que isso ocorra, já estamos nos organizando – emendou Ivi ao comentário da paciente.
- Sabe Ivi, eu torço muito por você. Reconheço a sua força. Em apenas alguns minutos, você já se mostrou uma pessoa maravilhosa comigo. Você é uma daquelas pessoas que não compete com as outras mulheres, e sim procura revigorá-las, torce para que se tornem pessoas melhores; o mundo precisa de mais pessoas como você – reconheceu Sésia.
- Você também é forte, Sésia, está resistindo a tudo isso o que acontece na sua vida e ainda procura me dar palavras de conforto nesta hora que também é delicada para mim, por conta de tudo o que está acontecendo aqui no hospital e na minha vida pessoal – explicou Ivi.
- Vocês vão tirar esse crápula do poder – anunciou Sésia com uma admirável confiança que adquirira ao ouvir todo o relato da enfermeira.
- É certo isso – replicou Ivi– estava confiante.
- Ivi– Sésia chamou a atenção da enfermeira, tomando para si a palavra novamente -, eu sempre fui contra o uso de armas e a minha família, a família Kido defende isso, trabalha com esse tipo de material. Suspeito que a minha vinda para cá tenha algo relacionado com isso. Por isso eu queria lhe fazer um convite... – proferiu essas palavras de uma maneira cortante e com certa amargura.
- Faça – disse Ivi cautelosamente.
- Eu quero lhe convidar, de antemão, para o meu enterro!
- C-como? – murmurou a enfermeira atordoada, pensando não ter ouvido de maneira correta as palavras de sua paciente.
- Exatamente o que você ouviu. Quero que vá ao meu velório e de lá você conhecerá o autor do meu assassinato!
Das duas, uma. Ou Sésia Kido estava tendo uma previdência do que seria o seu fim, ou gostava de usar metáforas, tratando a morte com alcunha de assassina. Na melhor das hipóteses, estava em estado de alucinação medicamentosa – devido às altas doses cavalares administradas no hospital, a fim de aliviar o seu sofrimento. Ivi Kato preferiu a terceira opção, verificando a ministração dos fármacos à Sésia.
- Sésia, você deve dormir agora, creio que os medicamentos já estejam fazendo efeito. Amanhã conversamos mais sobre o assunto. – disse Ivi encerrando a conversa de maneira precipitada, pois a paciente já apresenta um quadro visível de sono.
Antes de sair do hospital, Ivi teve que atender mais uma intercorrência.
- Qual é o seu nome? – Ivi tentava transparecer estar calma, mas o paciente urrava de dor, de modo que não a deixava tranquila também.
- Occiditis Geani– Ele tentava esclarecer seu nome à enfermeira.
Ivi olhou na ficha de qualificação do paciente. Na ficha também constava que o intitulavam como "Nubila Perdidit Mess{e}alino". Pelo nome estranho, provavelmente era estrangeiro. Quase não acreditou, ele havia sido castrado.
Inoquehda ficou com pena do paciente.
- Se me permite a indiscrição, quem fez isso com você? – Perguntou com jeito. Não queria ser uma profissional intrometida.
- Scortum Crucem Luscus, essa mulher não é daqui, tem outra nacionalidade – disse ele.
Ivi não quis saber a causa da extração do órgão masculino. Inoquehda preferiu focar no que ainda podia ser feito.
- Eu trouxe o órgão – dizia o homem chorando de dor. Ele segurava na mão um recipiente de isopor com gelo e o órgão peniano dentro.
"Se bem que agora não pode ser mais considerado homem, vai virar eunuco".
Com as luvas, Ivi abriu o recipiente, o órgão já estava escuro.
- Sinto muito Senhor, mas não será possível costurar a sua genitália... Pelo que vejo aqui, os testículos também foram arrancados – Ivi tentava controlar a sua cara, não demonstrando o seu estado de horror pela situação verificada.
- Ela colocou os meus testículos no lixo – Ele dizia com dor.
- Não dá mesmo para costurar, nem colocar um implante? – O paciente ainda tentava questionar com esperança.
- Sinto muito – Dessa vez, Ivi não conseguiu esconder as rugas de horror em sua face.
"Essa, com certeza, será marcada como uma noite atípica", Ivi pensava consigo mesma.
ooooooooooooooo
Observava a cerimônia fúnebre atentamente. Aquilo tudo era estranho demais. Foi difícil acreditar que havia passado cerca de um mês desde o fatídico encontro.
Não só acatou o convite da garota, como estava seguindo à risca as suas recomendações. Se perguntava o porquê de tudo aquilo. Como pôde deixar-se envolver em uma trama sórdida como aquela? Agora era tarde demais para se arrepender; tinha dado a sua palavra de honra à homenageada da triste ocasião. Depois de tudo o que lhe ocorrera no hospital, era o mínimo a se fazer!
Enquanto isso, alheia aos devaneios da enfermeira, uma fina chuva caia, acariciando de leve a pelugem da formação rasteira, deixando, como resquício, um agradável cheiro de terra molhada.
ooooooooooooooo
Havia muitas pessoas na solenidade. Parentes, amigos, conhecidos, profissionais da imprensa, curiosos... A família Kido era de se 'fazer figura" perante à alta sociedade. E tal qual o dia em que o hospital fora abarrotado de gente, para acompanhar a acomodação de Sésia no hospital, ali fazia-se aos montes, deliberadamente.
Foram ditos alguns comentários pesarosos, murmúrios baixos de condolências, mas nenhuma grande exaltação. Não havia ninguém, de fato, que realmente sentisse a perda da Sésia.
Eram gestos ensaiados.
E como parte da farsa, o padre Sage lamentava a perda da preciosa filha que sequer era cristã. Aproveitou a deixa da chuva, dizendo que "até a Natureza estava em pranto pela partida da Sésia". Silêncio. Ninguém ousou proclamar um só comentário conivente ao sacerdote.
O ancião, agilmente, contornou o mal estar com o início do terço ensaiado pelas beatas.
Sage era um mestre de cerimônias, sem tirar nem pôr. Era, praticamente, um agregado da casa Kido, sendo um guardião das confidências familiares.
Seus cabelos brancos e fartos, davam o tom certo de sabedoria ao seu semblante. Tinha olhos azuis de maresia, vivos e perspicazes; nada passava despercebido ao seu crivo.
- Padre... – susurrou, discretamente, Sasha Onassis, amiga e confidente da falecida.
- Sim, filha de Deus – falou o religioso, voltando a atenção que direcionava à romaria das devotas.
- Posso falar com o senhor depois da cerimônia? – perguntou incerta.
- Sim, Sasha. É algo grave? Me parece preocupada... – havia notado certa angústia nos dizeres da jovem.
- Pode-se dizer que sim. E está relacionado ao passado da minha amiga – disse melancólica. Colocando a mão encima da pia de pedra que havia no rancho.
Observou a jovem a sua frente. Conhecia a moça (agora com uma vasta cabeleira amarronzada misturada a discretas mechas) desde o seu nascimento, pois havia realizado o seu batizado. Primeira Comunhão, Eucaristia, Casamento... Havia acompanhado todos os votos sacrais da jovem em face da Igreja. Era uma boa menina. Ou melhor, havia se transformado numa linda mulher, com seus olhos castanhos esmeraldinos, transbordando ingenuidade. Considerava Sasha como sua própria filha, a herdeira que não pode ter devido a sua condição de homem santo.
- Pois bem – sentenciou -, depois dos atos fúnebres, me encontre no escritório do pai de Sésia.
Iria passar a noite na casa dos Kido com os amigos a pedido da própria família, com o intuito de consolá-la. Desde que Sésia havia lhe negado o direito de realizar a extrema-unção, não havia mais tido notícias dela, até, lógico, o fatídico momento. A última frase da amiga, sorrateiramente, atiçara os sentidos de curiosidade do pároco, censurando-se mentalmente pelo pensamento pecaminoso.
A alguns metros dali, estava Ivi Kato Inoquehda, concentrando-se em cada palavra proferida pela dupla.
Ooooooooooooooo
...CONTINUA...
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