Aqueles que andavam solitários
Ele andava sozinho. Por hábito, por necessidade. Por atividade e por ócio. Por medo e por repetição. Sempre andara, desde que se mudara para aquela rua inquieta, que todos seus conhecidos consideraram especialmente sinistra, dos quais ouviria por muito tempo conselhos para que se mudasse dali. Sua casa era a única grande construção residencial na alameda, que era inteiramente composta por árvores, bancos cinzento-enferrujados e prédios antigos e aparentemente esquecidos; uma livraria em estilo gótico-renascentista e um café com cortinas lilases e puídas, entre outros estabelecimentos não menos hostis. Os plátanos que circundavam toda a extensão em que ele caminhava davam a impressão de que, muitos antes, um urbanista pretensioso pensara que aquela seria uma região nobre da cidade. Os estabelecimentos comerciais eram habitados por um raça boêmia específica de almas artistas de pouca esperança expansiva, que ocupavam esparsamente os restaurantes e o café com seus blocos de desenho, canetas a nanquim e repetitivos computadores portáteis. O progresso parava ali para uma dose de espresso com uísque e de culpa.
A casa antiga, verde e branca, com sua grande varanda e charmosa baywindow, destoava de todo o resto e poderia ser considerado único lugar habitável por ali, embora o homem que andava sozinho soubesse que todos aqueles lugares guardavam a moradia de pessoas como ele, solitárias e esquivas. Mas isso, por ora, não o importava. O que realmente lhe importava, naquele momento, era chegar o mais rápido possível ao precário parque infantil no fim da alameda. As construções escuras e estranhamente retangulares avançavam, intimidadoras, em sombras sobre seus passos e seus joelhos doíam e latejavam. Sua testa estava ensopada de suor frio, mas ele precisava apenas correr. O sangue pulsando em suas têmporas lhe impedia de pensar, mantendo relações de repetitiva atividade com o cérebro e permitindo que a rapidez anuviasse sua mente.
[Severo Snape]
Eu dedicava cada segundo, cada fisgada de dor e cada gota de suor daquela corrida exasperada a ela, que atrapalhou e coloriu minhas noites de caminhadas solitárias. Eu a via constantemente do outro lado da rua, e isso me parecia irônico, duas almas sozinhas e perdidas caminhando com as mãos nos bolsos e em direções opostas.
Então, em uma noite nublada e fria do final de novembro ela cruzou a rua. Eu não pude evitar. Diminuí totalmente o ritmo de meus passos e permiti que ela caminhasse a meu lado. Caminhava tão rápido quando eu. E essa foi a primeira coisa que soube sobre ela. Além disso, tinha bonitos olhos cor-de-mel, baixa estatura e era provavelmente muito mais jovem que eu. Nas primeiras noites que andamos lado a lado, nenhum de nós falou ou tentou algum tipo de contato, qualquer que fosse. Nos compreendíamos no silêncio e o silêncio da alameda tanto nos compreendia quanto acolhia. Andávamos sozinhos e unidos.
No começo da segunda semana, quando o silêncio bastou a ela, iniciou a falar. Descobri que o silêncio bastara a mim também. Nossa conversa incomodava o silêncio daqueles prédios encerrados ao esquecimento e sacudia o pó sob nossos passos acelerados. Conversávamos sobre tudo o que já pensáramos em nossas existências, misturávamos experiências e histórias e cada noite não bastava por si. Não mais faltávamos às caminhadas. O que antes era uma forma fugidia da realidade, para mim, agora parecia constituí-la. Nossas perguntas surpreendiam com atrevida facilidade nossos temperamentos introspectivos – tão semelhantes, tão diferentes; ela tão doce, eu tão amargo – e conseguíamos ignorar, cada um à sua forma, a timidez e respondê-las enfrentando a imponência de nossos próprios limites. Ao menos, assim eu via. Respondíamos a nossos próprios desconfortos e superávamos o que quer que nos estivera mantendo calados. Após um mês eu entendia mais sobre aquela pessoa do que já compreendera sobre qualquer membro de minha família. E ela – de alguma forma – me instigava a enfrentar esse tempo perdido. Eu estava, ao contrário do que sempre me conhecera, ansiando por uma vida. Que tivesse profundidade e significado.
E cá estou. Correndo porque ela não aparecera na semana anterior; correndo porque sinto que ela não aparecerá nesta também. E correndo, principalmente, porque sei que o motivo de ela não ter mais querido encontra-se comigo foi a minha indiscrição e invasão. Ela passara a me acompanhar todo o caminho de volta até a minha casa, em vez de despedirmo-nos na metade do caminho, como fizemos nas semanas inicias de nosso relacionamento de "andantes". Insistia naquilo. A casa dela ficava mais longe, no final da rua, dobrando-se à esquerda, mas ela gostava de voltar sozinha. Embora aquilo não me agradasse por completo, sabia que ela ficava satisfeita em acompanhar-me até o portão da minha casa. E recusar polidamente, desviando os olhos, quando eu lhe oferecia um chá. Eu deveria ter interpretado aquilo de uma forma melhor, porém erroneamente continuei repetindo meu comportamento. No último domingo, quando chegávamos à frente de meu portão, começava a nevar. Era a primeira neve da estação e embora estivéssemos vestidos apropriadamente para temperaturas baixas, ela não estava vestida para 15 minutos de caminhada debaixo da neve. Novamente lhe ofereci um chá – ou, quem sabe, um cachecol e um gorro para o caminho de volta. Ela recusou, sorrindo e assoviando um "boa noite". Eu dei um passo à frente, tomando as suas mãos na minha – e sua reação foi afastar-se rápido, enfiando as mãos furiosamente nos bolsos do enorme sobretudo. Eu não estava insistindo. Apenas quisera verificar a temperatura de seus dedos – que estavam, como minha suspeita, enregelados. Ela pareceu surpresa e de repente assustada com a minha atitude. Levantou os olhos para mim e começou a afastar-se, caminhando rápido. Fiquei estarrecido, parado ali por mais de dez minutos, molhando minhas vestes de uma neve muito gelada e cinzenta, pensando em meu próprio descontrole. Um mês de conversas durante caminhadas não significava, para alguém tão solitária e defensiva quanto ela, consentimento total. Eu a assustara... E precisava que ela soubesse de meu consciente arrependimento.
Eu já andara quase toda a alameda quando lembrei do que ela dissera: vinha do parquinho no final da rua quando nos encontrávamos dias antes, um de cada lado da rua. E agora corro até lá, praticamente sem fôlego. Meus olhos ardem e lacrimejam, meus lábios estão secos e gelados, mas não posso parar, agora que estou quase chegando.
Posso ver o portão de metal oxidado – que parece ter sido verde, sob a ferrugem do tempo, a poucos passos. Arrasto-me até ele e o abro. Olho para frente e cruzo a entrada, secundado por um rangido do portão, balançado pelo vento. Mesmo com o barulho agudo, a única figura ali, sentada em um dos balanços azuis de tinta descascada pelos anos, não levantou a cabeça nem se sobressaltou. Por um instante, eu hesitei – a figura tornara-se tão imóvel quanto uma estátua, como se tivesse enrijecido todos os músculos. Caminhei, tentando regularizar a respiração, até sentar ao lado da mulher de nome shakespeariano.¹ Os seus pés estavam enterrados na neve e as mãos estavam decididamente dentro dos bolsos. Ansiosa. Ela estava indiscutivelmente ansiosa.
Eu a olhei por um momento. Sua pele branca estava rosada e ela fechara os olhos, seu delicado rosto circundado de cabelos rebeldes e enternecido controle. Eu irresponsavelmente a deixara entrar em minha vida insignificante e toma-la de sentido. E, já que entrara, necessitava de manutenção de estadia.
- Hermione – eu disse. Se eu disser que sei porque minha voz ainda estava tão calma, minto gloriosamente – eu queria lhe dizer uma coisa.
Idiota.
Isso é óbvio. Quase a ouvia zombar de mim.
- Eu sei. – disse apenas.
Sua voz ecoou pelos brinquedos carcomidos do parque. Doce, aguda, séria.
- Por favor, me desculpe.
Torci com toda a força que ela tivesse sentido a sinceridade que eu tentava incluir em minha voz. Mas então ela virou-se para mim, curvando em um meio-sorriso os lábios rosados. Eu demorei menos de dois segundos para perceber duas coisas: ela estava com lágrimas brilhantes de neve nos olhos. Segunda, eu também estava chorando. Ela levantou-se, agarrando meus pulsos até que ficássemos frente a frente. Ficou na ponta dos pés e me abraçou. Correspondi, tentando colocar coisas jamais ditas naquele abraço silencioso. Ela encostou a cabeça no meu ombro e sussurrou: "Não tenho mais medo, Severo". Foi neste momento que os olhos dela encontraram novamente os meus e que me perdi na infinidade de seus tons terrosos. Era o último dia daquele ano, e todas as resoluções para o próximo ano caminhavam junto de nós, enquanto saíamos do parque e retomávamos nosso caminho usual. De mãos dadas. Só eu, ela e a rua deserta. Para sempre.
¹- Hermione é o nome de uma das personagens de Shakespeare em Conto de Inverno.
