PURGATÓRIO
Arashi Kaminari

Prólogo

Shaka POV

Não me restava muito tempo e eu sabia disso. Arrependia-me apenas do muito tempo que gastei para perceber que nenhum esforço seria o bastante. O tempo que desperdicei tentando achar o caminho da iluminação. Pena que demorei todo esse tempo para perceber que encontrei apenas minha desgraça.

E só naquele momento, perto do fim, eu percebia que poderia ter me esforçado mais. Poderia ter sido mais cordial, mais atencioso, educado e muito menos resmungão. Deveria ter dito menos impropérios e praguejado menos. Deveria também ter prestado atenção e dito o quanto eu amo os que eu amo. E novamente naquele momento, eu percebia que tudo o que eu havia feito tinha sido em vão.

Nenhum vestígio meu ficaria. Passaria por essa terra sem ter feito algo que realmente prestasse e o pior, eu não sentia algum remorso por isso. Mesmo no fim, eu estava pouco me lixando. Tanto fazia, como tanto fez. E eu queria acreditar em meus próprios pensamentos mais do que em minha própria boca, que costumava proferi-los.

Eu era um morto, com um pé na cova, uma alma ambulante. O que você queira me chamar. Um morto que se perdeu de sua cova e só naquele momento percebia que não vivia há muito tempo. Nada do que eu pudesse me lembrar, eu queria levar comigo. Não queria ter que pagar meus pecados no inferno escutando as lamúrias humanas. Seria demais. Até mesmo para o pior pecador. E eu era fraco.

Deus, como eu era fraco. Será que naquele momento eu deveria rezar para o demônio? Estou com um pé dentro da casa dele... Era melhor garantir a estadia do outro também. Nem mais piadas eu conseguia fazer. Aquele humor mórbido me tomava e eu não conseguia deixar de caminhar para o provável fim.

Será que eu veria o lixo que eu chamava de vida passar pela minha mente um segundo antes d'eu morrer? Será que eu sentiria dor? Será que seria perdoado? Uma pessoa como eu não deveria ter chance, mas Deus costumava ser misericordioso, não? Pelo menos ele costumava ser até me deixar visitar o inferno.

Garanto-lhes que não foi uma estadia muito agradável. Não que o demônio tenha me tratado mal, – tratou-me bem, mas de uma forma muito suspeita – porém não guardo boas recordações do clima e do odor que lá se faz presente. Prefiria o lugar ao qual estava no momento.

Caminhei para o meu fim. Pelo menos eu o estava tentando sem que percebessem. Era fim de tarde e eu tinha um belo cenário a minha frente. Um ótimo momento para me entregar aos braços da morte, mas será que ela me aceitaria?

Passei minha mão pelo batente da porta de entrada e praguejei baixo mais uma vez. Não queria me lembrar de nada. Muito menos de como era tocar um batente de madeira. Nada daquela vida mundana deveria me acompanhar. Deveria morrer só e somente só.

Antes de cruzar a varanda e descer as escadas, voltei-me ao interior da casa que me acomodou por longos sete anos. Os anos mais longos de minha existência. Sabia que mais uma vez seguiria a risca meu comportamento egoísta. E novamente eu não me importava.

Os moradores daquela aldeia haviam tido tanto trabalho para construir aquela moradia tão grande para uma pessoa, apenas por agradecimento. Eu era professor e nem mesmo a lembrança dos rostos das crianças conseguia me fazer parar de seguir até o mar.

Eu morreria. Era certo. Eu queria e o faria. Ninguém me impediria. Mas até o ultimo segundo, eu procurava um motivo para viver. E por mais que boas lembranças e razões me viessem a mente, nenhum deles me foi o bastante.

Entrei na água e a peguei um dos barcos mais próximos. Afastei-me da praia até eu me encontrar em um nível que fosse realmente profundo. Eu não queria ter dúvidas. Tomada minha decisão, eu só a cumpriria uma vez. Sem pensar em mais nada, atirei-me ao mar e com a mente vazia, afundei.

Aos poucos o meu ar ia escapando do meu corpo e por mais incrível que parecesse, o medo não tomou conta de mim. Somente aquela sensação reconfortante que todo o meu desespero, minha aflição e meus problemas sumiriam de uma vez. Era tão bom me sentir daquela forma.

E como mágica, quando eu estava prestes a fechar meus olhos pela última vez, senti uma mão me segurar fortemente o pulso e me erguer com brutalidade. Rapidamente cheguei a superfície e fui jogado dentro do barco que eu havia pego.

Meus olhos arregalados, nenhuma expressão em meu rosto. Meu corpo não se movia e eu não respirava. Eu poderia jurar que eu iria morrer, mas algo me dizia que eu já estava morto. Sem falar que o tempo parecia ter parado. Como aquilo era possível? Foi então que eu percebi ácido caindo sobre a borda do barco e um pé seguido de outro, se equilibrar na mesma borda.

Eu não precisava perguntar, muito menos levantar meus olhos para saber de quem se tratava. Ele havia vindo me buscar. O próprio Hades em pessoa. Ele adorava me ver em posição de submissão. Eu deveria ao menos tentar ser cortês. Afinal, em breve eu seria um hóspede eterno da morada dele, mas mesmo assim eu não conseguia fazê-lo – ao mesmo tempo que minha raiva contra Deus não me deixava. Eu iria morrer, mas levaria todo meu sentimento negativo com minha alma. Àquilo eu dava minha palavra.

– Tu... Pequena criança maldita. É como dizem: pai suicida, filho suicida. – brincou, dando aquele sorriso que eu detestava – Há tempos te desejo em meu mundo. Sabes disso, tu não sabes? Fiques contente. Estou aqui para te satisfazeres.

Tentei proferir algo, mas minha língua parecia que estava enrolada e coloda no céu de minha boca. Nem ao menos sarcástico, muito menos irônico, eu poderia ser.

– Desenrola-te a tua língua! – mandou-me e quando dei por mim, as palavras já fluíam sem eu perceber.

– Sou privilegiado?

– Não aches que tens cacife para tanto. A verdade é que em toda eternidade, eu apenas levei pessoalmente duas ou três pessoas. Uma delas, tu deves conhecer. Adolf Hitler. – assenti com a cabeça. – Pois bem, aquele fiz questão.

– Me compara a um lunático?

– Tu que te tomas dessa forma. Nada disse quanto a isso. Admirava-o porque era forte. Lutava pelo o que achava certo... também pelo o que sabia que era errado, mas acima de tudo, ele foi corajoso o suficiente para sacanear Zeus, suicidando-se. Isso sim foi golpe de mestre. Falarsobre Deus e cometer um gravíssimo pecado contra ele. Nem eu teria pensado em tanto. Tu, eu levo porque desperdiçastes a tua vida por vontade própria e culpas a Zeus, enquanto rezas para o mesmo. Tu és a contradição em pessoa. E eu adoro isso.

– Você não veio para conversar comigo.

– Vim para fazer o que tu já sabes. Sem chances de volta dessa vez. Estás morto há alguns minutos. Te importas de conversamos mais tarde? Tenho um mundo a ruir e muitas almas a corromper. Últimas palavras? Algum desejo?

Respondi-lhe a primeira coisa que me veio a mente.

– Que meu pai seja perdoado pelo seu suicídio.

– Tudo bem. Vamos! – disse-me com aquele sorriso sarcástico que me arrepia até os pêlos mortos.

Apesar de conseguir falar, não podia me mover e continuava a não respirar. Sentia-me um peso morto e aquela não era uma boa sensação. Ele pisou dentro do barco e se aproximou de mim num passo. Puxou-me pelos cabelos e eu não senti dor. Sabia que ele estava torcendo os fios, mas mesmo assim ainda não o sentia. Até que eu o vi se afastar com um tufo dos meus longos cabelos em sua mão.

Eu não conseguia compreender. Hades estava com uma feição nada agradável em seu rosto. Será que eu estava tão pesado assim pela água que eu tinha ingerido? Foi então que senti uma outra presença. Calma e compreensível, calorosa e amorosa. E eu não me sentia estranho por me sentir daquela forma.

Vi mechas de cabelo roxos vagarem perante minha visão e então, percebi que uma mulher estava agachada ao meu lado dentro do barco. Uma deusa. Aquilo era possível?

– Não dessa vez! – resmungou Hades, jogando meus cabelos ao mar.

– Ordens superiores.

– Eu me recuso a deixá-lo ir em paz para o paraíso. Tu sabes que ele não merece.

– Realmente, mas ele tem direito a chance. – disse a mulher.

– Chance? – eu ri por dentro, notando que Hades não havia percebido que eu o havia enganado – Maldita seja sua existência, desgraçado. Sacrifício? Como eu me deixei levar?

Hades trocou olhares com a deusa que ali estava e sorriu novamente. Aquele sorriso não me fazia sentir bem. Algo de muito errado aconteceria comigo. A deusa assentiu o acordo tácito deles e Hades aproximou sua mão dos meus olhos, tampando minha visão.

Quando abri-os novamente, engasguei-me com o ar entrando profundamente em meu ser. Remexi-me sobre a areia e procurei forçar a meus olhos para enxergar. Estranhei. Eu estava respirando e me mexendo? Algo estava muito errado. Pus minhas mãos perante meus olhos, em seguida coloquei-as sobre eles. Constatei minha suposição. Eu estava cego.


Por Arashi Kaminari, 23 de junho de 2005.