Prólogo
"Bom dia, Shijima!"
A vozinha eletrônica infiltrou o cérebro dele lentamente, lembrando-o da responsabilidade. Outro dia estava nascendo. O calor do sol, entrando pelas persianas e incidindo em suas costas, estava se tornando desconfortável a cada segundo, embora fosse familiar.
"Bom dia, Shijima!"
Ora essa. Já era hora de acordar. No entanto, Shijima não queria abrir seus olhos. Não só não abria apenas por falta de vontade, mas também porque não conseguia. Continuar na cama parecia ser a escolha de uma vida. Nada de mal aconteceria se ele permanecesse ali. Porém, ele já havia tentado.
"Bom dia, Shiji-"
Chutou o ar a esmo, e conseguiu derrubar o rádio-relógio do criado-mudo. Ele pôde ouvir um baque surdo, e com isso concluiu que mesmo assim, o objeto ainda não havia quebrado. Além disso, o esforço que gastou no chute já o havia acordado por completo. Derrota.
O aparelho, virado de cabeça para baixo no chão, continuava a gritar o nome de Shijima. Mesmo com a visão ainda turva e remelada, o garoto ainda pôde observar a telinha de LED que piscava constantemente o texto "Bom dia, Shijima", junto com uma carinha feliz. Ele se questionou porque construiu isso.
Sentado na beirada da cama, ele respirou fundo, e se empurrou para seus dois pés. Dali, cutucou o objeto com o pé, desativando o alarme, e foi se arrastando até o banheiro, encarando o espelho. Lavou o rosto. Embora ele se lembrasse de não ter conseguido dormir o bastante ultimamente, nada havia mudado. Sem olheiras, sem marcas de cansaço. Depois de um lento asseio, escovou os dentes, vestiu sua camisa e calça jeans cargo surradas, suas roupas favoritas, e prosseguiu para a cozinha no mesmo passo vagaroso.
O mesmo cheiro de panquecas que vinha de lá todos os dias já estava insuportável, sem contar Bob Marley tocando baixinho no rádio. No entanto, ele não poderia reclamar. A irritação que Shijima sentia diariamente jamais justificaria ver seu pai decepcionado por causa disso. Ao entrar, lá estava ele, fazendo alegremente as panquecas e cantarolando do jeito que sabia a música em inglês. Shijima puxou uma das cadeiras e se sentou à mesa, puxando uma caneca e a garrafa de café para perto de si.
- Ora, vejam só. - chamou Mako, se virando para o garoto com seu típico sorriso meio torto, segurando uma espátula na mão. - Se não é o Super Inventor de Nível Colegial. Que honra recebê-lo na...
- ...Cozinha da família Akasa - completou Shijima, despejando o café na caneca. - Bom dia, pai.
- Ué - o homem se espantou. - Como sabia o que eu ia dizer?
- Sei lá. - respondeu de forma robótica, do mesmo jeito que enchia a caneca. - Intuição.
- Shijima. - Mako tomou a garrafa das mãos do garoto, subitamente despertando-o. A caneca estava quase a transbordar, e ele não havia se dado conta. - Seu café.
- Ah - ele piscou algumas vezes, meio desnorteado, e levou a mão ao café. - Valeu, pai.
Mako desligou o fogão, serviu as panquecas para o filho, e se virou de novo para ele, inclinando-se e apoiando seus grossos braços sobre o encosto da cadeira. Shijima estava comendo novamente de forma calculada e lenta, como se estivesse em modo automático, sem ao menos prestar atenção no que estava fazendo, até notar que estava sendo encarado pelo pai, e então olhou para ele. Sua testa estava preocupadamente franzida, e as densas sobrancelhas carmesim, arqueadas. Ficaram se entreolhando por alguns segundos, calados, com os únicos barulhos distinguíveis sendo a voz de Bob Marley e a mastigação de Shijima.
- Que foi - o garoto quebrou o silêncio.
- Está tudo bem, Shijima? - interrogou Mako, num tom terno.
- Tá sim - respondeu, seco. - Por quê?
- É seu primeiro dia de aula na Academia Hope's Peak. - explicou o homem. - Você estava tão animado, tão vivo e ansioso pra esse dia ontem que se jogou na cama quatro horas antes do que de costume para poder acordar disposto.
Isso despertou um sorrisinho em Shijima, e ele desviou o olhar. Mako havia definitivamente notado uma mudança de comportamento nele, e estava demonstrando se preocupar. Além disso, Shijima ter ido dormir cedo não era o que havia acontecido de fato na noite anterior, mas ele não saberia explicar o que realmente aconteceu.
- Não dormiu direito de ansiedade? - perguntou novamente o homem, mais uma vez sorrindo torto. - Nesse caso, eu posso até entender. Só não quero que tenha um dia ruim hoje.
Shijima não disse nada. Apenas tomou mais um gole de café e fitou um ponto fixo na mesa, pensando numa desculpa para seu aparente cansaço.
- Olha só. - Mako levantou o rosto dele pelo queixo, e o fez olhá-lo nos olhos outra vez. - Se por acaso ocorreu algo que precise contar a alguém, ou... Simplesmente desabafar, eu não sei. Se algo der errado, Shijima, eu estou aqui. - consolou ele lentamente, com sua voz grave.
O rosto do garoto se iluminou gradualmente, e ele assentiu com a cabeça. Em retorno, o pai reabriu seu sorriso brincalhão e deu um beijo em sua testa, ao qual Shijima reagiu com um risinho. Ao alcance de suas mãos, pegou o boné dele, pendurado numa cadeira próxima, e o encaixou na cabeça do garoto, com a aba virada pra frente. Shijima logo virou o boné ao contrário, como de costume, fazendo sua espetada juba encarnada sair pela abertura de trás. Com aparente novo vigor, Shijima voltou a tomar seu café, e Mako se pôs a observá-lo de novo.
- Sua mãe teria orgulho de você pra caramba, sabia? - disse ele. O garoto levantou os olhos para o pai novamente, meio desconcertado, e então focou o relógio atrás dele. Notando para onde o filho olhava, Mako se virou, e após checar o horário, largou a cadeira, desligou o rádio e pôs as mãos na cintura, suspirando pesadamente.
- Já vou indo, pai - Shijima se levantou, tendo terminado o café, e pôs a cadeira de volta no lugar. - Te amo, tá bem? - se aproximou do homem, e se pôs nas pontas dos pés para beijar carinhosamente sua bochecha, já que Mako era enorme, e ele, um "deficiente vertical".
- Vai sair pelos fundos? - perguntou Mako, vendo o filho ir direção pela porta da cozinha em direção ao quintal, onde ficava a pequena oficina de Shijima.
- Pra dar sorte! - Shijima levantou um sinal positivo pro pai, e então se pôs a sair. - Até mais tarde.
- Seus amuletos de sorte são estranhos. - respondeu. - Até mais, filhão.
Fechando a porta, Shijima acelerou para a mini-oficina, onde seu colete de ferramentas estava guardado. Após vesti-lo, deu um jeito de saltar sobre o muro, e seguiu pela rua de trás na direção da Academia Hope's Peak. Não havia ninguém nas ruas, e nenhum sinal de vida nas casas e lojas ao redor, naturalmente. Ele estava sozinho por todo o percurso. Nisto, nada havia mudado. De um dos bolsos do colete, Shijima puxou um saquinho com pedaços de carne, e quase que premonitoriamente, jogou um pedaço à frente de um arbusto ao lado da calçada. No mesmo instante, de lá de dentro saiu um gatinho amarelo, desconfiado e aparentemente atordoado, que agarrou o salgadinho e ficou observando Shijima passar. De fato, o gato estava destinado a passar ali, e Shijima sabia disso. Porém, ele não sabia como.
Por mais estranho que isso pudesse parecer, aquilo não era mais uma estranha rotina. O fato é que Shijima Akasa estava preso em um tipo de laço temporal. Desde quando se lembra, esteve sempre acordando para o mesmo dia, encontrando as mesmas coisas e pessoas, onde que quer que fosse, como se estivessem sido programadas para estar ali em determinado momento. Não importava quando ele iria dormir, ou mesmo se resolvesse passar a noite acordado - no momento em que ele pregasse os olhos, todos os acontecimentos até ali resetariam, ele acordaria em sua cama novamente no seu primeiro dia de aula e teria de lidar com isso indefinidamente. Entretanto, a única coisa que se mantinha eram suas memórias, nas quais ele guardava todos os incontáveis dias exatamente iguais que viveu e dos quais já perdeu a conta.
Houvesse permanecido com a mesma atitude de quando havia acordado, Shijima não se incomodaria com a situação e não teria se importado com suas ações ou palavras. Elas seriam descartadas no dia seguinte, e reiniciadas, esquecidas, como se nunca tivessem acontecido. No entanto, a preocupação de Mako com ele o havia tocado. Indiscutivelmente, havia algo errado, e Mako queria legitimamente ajudar seu filho, mas preso indefinidamente como toda e qualquer outra matéria viva naquele fenômeno, ele era apenas mais um objeto com o qual Shijima estava repetidamente fadado a interagir.
Após caminhar pelo enorme campus em forma de diamante da Academia Hope's Peak, Shijima se viu de frente com o imponente prédio principal. Vários alunos já entravam, sozinhos ou em grupos, provavelmente para não se atrasarem. Não que desse para notar a chegada deles ao campus - para Shijima, não haviam chegado - sempre estiveram ali. Adentrou os portões, e seguiu para dentro do salão, onde todos os alunos se reuniam na direção do ginásio.
Introdução básica ao campus, regras do colégio, grade de conteúdo. Um novo primeiro dia de aula. Shijima apenas seguia sua turma desatento, ficando atrás da massa de alunos levados pelo instrutor. Já sabia de cor cada palavra que ele dizia, cada sala em que iriam passar, cada piadinha infame que ele iria contar. Havia tudo se tornado desimportante, e ele usava aquele tempo apenas para dar atenção aos seus arredores, ou simplesmente ficava brincando com suas ferramentas. Já conhecia o prédio como a palma da mão. Ninguém realmente interagia com ele, e de acordo com suas tentativas prévias, cada um dos alunos e professores respondia às perguntas e às tentativas de interação de Shijima da mesma forma, como se suas reações e frases estivessem pré-prontas, e embora fosse muito tímido e introvertido, ele se utilizava dessa circunstância para "praticar sua comunicação". Permaneceu acompanhando a programação até chegar a hora do intervalo, e com isso, ele foi ao pátio, como de costume. Havia algo que queria observar.
Dentre todos os alunos e professores circulando freneticamente entre todos os prédios através do campus, um havia chamado a atenção especial de Shijima. Um rapaz alto, de óculos e visivelmente robusto, de cabelo espetado claro, usando um sobretudo azul-escuro e botas grossas de estilo militar atravessava diariamente do prédio principal para o complexo dos laboratórios. Não que para Shijima ele fosse de certa forma atraente - "que droga, Shijima", pensava consigo mesmo - mas dentre todos eles, este rapaz possuía uma particularidade. Sempre que Shijima estava em seu campo de visão, no meio da sua caminhada, o sujeito virava o rosto para ele e lhe lançava um olhar rápido e furtivo, para depois continuar a jornada até o prédio de Biologia. Diferentemente de todos os alunos, com seus mais variados talentos, que nem sequer percebiam a existência do garoto até que ele os chamasse a atenção, o rapaz do sobretudo notava que Shijima estava ali, e mais que isso; era como se o olhar dele fosse um sinal, um tipo de convite. Um chamado para ir ter com ele.
Não obstante, Shijima já havia tentado se aproximar dele e interagir. Porém a mesma força que se dedicava a manter Shijima preso nesse dia recorrente parecia ser a mesma que o impedia de chegar perto dele, já que toda vez que tentava, algum evento que não ocorreria num curso (diga-se de passagem) normal daquele dia simplesmente passava a acontecer do nada, fazendo com que o rapaz fosse embora sem que Shijima conseguisse estabelecer contato. O time de baseball inteiro casualmente surgia no caminho entre os dois. Ou então, as líderes de torcida, tornando-o inaudível. As galinhas do viveiro do jardim se soltavam pelo campus e coincidentemente começavam a atacar Shijima. O Super Físico de Nível Colegial acidentalmente derramava pela praça galões de um gel azul repelente que multiplica a força elástica de corpos que entram em contato com ele. Eram miríades de possibilidades diferentes de aproximação que havia tentado, e igualmente, os eventos diferentes que ocorriam para impedir que Shijima falasse com aquele homem.
Naquele dia, Shijima apenas se sentou num banco perto de um chafariz perto do prédio de Biologia, comendo seus pedacinhos de carne. Chegava a hora do cara do sobretudo se aproximar do prédio, ele estava aparentemente vazio. Não havia mais ninguém por ali. E lá vinha ele andando, ininterrupto pelos alunos que corriam ao redor, com as mãos enterradas no bolso. Shijima o fitava impaciente, embora não tivesse nenhum plano na cabeça. Foi se aproximando do prédio, e assim que chegou à entrada, ele bateu os pés no tapete e se virou para Shijima, lançando novamente seu olhar, e se manteve parado ali, na porta. Shijima demorou a processar o momento. Estaria o rapaz, desta vez, esperando ele se aproximar? Num surto de determinação, ele sem pensar saltou do banco onde estava e disparou na direção dele.
- Ei! - gritou ele. O rapaz continuava a fitá-lo. Shijima já estava o alcançando. - Me espera!
Assim que Shijima já estava a uma distância razoável dele, o sujeito se virou novamente para dentro do prédio, e deu alguns curtos passos, e então, a porta se fechou bruscamente, deixando o garoto do lado de fora no momento em que ele iria cruzá-la. Pelo vidro, ele pôde ver o homem se distanciando para além das escadas, e um faxineiro, logo atrás da porta, trancando-a por dentro. Shijima se indignou.
- Tio! Abre essa porta! - ele gritou para o velho, que nem ao menos reagiu. Indiferentemente, pegou uma plaquinha e a pendurou atrás do vidro, saindo despreocupado e deixando Shijima com a mensagem "Fechado para experimentos".
O garoto se encheu de fúria. Começou a chutar a porta e esmurrar o vidro, ineficientemente, gritando para o faxineiro a se distanciar, sem se incomodar com quem estava observando - ninguém estaria. Todos os alunos e funcionários presentes ali continuavam suas atividades como se Shijima não existisse. Ele batia à porta, batia, batia mais vezes, e chutava, e nada acontecia. Ninguém o notava. O rapaz do sobretudo tinha ido embora. Shijima falhou outra vez.
Eventualmente desistindo, Shijima novamente pensou no que o rapaz queria mostrar. Embora houvesse esperado por ele, não hesitou em simplesmente sair quando ele se aproximou. O faxineiro surgiu sem que ele se desse conta, trancou a porta para que ele não pudesse passar, e então Shijima novamente se tornou invisível para todos. A realidade daquele lugar, seja lá o que fosse, estava se tornando clara - enquanto as ações diretas de Shijima não afetavam em nada o ambiente ou as pessoas, elas indiretamente mudavam o curso de todo o resto. Tudo o que ele causasse permaneceria até o fim do dia. O rapaz do sobretudo obviamente sabia disso. E era isso que ele queria que Shijima soubesse.
Estava decidido. Aquele cara saberia o que estava acontecendo. Ele teria o poder de resolver a situação, e então, quem sabe, tirar Shijima daquele loop infernal. Tinha de falar com ele, e enquanto houvesse alguém naquele lugar, haveria quem tentasse impedir que isso acontecesse. Tiraria todos dali, não importava o que custasse. Não hesitante, correu de volta para casa imediatamente, ignorando o resto das aulas.
Ele tinha um plano em mente.
