O VIGARISTA
Nota da Autora: Bom, pessoal, há muito tempo eu gostaria de escrever uma história "fora da realidade" para os personagens de J. K. Rowling. Um universo paralelo, completamente diferente do original. A oportunidade surgiu, e eu resolvi aproveitar. Mas quero deixar claro que este enredo não é meu. Este fic é uma adaptação de um livro de Ed McBain, chamado "O Vigarista". Na trama, Harry e os outros são adultos e trouxas, isto é, não há magia. Quero completar também que a história se passa em Londres, por volta dos anos 60. E estou usando os nomes da versão inglesa. Recomendo que menores de 14 anos não leiam (cenas de violência, sexo e algumas expressões e descrições fortes demais). Espero que gostem deste meu novo trabalho. Boa leitura.
Esclarecimento: Harry Potter e os demais personagens não me pertencem. São de J. K. Rowling. Eu sou apenas uma fã entusiasmada que não resiste ao impulso de escrever algo sobre eles! Por favor, não me processem!
Sinopse: Num intervalo de poucas semanas, dois cadáveres de mulher em avançado estado de decomposição são encontrados à margem de um rio. Características comuns aos dois corpos intrigam o detetive Harry Potter e sua equipe de investigadores do 87o. Distrito: uma tatuagem em forma de coração na mão direita e uma considerável quantidade de arsênico no estômago...
Capítulo 01
Todo mundo tem o direito de ganhar a vida.
Nos dias de hoje, vive-se assim: você sai, sua como um porco e junta uma grana. Investe a grana em limão e açúcar. A água e o gelo são de graça. Monta uma barraquinha de limonada na calçada e logo você está tirando cinco pratas por semana. Com o lucro, você compra mais limão e açúcar, espalha mais barracas pela rua e logo não vai dar conta sozinho do negócio: tem de contratar gente pra trabalhar pra você. Daí começa a pôr a limonada em garrafas, depois em latas e, antes que você perceba, já está congelando o produto e distribuindo por uma cadeia de lojas por todo o país. Então você compra uma enorme casa de campo com piscina e vai a coquetéis onde a limonada que você fabrica é servida com uma gotinha de gim pra animar... Você chegou lá!
A lei não questiona o inalienável direito de um homem de batalhar por uma grana. A lei só questiona o método e os meios de consegui-la. Se, por exemplo, você tem uma vocação especial para arrombar cofres, a lei pode ficar de olho. Ou se você gosta de atacar as pessoas para bater carteiras, não deve achar ruim se a lei o encarar com algum desprezo. Ou se, no limite, você ganha a vida usando um revólver, seu revólver, apertando o gatilho para, de fato, matar pessoas – então...
Apesar de tudo, você pode ser um cavalheiro nesses assuntos. Se acredita que o crime é a maneira mais rápida, segura e excitante de ganhar muito dinheiro em pouquíssimo tempo, ainda assim pode agir como um cavalheiro.
Você pode enganar as pessoas. Não precisa apelar para a violência. Não precisa comprar um caríssimo jogo de ferramentas de arrombador. Nem ter de arranjar uma arma. Nem ficar imaginando planos complicados para entrar e sair de bancos. Não precisa instalar no porão de sua casa uma impressora para falsificar dinheiro.
Você pode continuar sendo um cavalheiro. Levar uma vida de românticas aventuras criminosas, conhecer o mundo, conviver com pessoas agradáveis, beber muitos drinques refinados e ainda assim ganhar bastante dinheiro – apenas enganando as pessoas.
Em outras palavras, você pode tornar-se um vigarista.
* * *
A jovem negra estava muito nervosa. Nervosa porque se encontrava em uma delegacia de polícia falando com dois investigadores. Os dois a tratavam cordialmente, o que não a fazia se sentir menos tola – e ela achava que era isso que a deixava tão nervosa.
Morava na cidade há dois anos. Viera do sul e sabia que, naquela época, era inexperiente e que não tinha o sotaque das pessoas do norte, mas isso ficara para trás e hoje se considerava bem esperta. Sabia que quanto mais alto, maior a queda, então ela ficou ali, sentada e calada, o nervosismo todo concentrado em suas mãos, agarradas na bolsa preta que carregava.
Era um agradável dia de abril, e ela permanecia na sala dos investigadores do 87o. Distrito. Chovera a pouco, e a relva do parque, do outro lado da rua, espalhava no ar um aroma doce e puro. De alguma maneira, a pureza e a doçura tinham conseguido atravessar a rua e penetrar pelas janelas gradeadas. A delegacia não costumava cheirar tão bem.
— Estou me sentindo terrivelmente tola – murmurou a jovem.
— Repita seu nome, senhorita. – pediu Weasley, um detetive novato. Ele era alto, ruivo, olhos azuis, rosto sardento e de aparência jovem. Viera transferido de outro departamento e estava se acostumando ao dia-a-dia do Distrito. E por ser o novato do grupo, suas perguntas não eram as mais adequadas: ainda havia muito a aprender na arte de interrogar. Às vezes, ele mesmo se sentia ridículo fazendo certas perguntas. Assim, Ronald Weasley sabia exatamente como se sentia a garota, sentada naquela cadeira dura.
— Meu nome é Angelina. Angelina Jonhson.
— Onde você mora, Angelina?
— Bem... Trabalho numa casa fora da cidade. Sou doméstica, sabe? Trabalho para eles há seis meses. O Sr. e a Sra. Haines. – Ela fez uma pausa, como se esperasse que Ronald soubesse quem eram seus patrões. Mas ele não sabia.
— Eu já devia ter voltado... – ela continuou. Sabe, quinta-feira é meu dia de folga. Quinta e domingo. Eu venho para a cidade todas as quintas. O Sr. Haines me leva até a estação e a Sra. Haines me pega na volta. Eu já devia ter voltado, mas quis vir aqui contar o que aconteceu. Telefonei para a Sra. Haines, e ela disse que eu não podia deixar de vir... Entende?
— Entendo – concordou Ronald. — Você tem um apartamento na cidade?
— Aqui eu moro com minha prima. Isabel Jonhson? – outra vez ela disse o nome como quem faz uma pergunta. Ronald também não conhecia Isabel Johnson.
— Muito bem, Angelina, o que aconteceu? – perguntou o outro detetive. Ele ficara quieto até aquele momento, deixando as coisas por conta de Weasley, mas Sirius Black era um investigador mais experiente, conhecido por sua impaciência. Às vezes sua impaciência atrapalhava a profissão que escolhera, mas era compensada por outro traço de sua personalidade – a obstinação. Quando Black pegava um caso, não sossegava até vê-lo resolvido.
— Eu desci do trem ontem de manhã – Angelina começou a falar. — Eu tomo o das oito e dezessete. Com o Sr. Haines. Não me sento com ele, é claro... Ele está sempre falando de negócios com os amigos dele... Ele trabalha na área de relações públicas? – Novamente a pergunta. Ronald balançou a cabeça.
— Continue – Sirius interferiu, impaciente.
— Bem, chegando à cidade, eu desci do trem e andava tranqüilamente quando o tal homem veio em minha direção.
— Onde foi isso? – indagou Sirius.
— Dentro da estação.
— Continue.
— Ele me cumprimentou e quis saber se eu era nova na cidade. Respondi que não, que morava no norte há dois anos, mas trabalhava fora da cidade. Ele parecia ser um cara muito legal, bem vestido, sabe? Respeitável?
— Sim – afirmou Ronald.
— Seja como for, ele me disse que era padre. Ele até parecia ser um padre mesmo. Aí, ele me abençoou e recomendou-me que tomasse muito cuidado na cidade grande porque aqui tem todo o tipo de armadilha para uma jovem inocente. Pessoas que gostariam de me prejudicar?
Outra vez a interrogação, e de novo Ronald disse 'sim' e, imediatamente, recriminou-se por cair na cilada lingüística da garota.
— Ele me alertou que eu tomasse cuidado principalmente com dinheiro, porque existem pessoas que fazem qualquer coisa para pôr as mãos nele. Ele me perguntou se eu tinha dinheiro. Respondi que tinha uma nota de cinco libras.
— Ele era branco ou negro? – quis saber Sirius.
— Ele era branco – ela respondeu, receosa, olhando de relance para o detetive Weasley.
— Continue – ordenou Black.
A jovem contou como o falso padre a iludiu, fingindo abençoar uma cédula de cinco libras dele. Ele pusera a cédula num envelope branco com uma cruz. Depois da benção, ele guardara o envelope no bolso do paletó. Conversaram por mais algum tempo e quando ela se despedira, ele insistiu para que ela trocasse seu dinheiro pelo dinheiro abençoado.
— E hoje de manhã?
— Bem, essa manhã, eu estava pronta para voltar à estação, quando vi o envelope na mina bolsa e resolvi abrir...
— Só que não havia nada dentro – antecipou-se Sirius.
— Pois é. Só um guardanapo de papel dobrado ao meio. Ele deve ter trocado o envelope enquanto conversávamos. Não sei o que farei agora. Eu precisava daquele dinheiro. Vocês vão pegá-lo, não?
— Vamos tentar – Weasley afirmou. — Você pode descrever o homem para nós?
— Bem, não reparei muito... Ele era bonito, bem vestido...
— O que ele usava? – perguntou Sirius.
— Um terno azul marinho. Ou preto, não sei. Só sei que era escuro.
— Gravata?
— Uma gravata borboleta, eu acho.
O interrogatório continuou até que Angelina Johnson não tivesse mais nada a acrescentar. Os dois detetives conduziram a jovem até a divisória de madeira que separava a sala dos investigadores do corredor externo e a observaram sair pelo corredor e descer a escada que conduzia ao andar térreo do edifício.
— O que você acha? – Ronald perguntou a Sirius.
— O velho conto-do-vigário... – concluiu o investigador mais velho. — Há centenas de casos como esse. Acho melhor colocarmos alguns homens na estação para tentar pegar o tal padre.
— Acha que vamos pegá-lo? – Ronald tinha suas dúvidas.
— Não sei. Ele provavelmente não vai estar no mesmo lugar amanhã. É como eu sempre digo, Ron, cada dia aumenta o número de vigaristas...
— Bem, não é tão grave assim – o ruivo retrucou.
— Um crime é sempre grave – afirmou Black categórico.
— Eu sei – concordou Ron. — O que eu quis dizer é que, fora uns trocados perdidos, ninguém foi seriamente ferido.
* * *
Já a moça no rio tinha sido seriamente prejudicada.
Seu corpo, boiando, foi parar nas rochas perto de uma ponte e três crianças que a princípio não sabiam do que se tratava, mas quando perceberam, correram como loucas à procura de um guarda.
O corpo dela ainda permanecia nas rochas quando o policial chegou. Ele não gostava de ver cadáveres, principalmente quando eles ficavam na água por muito tempo. Inchado e imenso, aquele não parecia ser o corpo de uma pessoa: totalmente decomposto, o cabelo fora completamente levado pelas águas; havia uns filamentos fibrosos de carne presos ao sutiã da moça que, rasgado pela pressão dos gases do corpo, ainda prendia-se milagrosamente a ela, embora o resto de sua roupa já não existisse mais. Ela também não tinha mais os dentes inferiores da frente.
O guarda tentou controlar a sensação horrível que invadiu seu estômago. Foi até o telefone mais próximo e ligou para o 87o. Distrito.
O sargento Vector foi quem atendeu.
— 87o. Distrito, bom dia.
— Aqui é o Creevey.
— Sim?
— Tem um corpo flutuando perto da ponte. Um cadáver na água.
Ele deu a Vector os detalhes do caso e voltou para perto do corpo nas rochas, banhadas pelo sol de abril.
* * *
O detetive Harry Potter ficava feliz quando fazia sol. Não que ele não gostasse de chuva. Afinal, os seres vivos precisavam dela, em especial as plantas. E embora parecesse poético demais, andar sem chapéu na chuva de primavera fora um dos passatempos favoritos de Harry, antes que cometesse a grande besteira de sua vida.
E esta grande besteira foi deixar que um jovem drogado intrometido lhe atacasse, acertando sua cabeça. Ele quase conseguira escutar os anjos, a morte estava bem próxima. E então, de alguma maneira, as nuvens se foram e a escuridão tenebrosa se dissipou, aos poucos dando lugar ao rosto de sua mulher, Ginny. Lentamente o quarto do hospital se fez nítido. Ela curvou-se sobre a cama e deixou as lágrimas quentes rolarem. Harry murmurou com a voz rouca: "É melhor cancelar o enterro", na tentativa de fazer uma piada, que não teve muita graça. Ela o abraçou com força, sem dizer uma palavra, porque não conseguia nem falar, nem ouvir. Ginny se agarrou nele e colou sua boca na dele como querendo arrancar aquela piada boba. Depois cobriu Harry de beijos, segurando sua mão o tempo todo, tomando cuidado e evitando tocar no ferimento na testa.
Ele escapara. E com uma cicatriz na cabeça, para lhe lembrar sempre de ser cauteloso. O único detalhe era que, quando chovia, sua cicatriz doía. Ele já ouvira outros relatos de policiais que reclamavam de suas cicatrizes e pensara que isso era papo de tira. Bem, esse não era seu caso. Sua cicatriz latejava e incomodava quando chovia, e era por isso ele estava feliz: a chuva havia passado e o sol brilhava.
E brilhava naquilo que já fora um dia uma garota. Harry olhava para a máscara que a morte forjara. Por um momento, houve dor nos seus olhos, depois raiva. Mas ambas passaram. Ele se dirigiu ao guarda Creevey.
— Foi você quem encontrou o corpo, Colin?
— Umas crianças – Creevey afirmou. — Elas vieram correndo me avisar. Deus meu, é uma fria, não é?
— Quase sempre é – respondeu Harry, antes de começar seu serviço.
Ele olhou para o corpo de novo e, para cumprir algumas formalidades da polícia no caso de um corpo desconhecido, pegou um pequeno bloco de notas preto no bolso traseiro. Abriu-o, tirou o lápis da alça de couro e começou a escrever. Local onde o corpo foi encontrado... Hora em que foi encontrado... Ele se virou para Creevey antes de continuar.
— A que horas você chegou aqui, Colin?
O patrulheiro consultou o relógio.
— Diria que foi por volta de uma e quinze, Harry. Tinha acabado de sair...
— Uma e quinze – Potter repetiu, enquanto anotava a informação.
Ele continuou as anotações, porém não havia muitos dados para preencher. O corpo da mulher estava em adiantado estado de putrefação. E Harry não podia, por exemplo, dar descrição dos olhos porque eles não existiam mais. Ele também deveria anotar a cor dos cabelos dela, mas a água o levara todo. A única opção que ele tinha era uma descrição superficial: cabelos inexistentes, pêlos pubianos loiros. Não havia roupas ou jóias ou qualquer tipo de objeto que pudesse identificar a moça. Sobrara apenas o sutiã. Encerrou seu pequeno relatório com a palavra PRESUNTO grande e sublinhada. Essa palavra, para qualquer um do ramo, resumia a história. E assim, ele fechou o bloco.
— O que você acha? – Colin perguntou.
— Você quer saber a estatística ou posso chutar? – zombou Harry.
— Sei lá! Só quero saber sua opinião...
— Bem, pela estatística, esta moça não deveria estar morta. É um erro.
— Como assim?
— Pelo aspecto do corpo, eu diria que está na água há uns três ou quatro meses. Provavelmente alguém notificou seu desaparecimento, supondo que ela tenha família ou amigos, o que faz dela uma pessoa tecnicamente desaparecida.
— Ah, é? – balbuciou Colin, como sempre impressionado com as coisas que Potter afirmava. O patrulheiro Creevey tinha uma grande admiração por Harry. Ele achava o colega um policial inteligente, esperto, bem informado e, quando preciso, durão. Enfim, uma combinação imbatível.
— Vamos examinar as estatísticas de pessoas desaparecidas... – prosseguiu o detetive. — Temos aqui uma mulher. Bem, normalmente há vinte e cinco por cento a mais de homens desaparecidos do que mulheres.
— Ah, é? – Colin estava avidamente interessado.
— Outra coisa, ela tinha provavelmente entre vinte e cinco e trinta anos. A idade mais comum de pessoas desaparecidas é quinze.
— Ah, é?
— E mais, estamos em abril. O mês em que mais some gente é maio e, em seguida, setembro.
— E o que você acha de tudo isso? – quis saber Colin.
— Estatisticamente, está tudo errado... Mas isso não a fará ressuscitar... – uma nuvem de tristeza passou pelos olhos verdes do investigador.
— Não mesmo – concordou o patrulheiro, sacudindo a cabeça.
Os dois ficaram conversando por mais alguns instantes até a chegada da polícia técnica e dos fotógrafos. Nessa altura das investigações, o interesse de Potter era superficial, mas agora a perícia dispensaria total atenção a cada detalhe do corpo decomposto e à única peça de roupa que ainda existia.
A equipe da tenente McGonagall era a melhor de toda a região e, se houvesse algo naquele corpo ou no sutiã que pudesse identificar a vítima, com certeza ela encontraria. Minerva McGonagall era uma mulher de meia idade, de postura inflexível. Usava óculos de lentes quadradas e havia um certo refinamento nela, que não combinava nada com o fato de ela ter que lidar diariamente com fatos escabrosos e, freqüentemente, com a morte.
O sutiã foi levado para o laboratório da perícia para ser analisado. Os homens de McGonagall tentariam encontrar alguma marca no tecido que pudesse dar alguma pista sobre a moça morta. No entanto, depois de testes físicos e químicos, os peritos nada descobriram na peça íntima.
Enquanto isso, no necrotério, o médico legista era um homem baixinho chamado Filius Flitwick. Ele examinava cadáveres há muitos anos, mas ainda não se acostumara com eles. Já calculara que a morta devia ter por volta de trinta e cinco anos de idade. Calculara também o peso, graças à estrutura óssea avantajada e à altura; e que os cabelos eram provavelmente loiros, por causa dos pêlos pubianos.
Flitwick também fizera uma investigação atenta no corpo para identificar marcas e cicatrizes e chegara a algumas conclusões quanto à vítima: ela tinha sido operada de apendicite, fora vacinada na coxa e possuía marcas de nascença na base da coluna vertebral. Mas o que chamou a atenção do legista foi a pequena tatuagem encontrada na mão direita, entre o polegar e o indicador. Era um desenho simples, um coração, cuja extremidade estava voltada para o braço. E havia uma única palavra escrita: MED.
Outro detalhe atentado pelo médico foi que não havia água no lado esquerdo do coração. E havia também uma considerável quantidade de arsênico no estômago.
* * *
Havia alguma coisa em necrotérios que fazia Harry Potter estremecer. Havia algo meio mórbido em ficar numa sala cheia de cadáveres. Ainda mais com aquele médico legista. Em sua profissão, Harry conhecera vários homens cuja ocupação era a morte, com Flitwick, entretanto, a coisa mais parecia ser uma preocupação do que uma ocupação. Parado diante do colega, o detetive sentiu o estômago revirar e controlou a vontade de sair correndo e tomar um banho.
Os dois estavam numa sala limpa e desinfetada, ao lado de uma mesa de aço inoxidável reluzente, com vários recipientes e uma pia brilhante, para recolher o sangue. E havia um banquinho, pois Filius Flitwick, apesar de ser o melhor legista do distrito, era baixo, praticamente um anão. Usava os cabelos em desalinho e tinha os olhos mais estranhos que Potter conhecia. Não só pela cor (eles eram violetas), mas também pelo fato do médico parecer enxergar além da alma das pessoas.
Harry, por sua vez, era um tipo ágil e atlético. Era alto e esguio. Tinha olhos muito verdes e usava óculos de aros redondos (que lhe dava um charme a mais, segundo sua esposa). Os cabelos escuros eram espessos e rebeldes, incontroláveis. Vestia uma jaqueta esporte cinza e calças pretas. A jaqueta cobria toda a extensão de seus ombros largos para, repentinamente, fazer um ângulo reto e se ajustar aos quadris estreitos e a barriga chata e dura.
— O que você acha disso? – Harry perguntou a Flitwick.
— Odeio os presuntos flutuantes – o legista respondeu, balançando vigorosamente a cabeça. — Sabe, eles sempre me mandam essas coisas... Quem está aqui há um bom tempo pode escolher o que fazer. Não é o meu caso. Portanto sempre que chega um maldito presunto... E por que justo eu que tenho que ficar com esses defuntos?
— Alguém tem que ficar com eles...
— Claro, mas por que eu? Olha, eu não reclamo de nada que me mandam. Tivemos aqui cadáveres tão queimados que ninguém diria que eram humanos. Já viu carne carbonizada? Tá, mas eu reclamo? Recebemos vítimas de acidentes de carro que a cabeça do cara está pendurada no pescoço por um fiapo de pele. Eu encaro essa... Afinal, eu sou um médico legista e a gente tem que pegar as coisas boas e as ruins. Mas por que eu tenho que pegar todos os presuntos flutuantes? Por que é que ninguém mais os recebe? – Depois de uma pausa pra respirar, o baixinho continuou. — Não há ninguém neste maldito departamento que trabalhe melhor do que eu. O caso é que eu tenho pouco tempo de casa... Quem você acha que recebe os serviços agradáveis e importantes? Os velhos desgraçados que cortam cadáveres há quarenta anos. Mas eu faço um trabalho limpo e completo. Eu sou limpo e completo. Não deixo passar nada, nadinha. Conclusão: os flutuantes sobram pra mim!
Harry se segurou para não praguejar. Certo, todo mundo tinha direito de reclamar de seu trabalho, ainda mais se este trabalho mexesse com mortos, mas Harry não tinha tempo nem paciência para ficar escutando as queixas do colega.
— Talvez eles achem você tão bom que não confiariam em ninguém mais – disse o investigador secamente, esperando que o médico caísse nessa e parasse de se lamuriar.
— Ahn? Bom?
— Claro, Flitwick. Você é um craque. Os flutuantes não são moleza. Não se pode confiá-los a um maldito açougueiro qualquer.
— Nunca pensei nisso assim antes... – ponderou o legista com um leve sorriso.
E aproveitando a oportunidade, Harry mudou completamente de assunto.
— E o que você acha deste caso?
— Ah, sim – o sorriso sumiu, e a expressão de Flitwick tornou-se totalmente fechada. — Bom, eu fiz um relatório dizendo o que acho desta droga toda. Eu diria que o corpo esteve na água por uns quatro meses. Eu dissequei o coração.
— E?
— Você entende alguma coisa de coração?
— Não muito.
— Ventrículo direito e esquerdo, sabe como é? O sangue passa, é bombeado para o corpo todo... Ah! Que inferno! Não posso dar uma aula de anatomia para um leigo.
— Não pedi que me desse uma – ironizou Harry.
— De qualquer modo, fiz alguns testes. A idéia é que se alguém morre afogado, a água passa dos pulmões para o sangue. Desse modo, podemos afirmar com segurança se uma pessoa morreu afogada em água doce ou salgada.
— Como assim?
— Se foi em água doce, o sangue do lado esquerdo tem um nível de cloreto mais baixo que o normal. Na água salgada, o sangue terá um nível de cloreto acima do normal.
— Essa moça foi encontrada no rio Tamisa, isso quer dizer água doce, não?
— Claro, mas...
— Mas?
— Se uma pessoa foi colocada na água depois de morta, é impossível que a água entre na parte esquerda do coração. Em outras palavras se, durante a autópsia, não encontrarmos água no lado esquerdo de seu coração, podemos admitir com segurança que a pessoa não morreu afogada. Ela morreu antes de ser posta na água.
Aquilo atraiu toda a atenção de Harry para o caso.
— E?
— Bem, essa moça não tinha uma gota sequer de água no lado esquerdo do coração, Potter. Ela não morreu afogada.
— E como ela morreu?
— Envenenamento agudo por arsênico. A maior parte da droga foi encontrada no estômago e nos intestinos, o que indica que foi ingerido por via oral. O organismo todo não estava impregnado, de modo que podemos afastar a hipótese de envenenamento crônico. Esse foi agudo. Ela pode ter morrido poucas horas depois de ter engolido o arsênico. — Flitwick coçou a cabeça e olhou fixamente para o investigador. — De fato, Potter, o que temos aqui é um homicídio.
* ~ * ~ * ~ *
Continua...
