DISCLAIMER: Personagens e Bleach pertencem a Kuko Tite.


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A última vez que deixara Tóquio tinha sido há dez anos. Foi logo após receber seu título de mestre em Ciências Políticas pela prestigiada Universidade de Tóquio, que Kuchiki Byakuya retornara para Nagoya, sua terra natal. Agora, a pedido do pai, regressara à cidade que nunca dorme.

Eram 14h30. O voo de Byakuya havia atrasado quatro horas, mas, finalmente aterrissara no aeroporto de Haneda há pouco menos de quarenta minutos. Em consequência disso, foi preciso adiar seu encontro com o agente da imobiliária de Tóquio, com quem acertaria os documentos e pagamentos do loft onde ficaria nos próximos meses. Ainda atrasou-se um pouco mais após desembarcar, pois a BMW que o esperava nas imediações do aeroporto não era o mesmo modelo que havia combinado com a locadora dia anterior. Porém, em vista dos inconvenientes, desistiu da negociação e partiu com aquela mesmo.

Sempre que possível optava por dirigir ao invés de seguir o trajeto no banco do passageiro. Com o cargo que iria ocupar na próxima semana, o uso de um motorista se mostraria uma necessidade. Mas, enquanto ainda tinha sua liberdade, preferia ele mesmo encarar as rodovias. Gostava da velocidade, da ventania cantando através das janelas. Para ele, dirigir era um exercício de meditação e solitude.

Ao adentrar-se na região central, no entanto, tudo mudava de figura. O trânsito andava devagar e os ruídos e movimentação pareciam um organismo vivo, prestes a perder o controle. Gostava e detestava tudo aquilo. Estava no distrito de Chiyoda, próximo do Prédio da Dieta nacional, de onde seu pai, por acaso, era o líder parlamentar. Talvez eu devesse descer e cumprimentá-lo, pensou, mas, logo descartou a ideia, em vista da agitação que a visita de um Kuchiki causaria nos entornos. Terei tempo depois que arranjar tudo que preciso durante a semana.

Seu destino principal, daqui a sete dias, seria o distrito de Shinjuku. Mais especificamente, o Edifício do Governo Metropolitano de Tóquio. Lá ocuparia a cadeira de representante do Partido Democrático na Assembleia. O último representante havia sido exonerado por causar um "mal estar" não devidamente explicado com os outros membros da organização. No entanto, via aquilo apenas como medida temporária para auxiliar o pai, até que alguém de perfil mais condizente dentro do partido se mostrasse disponível. Não fazia parte dos planos de Byakuya permanecer em Tóquio. Deixara negócios pendentes em Nagoya: um cargo de prestígio acadêmico na universidade municipal, e, também, seu divórcio.

O sinal acabava de abrir. Atravessava a avenida do Teatro Nacional, onde viu o cartaz anunciando uma peça-norte americana que lhe chamou a atenção. Fez a anotação mental e girou calmamente o volante, para entrar na rua onde residia o hotel em que fizera sua reserva. O que aconteceu a seguir foi muito rápido. Seu corpo projetara para frente como se tivesse sido lançado no ar e seu rosto foi atingido pela bofetada do airbag. No segundo seguinte já havia aglomeração, buzinas e luzes piscando descontroladas ao redor.

Byakuya permaneceu no carro, perplexo, enquanto tentava enxergar a sua frente, através do para-brisa trincado. Um homem apareceu na sua janela de motorista perguntando se estava tudo bem, se havia se ferido, se precisava de ajuda. Destrancou a porta do carro e procurou nas proximidades o responsável pelo veículo da colisão, e provavelmente seria o rapaz tatuado de cabelo comprido que corria na sua direção.

— Hey, seu maluco, o que pensou que estava fazendo, heim? Entrando de contramão numa rua de mão única? Tá pirado? Bebeu, foi? Quer morrer?

O Kuchiki franziu o cenho para o estardalhaço, odiando ser o alvo principal da lamentável cena. Não respondeu aos ataques, ao invés disso, manteve a compostura. Se o rapaz estava tão empenhado em se comprometer, que o fizesse sozinho. Só prestaria suas explicações diante de uma autoridade. Enquanto alguma não aparecia, tirou a carteira de dentro do paletó, bem como uma caneta e seu talão de cheques.

— Como se chama?

— ...estar indo trabalhar e um filho da... Quê?

O rapaz parecia apenas ter quase a sua idade, mas sem dúvidas era mais novo. Usava lentes quadradas e o cabelo trançado, com a franja presa detrás da orelha. Não havia muita formalidade no que vestia. Camisa social listrada, um blazer preto e calças de um jeans escuro.

— Seu nome completo, por favor.

— É Abarai Renji se quer saber... Ei, peraí, eu te conheço.

— Aqui está. — Byakuya estendeu-lhe o pedaço de papel sem olhá-lo no rosto. Afastou-se, indo na direção do guarda de trânsito que acabara de chegar no local.

Tudo que precisava era resolver o mais depressa possível todo o incidente e desaparecer dali. Se sua identidade fosse trazida a tona por um irresponsável qualquer, o lugar fervilharia de repórteres e curiosos desocupados. E nada pior para a reputação de uma figura prestes a ocupar um cargo público municipal, do que se ver envolvida num desastre de trânsito. Representatividade era tudo. O zelo pela sua imagem era parte da responsabilidade que assumiria daqui alguns dias.

Respondera as perguntas do policial, preenchera as fichas de ocorrência e realizara o teste para detectar se estava dirigindo sob o efeito de álcool. Cumpriu mais algumas formalidades, e resolveu todo o assunto tirando outra folha de cheque da carteira e revelando alguns nomes. Enquanto isso, o rapaz, Renji, passava pelos mesmos processos, com outro oficial. Byakuya tomou distância, chamou um táxi, e depois disso, discou o número do seu pai. O aparelho fez três chamadas quando uma mão em seu ombro direito o interrompeu.

— Senhor.

Era Renji. Que diferença de tratamento.Mudou de atitude e de tom.

— O que é? — disse, monocórdio, guardando o celular no bolso.

— O que significa uma coisa dessas? — Ele estendeu-lhe o cheque. — Dá pra eu comprar dois carros se eu quiser. Não vou aceitar isso. Se quiser acordo, faço acordo, mas não precisa me comprar.

Havia muitas pessoas ao redor. O trânsito estava mais lento por causa do bloqueio, o que facilitava a chegada de bisbilhoteiros. As motos costuravam o trânsito como podiam. Uma delas veio cortando o vento e afundou as rodas numa poça rente ao meio-fio onde Byakuya estava. O esguicho atingiu somente a manga do blazer do Abarai, mas a lama fora certeira o suficiente para destruir o cheque que tinha em mãos. Já Byakuya, bem, não seria exagero, àquela altura, dizer que não deveria ter levantado da cama naquele dia.

Seu terno príncipe-de-gales estava arruinado. O rapaz prontamente lhe ofereceu seu casaco. Não para que ele o vestisse, mas para que ao menos pudesse usar algo limpo para se enxugar, na medida do possível.

— Obrigado.

— Que merda, heim? Espero que não tava arrumado assim pra algum compromisso importante...

— Estava a caminho do hotel, é há uma quadra daqui. Já chamei o táxi.

O Kuchiki entregou-lhe o blazer, que agora também estava inutilizável. O rapaz apanhou o pertence e se sentou num banco que havia ali. Afrouxou a gravata, colocou sua maleta e algumas pastas no colo. Byakuya o acompanhou e acendeu um cigarro.

— Você é mesmo Kuchiki Byakuya, não é?

— Sim.

— Nossa. — Renji ajeitou os óculos no alto do nariz e riu para si mesmo. — Desculpe pelo jeito que falei mais cedo, fiquei alterado. É que o carro não é meu, é do prédio onde trabalho. Vão acabar comigo. Vou ter sorte se não for demitido. Mas senhor também, né, por que estava entrando na contramão?

— Não sou daqui, mas conheço essas ruas, apenas me equivoquei. Faz um tempo desde que não dirijo em Tóquio. — Byakuya deu um trago e virou-se para soltar a fumaça. Ao voltar o rosto, viu por trás do plástico transparente de uma pasta alguns ingressos para um jogo do Tokyo Yakult Swallows. Havia os visto no estádio anos atrás, quando venceram os Chunichi Dragons, na Central League de 2009. Entretanto, não se interessava por esportes.

— Farei outro cheque. — voltou a falar. — Desta vez, diga-me o quanto acha justo.

— Ah, apenas o suficiente para os reparos.

Bom, os faróis da frente estouraram, o capô também sofrera danos pesados, não só na lataria, como também na pintura, além do mais, tinha o para-brisa, que trincara. Byakuya percebeu que não sabia como contabilizar aquelas perdas. Ter o dinheiro sempre a sua disposição fazia com que perdesse a noção de coisas pequenas. Em todo caso, diminuiu o valor anterior pela metade e o entregou.

— Se tiver problemas no emprego, me avise.

Jamais, Renji pensara.

— Estava exagerando, não acho que irão me demitir por isso. Não é fácil achar gente qualificada e disposta a pegar nosso editorial. Todo mundo sempre prefere a coluna de política ou entretenimento...

Aquilo deixou Byakuya um tanto nervoso. Um jornalista? Moveu o pescoço, desconfortável e tragou o restante do cigarro.

— Trabalha para um jornal? Sobre o que escreve?

— Na verdade é numa revista, nosso escritório é bem perto daqui, é o Kasumigaseki, bem ali. — Renji esticou o braço para apontar o famoso arranha-céu — Faço a coluna esportiva. Tem público bem limitado, né... Inclusive, eu tava indo assistir o jogo dos Swallows quando seu carro me pegou. Agora já era.

Um táxi parou na esquina do acidente e Byakuya atentou-se para o sinal que o motorista fez. Despediu-se do Abarai e abriu o porta-malas da BMW para retirar sua bagagem e transferi-la para o outro automóvel. O taxista o ajudou com aquilo, uma vez que não fizera malas para visitar Tóquio a turismo, mas sim, para se mudar.

Terminado aquilo, os oficiais pediram que preenchesse um termo referente ao reboque do veículo. Também incluiu ali o pagamento do que deveria servir para cobrir a multa da locadora. Enfim, certificou-se de que apanhara todos os seus pertences, tateou os bolos do paletó e deu uma checada nas horas. Já eram 16h00. Ainda não havia almoçado. Lembrou-se de que também deveria ligar para o pai e avisar que estava bem, antes que a notícia chegasse aos seus ouvidos por terceiros. Kuchiki Sojun tinha a saúde frágil, preocupava Byakuya a possibilidade de deixar o pai apreensivo, caso fosse vítima de alguma fofoca maliciosa.

Estava prestes a entrar no táxi quando seu aparelho tocou. Era a imobiliária cancelando o encontro e adiando para daqui dois dias. Byakuya bufou, murmurando algo inaudível consigo mesmo.Que espécie de dia é este que estou tendo? O que mais me falta acontecer?

— Kuchiki-sama! Senhor! Espera!

Ora, mas se não era o rapaz com sua trança vermelha sacudindo nos ombros, ao passo em que corria para alcançá-lo.

— O que mais precisa?

— Isso aqui é seu. Esqueceu no banco. — Renji entregou-lhe um belíssimo isqueiro de prata, chapeado com as iniciais do dono. K.B.

Byakuya ergueu as sobrancelhas e apanhou o objeto. Tinha apego afetivo com aquele isqueiro. Havia sido um presente de seu avô, que já era falecido. Olhou o rapaz com surpresa, em seguida para o relógio, e para o Abarai mais uma vez.

— Renji, a que horas havia dito que era o jogo a que estava a caminho?

— Hãm? Na verdade eu não disse. Mas está pra começar, é às 16h20. Só que a essa altura já devem ter até fechado os portões.

— Entendo. Já resolveu toda a documentação do reboque?

— Sim, já sim, por quê?

— Se estiver disposto, posso tentar, com alguma influência, colocá-lo dentro do estádio. Mas, mesmo considerando os eventuais atrasos, não garanto que será possível entrarmos antes da partida iniciar.

O que ele viu nos olhos de Renji foi alegria genuína, como a que se vê no rosto de uma criança. Byakuya sentiu um nó no estômago, constrangido com aquela reação. Era incomum, para ele, retribuir abertamente emoções daquela natureza. Talvez precisasse trabalhar isso.

— Tá falando sério?

— Claro. Só preciso passar no hotel para me trocar. Entre no carro.

O táxi deu a partida. Byakuya espiou sua companhia pelo canto do olho. Procurou não ficar pensando muito sobre se aquela era a decisão mais apropriada ou não. Estava cansado, preocupado e moralmente comprometido, era seguro dizer. Se dinheiro pudesse comprar os ponteiros, teria os retrocedido e evitado colocar os pés para fora da cama naquela manhã. Mas, em vista de tanta falta de sorte, não lhe seria caro pagar para que ao menos uma boa memória fizesse valer a sequência de infortúnios daquele dia.