Ping, ping, ping.
Era sempre assim que o pesadelo começava.
Ela era muito pequena para sair. Muito pequena para fazer alguma coisa.
Mas não pequena o bastante para não entender os gritos, as coisas se quebrando e o terror.
E ela sentia o cheiro. O cheiro acre da morte, misturado com o cheiro fétido do banheiro pequeno e escuro em que estava escondida.
Ping, ping, ping.
A torneira cantava enquanto ela chorava baixinho. Agora estava tudo silencioso.
Então ela sentiu. Molhando seus pés, ensopando sua roupa.
O sangue escorria por debaixo da porta até ela, e como um monstro subia por suas pernas agarrando-se nela como um parasita.
E ela gritou.
1.
Ela acordou no escuro. O peito ainda arfado por causa do pesadelo e pele molhada de suor. Levou alguns minutos para parar de tremer e seus olhos se acostumarem com a escuridão.
O relógio ao lado da cama piscava mostrando que eram três horas da madrugada. Ótimo, pensou. Mais três horas acordada. Sabia que não havia a mínima chance de voltar a dormir depois desses sonhos.
Suspirou cansada e voltou a se deitar afastando os lençóis. Virou-se de lado e fechou os olhos sabendo que era em vão. Se dormisse o pesadelo voltaria como todas as noites desde que fechara o último caso. Às vezes no sonho as coisas misturavam-se. Ela era a menina, a menina era ela. As histórias se confundiam como numa teia.
Se a história da pequena Abby não fosse tão parecida com a sua os pesadelos não aconteceriam. Mas era e agora ela levaria um bom tempo para superar. Abby e seus olhos assustados, suas mãos pequenas que tremiam e a boneca de cabeça torta que carregava para todo lado. Uma menina com a infância destruída como a dela fora um dia e que agora passaria um bom tempo dependendo do sistema legal que muitas vezes falhava.
Abriu os olhos e fitou a escuridão.
Se ao menos ele estivesse ali...
Ela quase não tinha pesadelos quando ele estava por perto. E quando tinha bastava que se enroscasse nele para voltar a dormir. Mas ele estava longe e ela sozinha.
Nunca dependera de um homem sua vida inteira e agora via-se sentindo falta de um.
-Você esta virando uma sentimental esta é a verdade- Murmurou e voltou a se sentar e acendendo a luz da cabeceira. Resignada com a falta de sono pegou o livro grosso que estava ao lado do relógio e abriu em uma página qualquer.
Sorriu enquanto começava a ler.
De alguma forma, ele sempre estava lá...
2.
Café.
O cheiro encheu o pequeno apartamento enquanto ela se apoiava na bancada e lia pela milionésima vez todas as informações do caso Abigail Romson.
Eddy Romson morto, Melissa Romson presa e a pequena Abby sozinha.
Fim de caso.
Mais um entre centenas que aconteciam todos os dias.
Folheou mais algumas páginas e largou a pasta sobre o balcão enquanto enchia uma xícara e preparava o relatório mentalmente para passar para o papel depois. Dia de folga não significava exatamente dia sem trabalho e ela tinha uma porção dele para fazer em casa.
Café aguado.
-Argh! - fez o liquido dar voltas na xícara. Teria que dar uma passada num supermercado se quisesse beber algo de verdade no dia seguinte.
Fez uma careta ao lembrar da roupa empilhada na área de serviço e da louça que ameaçava cair a qualquer instante da pia. Depois de terminar com a papelada talvez começasse aquilo tudo. Os últimos casos haviam tomado tanto seu tempo que ela passava no mínimo uma meia dúzia de horas em casa. Um banho, café, umas poucas horas de sono era o que constituía suas passadas no apartamento nas últimas semanas.
Completou a xícara já pela metade e caminhou em direção ao aparelho de som. Escolheu um dos Cds espalhados sobre a estante e anotou mentalmente que precisava devolver um deles a Greg. Ele também estava com o seu preferido. Maravilha.
Deixou o volume baixo, acompanhando o ritmo com o pé.
Estava separando tudo em duas pilhas quando o telefone tocou.
-Sidle - Disse baixando o volume.
-Oi Sara.
-Gil!- sorriu e segurou o telefone entre o ombro e a orelha enquanto empilhava os Cds. - Eu ia ligar mais tarde.
-Fui mais rápido dessa vez - A voz dele soou bem humorada.
-É... Foi sim. Que barulho estranho. Onde você está?
-Num corredor sendo atropelado por estudantes - ele fez uma pausa e Sara ouviu alguém dizer 'desculpe' ao fundo. - A juventude a todo vapor.
- Ainda está na universidade?
-Sim, tenho mais duas palestras durante a tarde e se tudo der certo por aqui pego um avião hoje mesmo.
-Que bom...
-Você está bem?
-Yeah, um pouco cansada, estou em casa hoje. Encerrei o caso Romson.
- O da pequena Abby... Suas suspeitas se confirmaram? -a voz dele tornou-se mais cautelosa. Ele era o único da equipe que sabia da semelhança entre as história da menina e a infância de Sara.
-Sim... Foi Melissa.
-E Abby?
-Encaminhada para o juizado...
- Você sabe que não havia nada que pudesse fazer por ela...
-A não ser encontrar o culpado. - Sara completou a frase - É eu sei disso. Só torço para que a sorte dela seja diferente da minha nas mãos do sistema.
-Sara...
-Eu sei, eu sei. Vou parar de pensar nisso. - acrescentou depressa.
Ambos sabiam que nunca era assim com Sara.
-Eu tenho que desligar agora, tenho uma reunião com o reitor e mais tarde um almoço com alguns adolescentes adoráveis.
-Oh, boa sorte.
-Dessa vez vou aceitar sua sorte. Sara?
- Hum?
Ele fez uma pausa e acrescentou com a voz afável.
-Vou tentar chegar cedo.
Ela não pode deixar de sorrir. Ele sempre a compreenderia.
-Obrigada.
-De nada. Até mais.
-Até.
Ela desligou e sentou numa poltrona. Griss tinha o dom de compreendê-la não importava em que situação estivesse. Jamais tivera alguém que se importasse ou que precisa-se dela de uma forma incondicional e isso a deixava de certa forma sem ação.
Isso era bom. E de certa forma era também assustador.
A campainha cortou seus pensamentos e ela levantou indo em direção à porta. Deus quisesse que não fosse mais trabalho. Não hoje.
Mas não era nenhum dos colegas do lab, nem alguém que ela conhecesse.
Abriu a porta até a metade e olhou curiosa para a figura a sua frente.
-Oi.
-Oi.
A menina não perecia ter mais de 11 anos. Os cabelos eram de um louro pálido e caiam por sobre o ombro em uma trança meio desfeita. Usava um moletom um pouco largo demais para seu tamanho e trazia uma mochila preta quase maior que ela nas costas.
-Você é Sara Sidle?- perguntou olhando meio de lado para Sara. Os olhos eram grandes e castanhos.
- yeah, sou. E você é...?
- Amber Trent.
-Oi Amber Trent - Sara cruzou os braços sobre o peito e a olhou intrigada e divertida. – Posso ajuda-la?
Amber não respondeu. Segurou a mochila em apenas um ombro e tirou de dentro uma folha meio amassada. Não perdeu tempo alisando o papel e o estendeu para Sara esperando que ela pegasse.
-O que é isso?
-É da minha mãe, para você.
Sara virou o envelope nas mãos, mas não havia nada por fora. E antes que abrisse a menina a encarou meio emburrada e suspirou.
-Ela disse que agora vou morar com você.
Continua
