Sofia era uma aprendiz de amazona que havia entrado há pouco tempo no Santuário. Tinha estatura mediana, cabelos cor de chocolate que tinham um bonito tom quando o sol incidia sobre eles, olhos que tinham uma cor um pouco mais escura. Seu corpo, bem... Era pouco comparado aos corpos esculturais das mulheres que já treinavam há mais tempo, mas para ela, que ainda era uma iniciante, estava bom. Ao menos ela tentava se lembrar sempre disso.
E era o fim de mais um dia de treinamento, quando ela caminhava pela trilha próxima ao lugar de onde treinava. Tentava fazer isso sempre que podia, pois era um jeito seu de sentir-se mais em paz consigo mesma, um pouco longe da atmosfera de rígida disciplina e dever do Santuário, de achar que talvez nunca desse conta daquilo tudo... Enfim, era um jeito de calar as preocupações. Quase ninguém usava aquela trilha, na verdade não sabia de ninguém a não ser ela mesma, então era ainda melhor.
Mas qual não foi sua surpresa ao encontrar alguém lá naquele dia. Na luz poente do sol, viu um homem sentado de costas para a trilha. Era alto, e pelo desenho do seu corpo podia dizer que era atlético. Usava roupas de treinamento como as do Santuário. Mas o que mais chamava a atenção era o seu cabelo: longo e azul, como se o céu do meio-dia tivesse se derramado sobre ele. Perguntou-se se os olhos seriam da mesma cor. Pôde ver também que a sua pele tinha a cor da canela. Era um tom bonito, pensou depois de ponderar alguns segundos. Estranhamente combinava com o cabelo... Estranhamente talvez porque nunca havia visto alguém com um cabelo como aquele. Aproximando-se um pouco, pôde ver que ele usava um tipo de máscara... parecia uma máscara bucal. Por que usaria uma coisa dessas?
Tentou não se aproximar muito, afinal seria um incômodo para os dois, mas aquele estranho era enigmático. Não se aguentou e se fez notar. Mas antes mesmo que chegasse mais perto, ele se virou e a encarou.
"Olá", disse meio sem graça.
"Quem é você?", ele disse com a voz um tanto abafada pela máscara.
"Sou uma amazona em treinamento".
Ele a olhou de cima a baixo, como se para se certificar de que ela dizia a verdade. Pareceu ter acreditado, embora continuasse em uma postura defensiva. "O que está fazendo aqui?"
"Vim dar uma volta. Sempre venho aqui", Sofia respondeu desembaraçada, tirando a máscara de amazona.
"Ei, o que está fazendo?", ele se alarmou pondo uma das mãos sobre o rosto, "Ponha isso de volta!"
Sofia parou segurando a máscara, e só então percebeu o que tinha feito. Estava tão acostumada a estar só naquele lugar, que tirar a máscara ali como ela sempre fazia não era um problema. E agora o fizera diante de alguém do Santuário. "Ah, eu nunca te vi antes e tenho a impressão de que não vou ver de novo. Então não tem problema", respondeu pensando rápido.
O estranho baixou a guarda. Por algum motivo havia se deixado convencer pela versão da regra das amazonas deturpada por Sofia. Talvez ele, como ela, não quisesse levar essa regra muito a sério. E ela não queria conversar com alguém usando a máscara, ali onde o Santuário não podia vigiá-los.
"Meu nome é Sofia", disse sentando-se ao lado dele. "E o seu?"
"Defteros", ele respondeu depois de um instante de silêncio.
"Então é grego como eu, Defteros?", ela perguntou alegre com a possibilidade. Mas tomou cuidado para que a sua alegria não o assustasse.
"Sim...", ele respondeu desviando o olhar.
"Desculpe, eu o incomodo?", Sofia resolveu perguntar um tanto triste, já que ele não parecia muito disposto a conversar. E se não estivesse, teria que respeitá-lo.
"Não... Mas seria melhor que você não tivesse me visto", Defteros respondeu com um ar cansado.
"Por que?"
"Você deve ser nova no Santuário", ele disse fechando os olhos. "Não conhece a minha história".
"Que história?", ela perguntou curiosa - e perfeitamente inocente, para Defteros. Ele a olhou de um jeito como se perguntasse se queria mesmo saber. E a insistência do olhar curioso dela disse tudo. Então ele não teve outro remédio a não ser contar. Sofia ouviu tudo atentamente.
"Nasci sob a estrela da desgraça", ele concluiu.
A jovem aspirante a amazona estava assustada. Mas não porque acreditasse no mau fado de Defteros. A sua história a intrigava - tão intensa, tão amarga, tão cheia de contrastes entre ele e seu irmão. Já havia ouvido falar de Aspros, o cavaleiro de ouro de Gêmeos. Era uma das lendas do Santuário. Devia ser mesmo uma figura formidável, mas não podia evitar se ressentir com ele por ter abandonado o seu irmão. Não que Defteros tivesse dito isso, mas era possível deduzir da sua história. E também estava claro que ele sentia falta desse irmão que já não sabia por onde procurar. Era uma pena que o companheirismo dos dois tivesse definhado a esse ponto... Via que Defteros a olhava impassível, como se adivinhasse o que pensava.
"Vejo pela sua expressão que a assustei. Faria bem em se retirar agora", Defteros disse com um tom irônico, mas falando sério. Seria melhor para aquela menina que nunca mais o visse.
"Não, não", Sofia disse saindo de seu transe, "Digo, me assustou sim. Sua história não é das mais suaves. Mas me assustou o peso que você carrega desde que nasceu".
Defteros a olhou de soslaio, como se desconfiasse de suas palavras. Nunca ninguém havia falado assim com ele. Nem mesmo Aspros, ainda que quando mais novos ele vivesse reafirmando que a profecia relacionada aos dois não passava de bobagem. Um discurso que parecia incrivelmente distante agora. E de todo jeito, Defteros aprendera a se acostumar com a própria história. Com a ideia de que havia sido destinado a ser o que era, o segundo, à sombra de seu irmão e escondido dos olhos de todos.
"Defteros, você não é amaldiçoado. Essa história de viver segundo uma profecia é uma tolice", ela disse usando o seu discurso racional, que já havia sido notado por alguns de seus superiores. Orgulhava-se de expor as suas ideias o mais razoavelmente possível, e já notara que isso era bem quisto no Santuário, se não por todos, por boa parte dos que estavam nele. "É um resquício de tradição absurda, nada mais que isso. Mas como muita gente ainda a leva a sério, você se tornou marcado simplesmente por ter nascido depois de seu irmão. É um estigma muito pesado para alguém carregar". Sofia sabia que esse discurso na boca de alguém ligado ao Santuário, o tipo de lugar que levava a sério profecias, era perigoso mas resolveu que valia a pena usá-lo. E nesse caso até arriscava dizer que Atena lhe daria razão.
O gêmeo de Aspros parecia não acreditar no que ouvia. Aquele discurso chegava a ser estranho de tão desconhecido que era. "Eu não acredito que você estivesse destinado à desgraça, e acho que você também não quer acreditar", Sofia continuou. O que aquela aprendiz de amazona estava dizendo? E por que tinha tanta certeza?
"Está enganada. Eu já aceitei o que sou", ele respondeu resignado com o ar de quem já havia aceitado aquilo há muito tempo, "Não há o que questionar".
"Mas Defteros", ela tentou intervir aproximando-se mais dele, "Não é justo..."
"Não é questão de ser justo", desta vez ele interviu, "É simplesmente o jeito como as coisas aconteceram. Não posso me queixar".
Sofia o olhou perplexa. Não era possível que ele achasse que uma profecia (por maior que fosse o nome das pitonisas) que havia destinado o seu irmão para a grandeza e ele mesmo para a obscuridade, que havia feito com que ele passasse a vida inteira sendo desprezado e esquecido, fosse algo a ser simplesmente aceito... Mas ao mesmo tempo, ele havia sido ensinado a acreditar que isso era natural. Só podia imaginar quanto sofrimento ele teria tido que engolir, e como fora cruel quando Aspros, o único consolo de sua existência, o único que havia se importado com ele, começou a se tornar outra pessoa. "Não sou digno de andar sob a luz", ele disse fazendo-a acordar de seus devaneios. E aquilo doeu ouvir.
"Não diga isso, Defteros", ela disse suavemente tentando pôr a mão sobre a dele, mas ele rejeitou o gesto. "Sofia, esqueça que me viu. Seria melhor que nunca tivesse me visto. Esqueça-me. Sou um maldito, indigno de ser olhado".
"Não", ela disse no mesmo tom, alcançando a máscara que lhe cobria parcialmente o rosto. Surpreendentemente, Defteros só foi perceber que ela a tinha retirado quando a viu nas mãos dela. Ficou paralisado. Ela o olhava hipnotizada: ele tinha um rosto lindo, perfeitamente harmonioso, escondido sob a máscara. Era o tipo de beleza cativante, que não fazia sentido nenhum esconder. Ele, como em um gesto automático, desviou o rosto, mas não impediu Sofia de fazer o seu gesto seguinte.
"Não, Defteros", ela sussurrou o mais gentilmente que pôde, levando uma das mãos ao rosto dele e conduzindo de volta para ela o seu olhar entristecido, "Você não é".
E mesmo sem ter certeza do que fazia, levou a outra mão ao rosto de Defteros e se aproximou mais. "Você não é", disse mais uma vez indo de mansinho até encostar os lábios nos dele.
Defteros de início não soube o que fazer. Mas logo aquele beijo era para ele a água no deserto, o bálsamo no corpo ferido. Vinha aliviar a sua existência. Ele não resistiu a retribuir aquela gentileza e acariciou também os lábios de Sofia, permitindo que ela aos poucos amansasse as suas dores. A aspirante a amazona nunca havia beijado alguém antes, então tentava seguir o movimento instintivo dos lábios delicadamente. Na verdade, nem se dava conta do que estava fazendo. Só ficou ciente quando seus lábios subitamente não souberam mais o que fazer.
"Ahm... eu... me desculpe", ela disse envergonhada sentindo-se enrubescer e mal sabendo para onde olhar. Era nesses momentos em que se precipitava (raros, mas existiam) que terminava se amaldiçoando e se perguntando o quanto de juízo realmente tinha (ou o quanto fazia jus ao seu nome). Havia achado Defteros tão lindo e quis tanto consolá-lo... mas que direito tinha de beijá-lo? E ainda estava com as mãos no rosto dele! Agora morreria de vergonha pelo resto dos seus dias... "Me desculpe...", repetiu encolhendo as mãos.
"Não, Sofia, está tudo bem", ele respondeu depois de algum tempo calmamente, pondo uma das mãos no rosto dela. "Obrigado".
Ela o olhou de novo espantada. Ele tinha um sorriso vacilante e um olhar doce. Parecia intrigado. "Você me fez muito bem", completou acariciando o seu rosto com ambas as mãos. Na verdade, naquele momento Defteros se sentia consolado como nunca antes se sentira. E tudo graças àquela insistente aspirante a amazona. Nunca nem pensara ser possível sentir-se assim. Isso até o deixava um pouco confuso... Baixou os olhos mantendo o sorriso e recolheu lentamente as mãos. Parecia refletir.
"Que bom... fico feliz", Sofia conseguiu dizer tirando com algum custo a voz da garganta. Ainda estava muito surpresa com o desenrolar da situação. Mal percebeu que Defteros havia se levantado e já caía a noite. "Vamos?", ele perguntou. "Vamos", ela concordou ainda um tanto confusa.
Caminharam pela trilha completamente deserta até aproximarem-se da área em que os aprendizes moravam. Encobertos pelas árvores e pelas sombras, ninguém podia ve-los. Defteros deteve-se. "Eu fico por aqui", disse. Sofia reparou que ele havia posto a máscara de novo. "Ah, sim... Que pena...", ela lamentou, não querendo separar-se dele. Quem sabe quando o veria de novo? Talvez, como ela mesma havia dito, não o veria mais. Desejou não estar certa.
"Foi um prazer", surpreendeu-se com o que o ouviu dizer, junto com um aperto de mão. Poderia jurar que ele sorria sob a máscara. "Sim...", foi tudo o que se viu capaz de responder. Ele a deixava desnorteada.
Defteros deu meia-volta e começou a se distanciar. Sofia não queria deixar que fosse, mas não poderia impedi-lo. Então achou a voz que parecia perdida: "Eu o verei de novo?", perguntou soando mais ansiosa do que gostaria. Ele parou e virou o rosto, olhando-a de um jeito que a fez se derreter um pouco por dentro:
"Eu lhe diria que não, mas depois de hoje... espero que sim", e com essas enigmáticas palavras desapareceu na escuridão da trilha. Sofia fez um esforço para entender aquela frase. Ele parecia querer dizer que abria uma exceção para ela - ninguém podia vê-lo, mas ela sim. Haviam visto um o rosto do outro, então talvez estivessem ligados por uma regra quebrada. Ainda poderia encontrá-lo. Suspirou, pondo a sua própria máscara de volta. Só esperava que esse dia não demorasse muito.
Defteros pensava nos acontecimentos daquela tarde enquanto caminhava silenciosamente. Era sempre assim que tinha que se mover - em silêncio, para que ninguém sequer suspeitasse que existia. Mas pela primeira vez desejava que alguém que o havia visto voltasse a vê-lo. De repente existir não era mais tão amargo. Não queria se permitir mais do que lhe era devido, mas naquele dia lhe pareceu que havia... um vislumbre de dias diferentes. Sorriu agradecendo em pensamento a Sofia. Aquela aprendiz de palavras (e de lábios) tão doces...
Um outro jeito possível de viver, ainda que não passasse de meros instantes. Ainda que ele tivesse que continuar fugindo da luz. Mas agora poderia ter alguém que, de vez em quando, o encontrasse nas sombras.
