1 – Obsessão

"The more I search, the more my need
For you
The more I bless, the more I bleed
For you"

Dizem que se começa a morrer no momento em que se nasce. E cada dia que se vive é um eterno vir a ser, à espera daquela que levará a todos: a morte. Vivemos juntos, mas, invariavelmente, morreremos sós.

Walburga Black deu à luz seu filho mais novo, e sequer esperava que ele sobrevivesse. Por mais que a parteira o sacudisse, o bebê permanecia inerte, sem deixar que o ar invadisse seus pulmões com o sopro divino da vida. A mãe, no entanto, não olhava para a criança indefesa nos braços de outra mulher. Deixou-se contemplar a visão da chama da vela que repousava sobre a mesa ao lado da cama. Embora sem fixar o foco, observava as sombras bruxuleando com a ligeira corrente que entrava pela fresta de janela aberta. O ar da noite invadia a casa, mas não deixava que o cheiro de sangue e morte se evadisse.

A mulher não transparecia qualquer emoção, a não ser aquelas provocadas pela dor física de dar à luz. Se o filho morresse, era porque não tinha dignidade e força suficientes para ser um sangue puro e fazer parte da mui antiga e nobre casa dos Black, a família que descendia das mais brilhantes e antigas estrelas do céu.

No entanto, a parteira não desistiu. Massageou o peito do pequeno e franzino bebê e realizou a técnica trouxa da respiração boca-a-boca. Com uma ligeira tosse, seguida por um choro um tanto quanto contido, o segundo filho de Walburga anunciava que a foice da morte não o ceifaria. Ao menos, não naquela noite.

Era uma sexta-feira, 13 de dezembro. E, mesmo entre os bruxos, nascer numa sexta-feira 13 não é algo que inspire muita sorte. O pequeno bebê estaria marcado eternamente, nascido sob o signo do centauro. E, embora soubessem de sua ascendência astrológica, ele recebeu o nome de Regulus, uma estrela da constelação de Leão. Porque os Black relembravam nas alcunhas dos filhos a nobreza das estrelas. Não foi diferente com Regulus, embora a ironia transparecesse no nome escolhido pelos pais. O significado não podia ser mais explícito, pois Regulus seria sempre o "pequeno rei" da família.

Desde criança aprendeu que suas vontades eram lei. Tinha tudo o que queria, e se acostumou a não discordar nunca das atitudes da família, fossem elas boas ou más. No limiar da infância inocente, crescia observando os exemplos da rebeldia de seu irmão mais velho, Sirius, que tinha herdado o nome da constelação de Cão Maior. Regulus poderia ter todos os seus desejos satisfeitos pelos pais, mas o que mais ansiava era exatamente o que jamais alcançou.

Desde cedo percebeu que Sirius não gostava dele. No entanto, o esforço de Regulus em fazer com que o irmão o notasse era límpido e fácil de perceber. Os pais diziam que Regulus deveria aprender a não ser como Sirius. Tudo o que ele mais queria, no entanto, era acompanhar o espírito de aventura do irmão, meter-se nas mesmas encrencas e confusões. Procurava a companhia de Sirius como quem procura uma golfada de insensatez num lar onde se representa um teatro diário. Ser um Black era fazer parte de uma peça da nobreza, a exaltação suprema do sangue puro. "Tojours Pur", era o que dizia a árvore genealógica na tapeçaria da sala de estar. A árvore na qual os fracos e impuros eram queimados com pontas do charuto de menta de Orion Black.

A infância de Regulus foi solitária e doentia, enquanto Sirius se transformava numa verdadeira obsessão. O pequeno tentava seguir os passos do mais velho, mas as diferenças entre eles eram gritantes e saltavam aos olhos de quem quisesse ver, tanto as psicológicas quanto as físicas. Sirius era forte como um touro, tinha as costas largas de tanto fugir para nadar na lagoa da propriedade vizinha, a pele morena do sol e os cabelos castanhos sempre mais compridos do que deveriam e sem corte. Enquanto olhar para Sirius era ver a alegria e agitação de um menino saudável, Regulus vivia de cama, constantemente assolado por gripes e outras doenças que os médicos sequer conseguiam diagnosticar. Continuava tão franzino como quando era bebê, as orbes fundas das noites marcadas pela insônia. Regulus tinha muitos pesadelos, constantemente protagonizados pelo próprio irmão e seu profundo e recorrente desprezo. Porém, quando Regulus cresceu e começou a entender o que sentia por Sirius, era tarde demais para recuar.

Receber a carta da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts era uma certeza que Regulus carregava dentro de si. Era a herança mágica da família, passada de geração em geração e preservada pelo sangue puro. Era estimulado a realizar magias desde a mais tenra idade, mas, diferente de Sirius, raramente provocava confusões com elas. A magia de Regulus servia como um brinquedo para a família, um teatro que o menino sentia certo tédio em representar.

A única vez em que Regulus fugiu à regra foi no verão anterior à sua ida para Hogwarts. Enfim poderia estar mais perto do irmão, vê-lo todos os dias, conviver com ele, e ansiava ardentemente, dia após dia, por isso. A perspectiva o deliciava, e Regulus chegava a desejar intimamente que o Chapéu Seletor o enviasse para a Grifinória junto com o irmão. Seria a suprema desonra para a família, os dois filhos na casa sórdida e nojenta dos bravos e contestadores. Mas Sirius não estava tão empolgado com a ida do irmão para a mesma escola que ele. Para o mais velho, já bastava que convivessem durante as férias. Para o mais novo, o desprezo crescente gerava a cada dia um novo ímpeto de ser notado e, conseqüentemente, renovava a obsessão.

Sendo assim, Sirius ignorava as investidas e tentativas de aproximação de Regulus, intensificadas com a proximidade da data em que o trem levaria ambos para o mesmo Castelo e os obrigaria a conviver durante todo o ano sob o mesmo teto. Irritado por ver que Sirius não o notava, Regulus conseguiu derrubar o castiçal que descansava sobre uma prateleira, bem no momento em que o irmão passava logo abaixo dela, em um dia qualquer na hora do jantar. Era um momento sagrado para a família Black, que sempre exigia que seus filhos estivessem asseados e reunidos à hora da refeição. Mais uma parte do teatro que eram obrigados a representar.

Deitado no chão, banhado em sangue e rodeado pelos familiares, Sirius encarou Regulus, um olhar profundo, gelado e cheio de desprezo, enquanto os orbes azulados de Regulus também permaneciam fixos no irmão. Era como se houvesse entre eles um enorme desfiladeiro, separando os sentimentos conflitantes entre ambos. As batidas do coração de Regulus se faziam ouvir por toda a casa, ecoando nos ouvidos da família, ele tinha certeza.

O "pequeno rei" se corroeu de culpa por horas a fio, até que o curandeiro chamado às pressas abandonou o quarto de Sirius. Regulus conseguiu entrar, os passos vacilantes e o corpo trêmulo coberto de suores frios. Encontrou o irmão adormecido, uma enorme bandagem amarelada e empapada de sangue lhe cobrindo grande parte da cabeça.

Sem ter os pais por perto, Regulus se sentou na cama cheia de cobertores que cobriam o corpo de Sirius. Olhou para si mesmo, os braços muito magros e pálidos. Depois, fixou os olhos negros e cansados nas bochechas coradas do irmão um ano mais velho, observando uma rala e fina penugem que já começava a despontar. Sem pensar direito no que fazia, os dedos finos avançaram para o rosto do irmão, desejosos de poder tocá-lo, sentir o sangue quente que lhe corava as bochechas e, mesmo após um acidente como aquele, ainda lhe deixava com um aspecto muito mais saudável e bonito que o do próprio Regulus. Olhando-se no espelho diante da cama, o "pequeno rei" só via a imagem daquilo que queria ser e não o era: Sirius. Observando a fundo a sua própria alma, Regulus desejava de todo o coração que pudesse ser notado pela única pessoa que não vivia uma vida de aparências, a única pessoa verdadeira daquela família. O único que seria sempre o objeto de seu mais velado amor.

Regulus deteve o movimento a centímetros dos cabelos fartos de Sirius quando este abriu os olhos para encará-lo mais uma vez naquela noite. Intenso e cruel, Regulus viu ódio no olhar do irmão. Assustado, ele se afastou, enquanto a voz de Sirius, ainda enfraquecida pelo ferimento, mas não menos cruel, ecoou pelo quarto de teto alto:

- Saia daqui, aberração – os olhos de Sirius brilhavam, furiosos. – Não pense jamais em tocar em mim, senão eu te mato, eu juro!

Os olhos de Regulus se encheram de lágrimas sem que ele pudesse contê-las. A visão não anuviou o rosto contraído de Sirius, que continuava a encará-lo como se pudesse amaldiçoar o próprio irmão apenas por tentar tocá-lo. Regulus virou o rosto para esconder o choro e abandonou o quarto, as lágrimas escorrendo como se fossem afogá-lo num mar de sal e dor. Sirius nunca se preocupou em medir suas atitudes em relação a Regulus. Ninguém jamais poderia compreender o que significava ter um irmão como Sirius. O preconceito que nutria por todos os membros da maldita "Tojours Pur" não permitia que o mais velho ao menos notasse os sentimentos sinceros que o mais novo nutria por ele. Mas o desprezo não diminuía a ânsia do "pequeno rei" em conquistar míseras gotas de atenção de Sirius, como o faria por toda a sua breve vida. Regulus andaria atrás de migalhas do irmão e negaria a sua própria existência. E faria isso mesmo enquanto estivessem distantes um do outro, quando os caminhos opostos escolhidos por ambos os separassem nessa vida.