Dream of a Spring Breeze
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In the sea of night, where my soul is real
Broken visions let the darkness heal
And the dream of life will surely reside
– Jillian Aversa, Just Hold On
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O clima ali era de matar. Os Estados Unidos podia ser bem eram enregelante em certas épocas do ano, mas aquele lugarzinho fazia o Alasca parecer o inferno ao meio-dia. Dentro da loja de conveniência, Shisui observava, a boca apertada numa linha fina, flocos de neve rodopiando no ar escuro atrás da vitrine. Ele estava ali fazia o quê? Dez minutos? E começara a nevar novamente, talvez pela quarta vez ainda naquele dia.
Voltou sua atenção para as diferentes marcas de macarrão instantâneo, a base alimentar de todo solteirão. Seu russo era bem precário, mas sabia que a melhor opção era aquele de embalagem laranja, o nome alguma coisa parecida com Dosirac, ou Doshirak. Não chegava nem aos pés do macarrão caseiro da mamãe, porém aquele tal de Rollton parecia massinha de modelar e descia como se fosse. Pagando-a no caixa, junto com papel higiênico e uma versão de bolso em inglês de A Culpa É Das Estrelas, pensou mais uma vez em chamar um táxi e concluiu, mais uma vez, que não trouxera dinheiro o bastante para isso. O caixista, suficientemente velho para fazer Nikolai Kasputin parecer um garotão ainda nos cueiros, inclinava-se sobre o balcão de um modo estranhamente vulpino, uma bengala de castão de ouro encaixada no meio das pernas. Ele observou Shisui se aproximar com um sorriso horrível, de dentes amarelados, que o fez pensar no modo como as enguias pareciam às vezes sorrir após a morte e pouco antes da panela. Ele comentou algo, mas Shisui apenas sacudiu a mão, interrompendo-o.
– Não, não – disse, gesticulando largamente. – Mim. Não falar. Ruuuuusso. Entendeu, companheiro?
– Entendi – murmurou o caixista, mirando-o com somente um olho. O outro tremia involuntariamente, um cacoete que inquietava Shisui, que trocou o peso do corpo para a outra perna. – Un amerricano. O qu' o trraz a estas terras sem sol?
– Oh, eu acho que isso não lhe diz respeito – respondeu, tentando sorrir.
– Clarro qu' non. Son 183,70 rublos.
Pagar aquela quantia por três produtos perfeitamente comuns o fazia se sentir um ricaço ostensivo dando uma gorjeta fabulosa para um mendigo com uma perna defeituosa (ou, no caso, um olho defeituoso). Isso não o fazia se sentir muito melhor. Mal podia esperar para poder sair daquela espelunca, mas aí teria que enfrentar a neve, e isso fez o sorrisinho instável que mantinha em seu rosto se desfazer. Pagou, enfiou tudo numa sacola e marchou até a saída. O cubículo que ele arranjara ficava no meio do fogo-cruzado entre Ventos Sudestes versus Correntezas das Montanhas do Norte e, mesmo mantendo todos os aquecedores da casa a 24 graus, a temperatura lá dentro nunca vai além dos 16 graus. Durante as tempestades de neve raramente saía debaixo do cobertor (que por um pouquinho áspero que fosse, valia à pena porque era de casal e ele podia se enrolar nele à vontade), no computador notebook ou fazendo palavras-cruzadas, e mesmo quando o tempo estava menos feio que o usual – mas não bonito, não, nunca bonito; não na Rússia, colega –, os pés-de-vento que faziam a velha pousada gemer e jogava nos transeuntes punhados de neve que ainda não estava bem assentada o desencorajavam a pôr o pé na rua. E pensar que há menos de uma semana ele estava em Miami Beach, Miami Beach, senhoras e senhores. Quem diabos o convenceu a encarar quatorze horas de avião para aquele fim de mundo, enquanto podia estar tomando litros de Ponche Havaiano e jogando vôlei em areias brancas?
Oh, sim, claro. Anko. Óbvio.
– Você precisava de férias, Shisui – disse ela antes de esvaziar sua bebida, um troço forte, de anis e maçã, que ela dizia ser o Verdadeiro Coquetel Molotov Russo. Isso foi no dia anterior, e eles estavam em um kabák, taberna, aproveitando que a noite estava momentaneamente tranquila para sair e tomar um drinque. – Dizem que policiais que trabalham demais têm mais úlceras do que qualquer outro grupo profissional estressado, à exceção dos controladores de tráfego aéreo.
– Mas Cazã, Anko? Cazã? Isso não é férias. Férias é quando a pessoa fica olhando até onde pode deixar as unhas crescerem no Golfo do México. Ou nas Maldivas.
–Éé, e você acha que o dinheiro para pagar todo esse pouco luxo vai vir de onde? Da pensão dos veteranos da Segunda Guerra? Além disso, a passagem para cá estava com sessenta e oito por cento de desconto, oy vay. São suas primeiras férias pagas pela Comitiva de Segurança dos Condados da Flórida, talvez as últimas. Então sugiro que aproveite, meu amigo. – Ela encheu o copo até a metade e fez o mesmo com o dele. Então ergueu o seu para o alto e exclamou: - Nastrovie!
Shisui ficou encarando sua sorridente colega de serviço, sentindo duas vontades lutando dentro dele: a primeira era de enfiar a garrafa daquele maldito Ponche Havaiano degenerado goela dela abaixo, falando Vai fundo! Vai fundo, moy drug, pit, pit! A outra era de chorar de desgosto. Anko nunca iria deixá-lo ficar em Miami Beach porque, mais cedo ou mais tarde, ele iria pegar o carro e dar uma escapulida para a cidade, visitar a delegacia e perguntar e aí, pessoal, como andam as coisas? e estou fazendo muita falta? Precisam de uma mão? E então um colega diria "Bom, Shisui, já que você insiste, poderia checar se esse relatório está certo?", e depois "Fala aí, Shisui, quer entregar essa papelada para mim em tal lugar?", e depois "Shisui, acharam o local onde aquele grupo de jovens realiza reuniões satânicas. São apenas moleques, mas acho melhor você mexer seu rabo antes que aquilo vire uma completa meleca", e depois seria como se nunca houvesse havido férias nenhumas, embora um workaholic como ele se importasse muito pouco com isso ou não se importasse em absoluto. Todo mundo conhecia seu ritmo de trabalho e seu desempenho, inclusive Anko, mas o negócio era que, naquele ano, o que o pessoal do trabalho chamava de "rolos natalinos" não estavam só mais frequentes como também mais graves. Houvera um arrastão no Aventura Mall, uma tentativa de suborno por parte de um corretor de imóveis para que sua filha fosse eleita Ajudante do Papai Noel num evento da Macy's, contrabando de fogos de artifícios para o ano-novo, além de uma infinidade de outros delitos, como infrações de trânsito, greves, mil estouros de cartões de crédito, pessoas bêbadas dormindo nos jardins, pessoas drogadas dormindo em becos, pessoas menores de idade com identidades falsas querendo comprar cigarros em botecos. Enfim, uma verdadeira corrida de fim de ano.
E Shisui, que já trabalhava o que podia e o que não podia em cima de transgressões da lei, foi presenteado com um generoso conjunto de dossiês recheados de festiva criminalidade. Três dias depois ele não conseguia mais voltar para casa. Olheiras começaram a orlar seus olhos, primeiro suaves, e então escurecendo. Perdeu uns três ou quatro quilos a olhos vistos e fazia caretas quando se levantava da cadeira ou quando desabava nela no final do turno, às duas da manhã. Então, numa bela madrugada de início de dezembro, entrou em seu escritório e deparou-se com seu chefe sentado à sua mesa. Recuou antecipadamente o rosto, como um homem prestes a ser agredido, e perguntou se o caso era grave. Seu chefe disse que sim, que era grave, e que Shisui deveria cuidar dele o quanto antes. Claro, disse ele, só me diga o que fazer. Bom, o chefão reclinou-se para trás, comece voltando para a cama e tire umas boas oito horas de sono. Quando acordar, capriche no desjejum – estou falando de uma refeição de verdade, com direito a bacon e ovos fritos, não esse café pingado com pão duro que você chama de café-da-manhã. Vá assistir televisão ou leia um livro. Depois ligue para Anko e ela lhe explicará à que horas você deve estar no aeroporto amanhã. Sim, isso mesmo, Shisui, estou dando férias adiantadas a vocês dois. Arranjamos um substituto para os casos que você tem restante, um interino. Nenhum Bill Jordan, mas vamos nos virar com ele. E quero você de volta aqui em fevereiro fresco e revigorado.
Ele piscou e então estava no Cazã, As Terras Onde O Sol Nunca Brilha, O Paraíso do Comunismo, a nação cujo lema contraditório era Tudo-É-De-Todos-Mas-Pertence-Ao-Estado. Estava no Cazã, e morrendo de frio. É, a vida como ela é.
Estava tão absorto em pensamentos que, ao abrir a porta, o efeito do frio contra seu rosto foi semelhante ao de um taco de beisebol contra seu nariz, e ele saltou para trás, o coração titubeando rápido no peito. Percebeu que agora o vento rosnava e uivava, lançando demônios de neve pela estrada abaixo. Na descida havia uma placa de limite de velocidade levemente inclinada para o meio-fio. Shisui observou, admirado, como ela ia se entortando cada vez mais, curvando-se como se estivesse fazendo uma saudação. Pouco a pouco ela ia se inclinando e, quando ele achou que fosse tocar o chão, o vento abrandou para um resmungo mal-humorado, e o flocos voltaram a cair em linha reta.
– Se eu fosse o senhorr, eu aprroveitava qu' o bicho acalmou e me mandava parra caza.
Ele olhou o velho no balcão, olhou seu malévolo sorriso de dentes amarelados e seu olho bom e frio, prescrutor, que pareciam lhe dizer: Vá, meu joven. E qu' Deus te prroteja. Terrá sorrte se chegarr em caza faltando apenas um dedo, ou uma orrelia. Ou os dois.
Shisui abriu de novo a porta e saiu para a neve.
(meu Deus acho que vou morrer congelado
Shisui o Picolé, hilário)
Ele não perdeu nenhum dos dedos ou uma orelha, mas acha que foi por pouco, sem contar que não faria diferença se suas mãos fossem purê de batata congelado. Trancou a porta da frente, tendo dificuldade em manejar a fechadura com as luvas grossas de couro que usava, apertando tanto os lábios que eles praticamente desapareceram. Tinha vontade de entrar em um lugar público, qualquer um, com bastante pessoas para ouvi-lo gritar "CADÊ A PORRA DO AQUECIMENTO GLOBAL?" e ideia parecia-lhe tão boa que era quase irresistível, porém ela não revelava um bom espírito esportivo, então simplesmente varreu-a da cabeça, voltando o pensamento para sua cama com o cobertor áspero mas quente. Estava a meio caminho de ligar o aquecedor quando ouviu pancadas fora de casa. Ele estacou em meio à sala-cozinha. Será possível que alguém estivesse batendo na porta em meio a todo aquele vendaval? Esperou um pouco por novas batidas, escutando atentamente aos ruídos da casa, e quando decidiu que havia sido apenas o vento, as pancadas voltaram com mais força, seguidas por uma saudável exclamação: "VAI ESPERAR ATÉ A VIRADA DO SÉCULO PARA ABRIR A PORTA, CORNO MANSO?"
Ele se precipitou para a porta e, sim, era Anko, ao vivo e a cores, a pele tão cinzenta que ela dava a impressão de que a tinham rolado sobre farinha, mas nem por isso deixava de trazer um sorriso desdenhoso no rosto e uma sacola de listras brancas e vermelhas com o rosto sorridente de um frango impresso numa das mãos, que estendeu para ele.
– Nem só de macarrão instantâneo e cerveja congelada vive o homem – disse ela. – Vai me convidar para entrar ou me matar de frio aqui fora?
Shisui deu espaço para ela entrar e depois fechou a porta. Sem fazer cerimônia, Anko depositou a sacola com o frango frito no balcão da cozinha e esparramou-se na cadeira da sala. Shisui ocupou a outra e colocou uma lata da tal cerveja congelada na frente dela. Anko a abriu com um pssht e bebeu no gargalo até esvaziar metade do conteúdo em grandes goles. Bateu com a lata na mesa com um suspiro, um rubor começando a aparecer nas maçãs do rosto. Shisui achou um bom sinal.
– Curtindo as férias?
– Quem olha para mim acha que estou curtindo alguma coisa?
– Bem, não – ela admitiu, levando a cerveja aos lábios. – Talvez esteja precisando de algo para se esquentar. Um pouco de exercício físico, quem sabe. Que tal dormirmos juntos?
– É uma boa ideia.
Ela se engasgou com a cerveja, tossindo violentamente e borrifando a mesa com pingos de cerveja e saliva, deixando ali pontinhos brilhantes que lentamente iam ficando escuros.
– Ei, ei, eu tô brincado – ele se apressou a dizer, dando palmadinhas nas costas dela.
– Pois não teve graça – ela conseguiu dizer, respirando fundo, os olhos marejados. – Se quiser me matar, envenene minha cerveja antes de sequer pensar em concordar numa coisa dessas.
– Desculpe, senhorita, mas você fala como se a ideia nem tivesse sido sua.
– Éé, que seja. Quer ir à um clube, remexer o esqueleto e sacudir o ganha-pão? Passei numa boate no caminho para cá, e tem um garoto lá que faz o seu tipo.
– Obrigado, mas já estou bem resfriado para arriscar pegar qualquer outra doença.
– Você não acha realmente que eu vou te trazer algo de uma pocilga qualquer, acha? – Ela bebeu o resto da cerveja. Quando terminou, contemplou o carpete ilustrando lhamas nas cordilheiras. – Não, companheiro, encontrei um com pedigree. Limpo como água da chuva. Uma noite de fornicação iria lhe fazer mais bem do que pensa, acredite. Sexo regenera o cérebro e, convenhamos, já faz tanto tempo desde a última vez que você usou o Sr. Willy que a coisinha deve ter atrofiado.
Shisui, que dormira com outra pessoa pela última vez numa festa de comemoração pela vitória numa competição de dodgeball entre veteranos e os cafés pequenos (vitória de lavada para os veteranos, principalmente porque Ibiki estava entre eles, o Sr. Campeão Peso-Pesado, pior pesadelo dos bandidos e traficantes, o terror das mentes do crime. O jogo terminou quando um arremesso mal calculado dele fez a bola de couro estourar contra a parede de tijolos do prédio B com um som de trovão. No bar, a primeira rodada foi por conta dele), não teve como replicar. O cara era o filho do chefe, um tipinho agradável e boa-pinta, e a possibilidade de ir para a cama com ele estava tão longe da mente de Shisui quanto a Terra estava de Saturno, mas a coisa aconteceu bem rápido quando as vozes começaram a ficar mais altas e as brigas no truco, mais frequentes. O rapaz se aproximara dele como quem não quer nada com nada, e a próxima coisa que se lembrava era de estar arranhando o lençol e gemendo para ele chupar mais forte e pensando que o filho-da-puta – que seu chefe o perdoasse – era bom nisso.
Depois Shisui lhe pedira, um pouco relutantemente, para não contar nada a seu pai, porque gostava de suas pernas e ainda planejava correr atrás de muitos malfeitores com elas. O garoto fizera um gesto de descaso com as mãos, dizendo para que ele não se preocupasse, e usando uma expressão que Shisui se lembrava até hoje: Sem frescura.
Bem, de fato aquela noite fora há algum tempo – antes da primavera, para ser mais preciso –, mas o trabalho mantivera esse tipo de necessidade longe de seus pensamentos de forma esplêndida, e agora o frio dava conta do recado. Houvera vezes em que se masturbara, e aparentemente era o suficiente para saciar o desejo, porque sexo nunca fora aquela bola toda para ele. Acreditava estar passando por uma fase, e mantinha essa opinião para si. Até certo ponto.
– É – concordou, por fim. – Acho que você tem razão.
Ficaram em silêncio, ouvindo o vento aumentar e diminuir repetidas vezes fora da casa. Às vezes ele parecia sussurrar palavras contra a nuca de Shisui, fazendo calafrios alternadamente frios e quentes descerem sua espinha.Como eles suportam?, pensava constantemente. A coisa parece viva. Isso lhe tirou qualquer vontade de tentar manter uma conversa, de modo que permaneceu calado, bebericando sua cerveja. Dez minutos depois, Anko foi embora, dizendo que tinha outra coisa para fazer [Em inglês: something else to do] e que passara somente para dar um alô.
–Acho que você vai é traçar alguém. [I think you're more likely doing someone; Do someone – Traçar alguém.]
Ela sorriu.
– Sabichão.
– Você é impossível, sabia?
– Éé? E não conheço ninguém melhor – Ela soprou-lhe um beijo que depositara na palma da mão, e em seguida socou seu braço. – Juro que vou mandar aquele garoto vir aqui. Pagar-lhe o maior boquete que você já recebeu.
– Vai nessa – disse Shisui, pensando no filho do chefe. Fechou a porta e olhou pensativamente para a sacola que ela trouxera. Serviu-se uma coxa e um pedaço de peito do frango e foi comer debaixo das cobertas. Quando começaram a esquentar, ele tirou as meias e recostou a cabeça para trás, os olhos fechados, pensando que talvez aquele lugar não fosse o prelúdio do mundo terminando em gelo. No dia seguinte poderia tentar aprender a patinar, exercício físico, como Anko dissera, e visitar os pontos turísticos da cidade. Beber uísque. Comer um prato típico dali (o chefe tinha razão, ele tinha que admitir, estava magro como um faquir). Dar as caras na Igreja Mundial e dizer ao padre num tom de consolo Isso não é nada comparado à Disney World, né mesmo? E aquele foi seu último pensamento antes do sono o derrubar na escuridão, e ele dormiu profundamente, sem sonhos, até novas batidas na porta o despertarem.
(ouvi batidas de novo. na porta
estou dormindo, dormindo e imaginando)
Acordou, mas continuou com os olhos fechados. A claridade opaca da neve se fora, e o quarto estava mergulhado em sombras – conseguia percebê-las mesmo através das pálpebras fechadas. Ninguém se atreveria a sair de casa à noite, no meio da neve, mesmo um russo, não é? Não é?
Talvez sim. Pelos deuses, talvez sim.
– Meu Pai – ele resmungou, levantando da cama e tapando-a de novo, na vã esperança de que o calor de seu corpo continuasse lá quando retornasse. Se o sujeito perguntasse se ele gostaria de saber mais sobre o novo empreendimento que sua empresa estava desenvolvendo, ele era bem capaz de quebrar a cara dele, não importasse o quanto de generosidade seus pais haviam conseguido enfiar em sua cabeça ou o quão frio pudesse estar lá fora. Se havia pessoas suficientemente birutas para saírem de casa em noites iguais àquela, que morressem congelados, enterrados até a bunda na própria audácia. Russos cretinos. Cre-ti-nos.
No exato instante em que seus dedos ainda quentes entraram em contato com o metal frio da maçaneta, o vento soprou tão forte que a porta tremeu no batente, como se alguém a estivesse forçando pelo lado de fora. Shisui recuou a mão como se tivesse levado um choque. Em meio à sua sonolência esteve alheio ao barulho da ventania do lado de fora, que nos últimos dias havia se tornado tão familiar e constante que ele nem chegava mais a perceber, a não ser que silenciasse. Com o coração palpitando no peito e os pés descalços entorpecendo rapidamente, pensou mais uma vez em como aquele som parecia vivo, gritando em volta da casa como uma criança perdida. Por dois segundos cogitou dar uma segunda volta na tranca e voltar para suas cobertas que, se Deus fosse um cara bacana, ainda estariam mornas e meio úmidas por causa da neve. Afinal, se fosse mesmo um engraçadinho distribuidor de panfletos a morrer de frio, qual seria o dano? Menos um desgraçado com o emprego bem-remunerado de vagabundo de esquina? Era até um favor ao mundo, não era?
O problema é que sei que não vou fazer isso, pensou, dessa vez agarrando a maçaneta girando a chave na fechadura. Me faço de durão, mas não posso deixar o cara no frio. Não com vento parecendo...
Parecendo o quê, exatamente?
Não importava, porque quando abriu a porta ela quase foi arrancada de sua mão. Precisou segurá-la com todas as forças, para que não escapasse e batesse de volta na lateral da casinhola e talvez quebrasse a dobradiça. Esforçou-se tanto que quase caiu sentado sobre o traseiro. A própria profundidade da neve – além de vinte centímetros – o ajudou a se manter em pé. A neve e a pessoa que batera à sua porta, que o segurou pelos braços antes que caísse no chão.
– Opa – ela disse, ajudando Shisui a se levantar. As mãos que o seguravam eram brancas e de dedos longos e pálidos.
Estava escuro, as luzes da cidade apenas halos fantasmagóricos que flutuavam no ar, mas o rosto dentro do capuz de pele estava perfeitamente claro, parecendo ser iluminado apenas pelos flocos de neve, que reluziam no vento com um brilho branco próprio. Shisui descobriu que, mesmo o garoto (sim, porque era isso que aquele pirado era: um garoto) tendo batida à sua porta em plena madrugada e em meio a uma tempestade de neve, nunca iria ter colhões o suficiente para quebrar a fuça dele. Primeiro porque ele era mais novo, provavelmente ainda nem podia comprar uma bebida num bar, e se Papai e Mamãe não conseguiram lhe ensinar a ser generoso, conseguiram pelo menos lhe ensinar a nunca bater em crianças menores que ele, por mais que merecessem uma surra. Mas principalmente porque o frio tornaria o impacto mais doloroso para sua mão.
– Desculpe – Shisui murmurou. Limpou a neve dos pés, agora completamente insensíveis, apoiando-se no batente da porta e tentando não fazer careta. – A danada quase me escapa da mão. Rapaz, que neve, você não...
– Corte a conversa mole – disse o garoto num tom de voz enfadado, e quando Shisui levantou o rosto para olhá-lo, ele o empurrou para dentro da casa ao mesmo tempo em que os lábios dele achavam a curva de seu pescoço.
(? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ?)
Mais tarde – muito mais tarde, na realidade, quando reuniu coragem o suficiente para acessar aquele específico departamento de sua memória –, Shisui não conseguiria relembrar com clareza o que exatamente acontecera. Se ele lembrava de que o guri o despia sem sinal de pudor? É, lembrava. De que quando suas nádegas bateram no balcão da pia ele começara a chupar e morder seu pescoço? A-hã, também. E quando tentara falar (esforço do qual se orgulhou muito, considerada a situação e chocado como estava) e ele o calou com um dedo nos lábios? Dedo que desceu por seu queixo, garganta e peito até encostar na ponta de seu mamilo esquerdo, mandando uma corrente elétrica por seu corpo, vibrando violentamente na sua espinha e fazendo a pele querer deixar a carne? Sim, senhora, lembrava disso também.
O que não se lembrava era de quando sucumbira àquela loucura. Ele simplesmente... ficara sem reação. Não é isso o que acontece com as pessoas quando um ciclone assalta suas casas ou subitamente começam a serem assediadas por um estranho? Ficam sem reação? Aquela pessoa – aquele menino – chegara como o vento, e Shisui conservara-se tão à ele firmemente quanto uma folha caída de outono. Quando aquela boca tocou sua pele ainda quente, deixando uma sensação que nunca desaparecia completamente, como o mel, despertou nele uma parte de si que não se mexia nem falava há um bom número de anos. Achou que estava morta. Bem, não estava. A parte inferior da barriga estava contorcida de nervosismo e seu membro – um órgão que ficava esquecido a maior parte do tempo, salvo agora, que lhe proporcionaria o prazer físico mais intenso que um homem pode sentir – fazia sua cueca parecer pequena demais, apertada demais, e ele entendeu que raciocinara como um idiota (ou um ignorante) ao concluir que algumas punhetas iriam manter os hormônios sob controle. Pois a resposta era não, elas não eram o suficiente, nunca seriam. E em algum momento ele teve consciência de que era agora ou nunca, proteste ou cale-se até a manhã seguinte, aquela era sua última chance para...
Para o quê? Deveria saber, mas subitamente compreendeu que não sabia. Oh, seu pobre cérebro flutuava.
Novamente o garoto empurrou pelo aposento, batendo a porta com um pontapé, a entrada para a sala-cozinha polvilhada com os flocos de neve granulados que haviam entrado quando estava aberta. Empurrou o corpo sem resistência de Shisui até ele cair na cama, o peito nu subindo e descendo, respirando forte como quem tivesse disputado uma corrida, tão excitado que sua ereção parecia medir um metro de comprimento. O garoto engatinhou para cima dele, apoiando um joelho de cada lado de seu corpo, e Shisui tentou ver o rosto dele tão desesperadamente como uma criança tateia em busca do abajur depois de um pesadelo; aquilo era quase ser assediado por um fantasma.
Cerrou os olhos. Uma névoa pareceu oscilar e descer pelos seus olhos... e o rosto dele entrou em foco.
Tinha se posto ereto acima dele e o olhava por debaixo de pálpebras caídas que poderiam ser de sono, mas que sem sombra de dúvida lhe davam um ar malicioso. O rosto tinha o máximo de palidez admissível numa pessoa viva, mas a cor de seus olhos era indistinguível no escuro; pareciam negros, mas podiam muito bem ser castanhos. Ele desabotoou o longo casaco de pele, o deslizando por seus ombros e braços, os lábios levemente partidos e, independente se aquilo tudo era uma encenação previamente elaborada, Shisui pensou de qualquer jeito: O guri venceu. Levem-no para o centro da pista de dança da boate agora, fazendo isso, que ele vai deixar todo mundo de quatro.
Acabara de jogar o casaco no chão (o que pareceu uma heresia para Shisui, que teria de dar pelo menos dois dedos para comprar um casaco como aquele) e se inclinar em direção ao seu pescoço, as mãos apoiadas nos seus ombros, quando o vento gritou, não mais uma criança perdida, mas uma mulher fugindo de um assassino num melodrama barato, fazendo a neve bater na veneziana com um som surpreendentemente alto. Shisui saltou, apesar de deitado, e num impulso agarrou o garoto como se ele fosse uma bóia salva-vidas, seus testículos tornando-se dois saquinhos amassados de chá, as nádegas duras, pesadas como pedra. Sua paixão ficou tão gelada quanto ossos numa sepultura. O som do vento não durou mais do que cinco segundo, mas mesmo depois que abrandara, nenhum dos dois fez qualquer movimento.
O quarto ficou em silêncio. Shisui sentiu o corpo quente imediatamente, mas não largou o garoto, mesmo sentindo que ele o observava. Ótimo, ele pensou com raiva. Que olhasse. Não era ele o estranho numa terra onde a Era do Gelo ainda reinava, e onde o sol era um boato no leste. Não era ele que ouvia aquele vento amaldiçoado ora sussurrando em volta das portas e janelas, ora urrando na beira dos telhados, convencido de que se virasse a cabeça iria se deparar com um rosto branco horrendo, círculos escuros no lugar de olhos, o observando da janela. E principalmente não era ele o ser infeliz que estava sendo molestado às duas da manhã. Deus, se ele tinha tempo para invadir a casa dos outros de madrugada para se esfregar nos moradores, que fosse se esfregar no poste do cabaré de onde tinha vin...
De repente, teve a luz. Sua mente iluminou-se e compreendeu, total e claramente desde que acordara, o que estava acontecendo ali dentro. Um pequeno gravador interno se ligou e ele ouviu Anko dizendo: Passei numa boate... um garoto lá que faz o seu tipo... mandar ele vir aqui. Pagar-lhe o maior boquete que você já recebeu.
Não entendia porque não percebera desde o início. Ou porque ficara tão surpreso – afinal, tratava-se de Anko, o tipo de mulher que não conseguia deixar de se intrometer, o tipo de mulher que, cedo ou tarde, aprontaria alguma. Lembrou-se de quando os dois estavam no segundo ano do colegial, época em que ficou conhecida como Plug por sempre disparar como um foguete nas aulas de Educação Física – mesmo com quatro gorilões perseguindo-a, ela continuava correndo [she kept plugging] –, mas após ter colocado açúcar no tanque de gasolina da reluzente Mercedes do diretor, sabe-se Deus o motivo, surgiu o boato de que o apelido se devia ao seu gosto por mascar fumo [Em inglês, "plug" pode ser traduzido como "naco de fumo"]. Previsivelmente, depois deste infeliz mas não menos louvado episódio, ela foi "convidada a se retirar", um termo bem mais cavalheiresco para expulsão no intuito de fazer os alunos (os mais imbecis, pelo menos) terem a ilusão de que algum dia eles tiveram uma escolha. Shisui perdeu o contato com ela depois. Soube que fora para uma academia militar, e que lá ela foi posta na linha, informação confirmada quando a encontrou chefiando a oficina mecânica da delegacia no seu primeiro dia de trabalho, o cabelo maltratado e mais comprido e pela primeira vez – louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo – usando sutiã. Ela mudara bastante, verdade, mas não mudara completamente, não, não uma Ebenezer Scrooge depois dos fantasmas terem-lhe visitado (apesar de chegar bem perto disso), pois no fundo ela sempre seria Anko. Anko sem papas na língua. Anko desconfiada. Anko obsessiva compulsiva, que tinha o hábito inalterável de dar três voltas no campo de treinamento antes de passar o ponto para tentar se lembrar se esquecera de algo. Anko, que armara aquela para ele, sabendoque ele gostava de rabo e querendo agradar, mesmo sabendo que de boas intenções, o inferno estava lotado.
E agora, deitado no quartinho minúsculo ainda agarrado ao garoto (ele nãoo estava abraçando), Shisui teve certeza de duas coisas: A primeira era de que ele tinha que atualizar sua lista de pessoas a matar; a segunda era de que não estava na companhia de um garoto de programa, mas de um maldito callboy.
– Olhe, sinto muito – ele disse, soltando-o e deitando os braços na cama. – Desculpe mesmo, eu...
– Você não é daqui, não é?
Bem, na verdade eu queria dizer "Eu não tenho dinheiro", o que não era apenas uma desculpa – desde que tivera de bancar a hepatite do pai, o dinheiro nunca durava muito tempo no banco.
– Está tudo bem – ele continuou, ainda sem ter feito nenhuma menção de mexer, o ouvido pressionado contra a cavidade da sua clavícula. – Eu também me assusto, e vivo aqui desde que me dou por gente.
– Como é que você suporta conviver com um vento que sopra assim? Ele me gelou até os ossos.
– Eu sei, certo?
Houve outro período silêncio. Shisui percebeu que ele falava muito bem o inglês, com apenas um levíssimo quê de sotaque, aquele costume de trilar os erres que os russos estavam condenados a pronunciar pelo resto de suas vidas. Uma nova rajada passou pela casa, de longe não tão forte quanto a última, mas Shisui se retraiu do mesmo jeito, o coração começando a acelerar o compasso. Ouviu uma risada baixa.
– Esse é um bater de coração bem alto.
– Não sou eu – ele contrapôs imediatamente, sem fazer ideia do que estava falando.
– Eu sei – ele disse. – É o meu.
E como é que ele poderia responder àquilo? O garoto recomeçou o percurso por seu corpo, deslizando a mão por partes erógenas e indo parar novamente no mamilo, dessa vez o direito. Enquanto o alisava com o polegar, ele se ergueu, endureceu e começou a formigar. Esta sensação foi fluindo rapidamente pelo corpo de Shisui até o ponto que ainda latejava entre as pernas dele. Ele apertou as coxas e ficou ao mesmo tempo contrariado e surpreso ao descobrir que fazer aquilo só piorava as coisas. Sentia a irrealidade voltando, transformando qualquer palavra que tentasse sair de sua boca tão grande quanto um cubo de gelo.
Aproximando a boca do seu ouvido, o garoto sussurrou:
– Pode tirar minhas roupas, se quiser.
Ele quis. Ele podia. E fez.
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I can hear your heart, I can touch your skin
Feel the whole world breathing from within
I can live it here forever inside
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