Labirinto
Um - Humanidade
A canção saía da caixinha e se desdobrava pelo ar, como minúsculas fadas evoluindo num vôo estranho e invisível. A menina encarava o objeto fixamente, sentindo suas pesadas pálpebras fechando-se e sua consciência esvaindo-se. Sorriu, do fundo de sua mente entorpecida. Era agradável deixar a música levá-la para longe, para um mundo irreal de loucura e confusão, onde as regras não existiam e a autoridade não funcionava. Ela podia ver, e quase tocar, vastos campos ensolarados, infinitos, ilimitados. O mar quebrando contra rochedos, selvagem, indomável. O vento brincando com ela, empurrando-a, jogando-a de um lado para o outro numa dança estranha e maravilhosa.
A música se calou num estalo alto e seco, e Bellatrix deu um pulo assustado, sentindo a consciência voltar dolorosamente. Ergueu os olhos para a forma assustadoramente alta e orgulhosa da mãe. Os olhos de pedra, frios e cinzentos, encaravam-na com a desaprovação e incredulidade costumeiras, e talvez também com um toque de medo e preocupação.
- O que foi que eu disse, Bellatrix? Não toque em nada. Você não está em sua casa, e não sabe o que pode machucá-la ou atacá-la aqui. – A voz era fria, tão fria quanto os olhos duros, o cabelo platinado, a pele branca. Gelada, cortante.
- Era só uma caixinha de música. – Antes mesmo de falar, ela já sabia que soaria tola, mimada, infantil. Era sempre assim, perto de sua mãe.
- Não, não era. Nada é o que parece nessa casa, Bellatrix. Fique perto de mim. E não toque em nada, entendeu?
Apressadamente, ela seguiu a saia da mãe, que desaparecia pelo corredor num farfalhar suave de seda e rendas. Finalmente, as duas entraram no quarto frio e, ao mesmo tempo, abafado. A penumbra reinava no aposento, perturbada apenas por um facho de luz que entrava por entre as cortinas cerradas, e minúsculas partículas de poeira dançavam na claridade. Mais uma vez, Bellatrix sentiu o domínio sobre sua mente ir se esvaindo num torpor sonolento e hipnótico. E, mais uma vez, foi despertada por um estalo alto, frio e seco. Dessa vez, a voz de sua tia.
- Achou a menina, Druella? Você precisa discipliná-la melhor. Esse temperamento distraído e incontrolável vai acabar lhe causando problemas. É claro que ela não é mais tão importante, agora que temos um herdeiro homem para levar o nome da família adiante. Mesmo assim, Bellatrix é uma Black. Deve ser educada como tal.
A menina remexeu-se, desconfortável. Nunca iria se acostumar com a mania de Walburga de falar dela como se não estivesse no aposento. Recusou-se, no entanto, a baixar a cabeça, assustada e envergonhada. Manteve o queixo erguido, e forçou-se a encarar os olhos frios e azulados da tia com os seus, negros e cheios de fogo. Ao seu lado, sabia que a mãe fazia o mesmo, irritada por ser repreendida pela mulher mais velha.
- É claro, Walburga.
- E você, menina? Não vai me cumprimentar?
- Desculpe, titia. É um prazer revê-la. Como vai?
- Terrivelmente mal, menina. E você não está fazendo nada para melhorar o meu humor. Não quero que fique perambulando pela minha casa e mexendo no que não deve, ouviu? Grimmauld Place não é como aquela mansão estúpida onde vocês vivem. Há coisas aqui que poderiam matá-la num piscar de olhos.
- Não vai ser perigoso para Sirius crescer aqui?
- Meu filho vai ser mais bem criado do que você, menina. Vai respeitar as regras dessa casa. E não responda com esse jeito mal educado. Parece que cresceu com lobos!
- Walburga, e o menino? Achei que tivéssemos vindo aqui para conhecer o pequeno Sirius.
Bellatrix ergueu a cabeça e sorriu para a mãe, agradecida pela interrupção. A mulher correspondeu o sorriso rapidamente e voltou o olhar para Walburga que, deitada na cama, respondia com seus habituais resmungos e reclamações.
- Está dormindo agora, no quarto ao lado. Podem ir vê-lo, mas não o acordem, ou ele não vai parar de chorar. Não vou acompanhá-las, estou completamente esgotada.
Druella assentiu com um elegante aceno de cabeça e Bellatrix mais uma vez pôs-se a seguir as saias volumosas da mãe. O quarto de Sirius estava ainda mais escuro do que o de Walburga, e era praticamente impossível distinguir a sombra de sedas, linhos e babados que era o berço do bebê. Isso não diminuiu a curiosidade da menina, que correu silenciosamente para o berço e se pôs na ponta dos pés para observar o menino que dormia.
Bellatrix lembrava-se vagamente de Narcissa dormindo quando era bebê, e esperava que Sirius fosse ser parecido. E, de fato, ambos tinham os mesmos traços, ainda mal definidos, o mesmo corpo pequeno e gorducho, o mesmo cheiro de talco e alguma flor impossível de precisar. No entanto, o menino tinha algo de diferente, algo de simples e fundamental, que Bellatrix não conseguia identificar com precisão. Uma falta de paz e repouso, um ar de insatisfação e rebeldia que se revelava mesmo enquanto dormia. E a menina, de repente, teve certeza de que a tia nunca admitiria, mas estava tão cansada e mal humorada porque o seu maravilhoso herdeiro era, na verdade, um pestinha que a esgotava completamente. A mãe soltou uma risada baixa e suave quando Bellatrix falou-lhe de suas impressões e sussurrou, enquanto observava o bebê adormecido:
- De fato, ele parece inquieto e irritado. Talvez nosso pequeno Sirius já sinta o destino que o aguarda.
- Como assim, mamãe?
Druella soltou um suspiro diante do olhar intrigado da filha, e ajoelhou-se para encará-la melhor, como se fossem ambas da mesma altura.
- Às vezes, quando estou com você, esqueço de que estou falando com uma criança de nove anos, e não com um adulto. Esqueça o que eu disse, Bellatrix.
- Por favor, mamãe, explique. Eu tenho certeza de que posso entender.
- Talvez fosse melhor se você não entendesse.
- Por favor, mamãe...
- Não faça manha, Bellatrix. Não fica bem em você.
- Desculpe, mamãe. Mas por favor, será que você poderia me explicar o que estava falando? Eu fiquei curiosa.
- É claro que ficou. É esse o seu maior problema, não é? Bem, Bellatrix, talvez eu não devesse dizer isso mas...O que eu quis dizer foi que o pequeno Sirius tem um destino amargo pela frente. Não é fácil ser herdeiro dos Black. Eu sei que você se sente jogada fora e deixada de lado, mas fico feliz por você não ser mais a herdeira.
- Titia Walburga diz que não há honra maior do que ser herdeiro dos Black. O papai, e titio Orion também dizem isso.
- Sim, sem dúvida. É uma grande honra, um papel muito importante. E por isso mesmo, é muito difícil. Como herdeiro, o pequeno Sirius terá responsabilidades, terá que corresponder a expectativas que...Que talvez o façam sofrer. Você entende?
- Eu ficaria feliz em arcar com essas responsabilidades por ele, mamãe.
- Será que ficaria mesmo, Bellatrix? Como membro da família Black, você tem certos deveres...Mas eles são flexíveis, podem ser arranjados, podem ser alterados. Agora, como herdeira...Você gostaria de ter sua vida planejada antes mesmo de nascer? Gostaria de ter o peso de uma família inteira, uma família tão rica e poderosa, sobre seus ombros? Gostaria de ser forçada a sacrificar suas idéias e seus desejos pela vontade da família? Gostaria? Logo você, que é uma pessoa tão sonhadora, tão independente, tão desejosa de liberdade?
Bellatrix encarou sua mãe com surpresa. Aquilo estava errado. Os olhos, os braços, o rosto de Druella tinham uma intensidade que ela nunca vira antes. A menina sempre tinha visto sua mãe como uma pessoa fria, distante, indiferente, ainda que gentil e levemente carinhosa. Não estava acostumada àquela torrente de palavras, àquela sinceridade bruta, àquele desespero intenso. Naquele momento, Bellatrix viu-se pela primeira vez atingida pela descoberta de que sua mãe também era um ser humano, com falhas, desejos e medos como ela própria. E embora não gostasse muito da mulher fria e seca que a amedrontava antes, a menina não tinha certeza de que preferia a mulher fraca e humana que acabara de descobrir em sua mãe. Há apenas alguns segundos atrás, Druella era um exemplo para a pequena Bellatrix Black. Um exemplo a ser seguido da força, do estoicismo e da pureza dos Black. Agora, a mãe lhe parecia menor, menos importante...Impura. Como se uma mancha comum e ordinária sujasse aquele modelo de poder e perfeição.
Tremendo suavemente, a filha percebeu que sua mãe não era mais um modelo a ser seguido. Ela, definitivamente, não queria ser ordinária, comum, impura. Ela queria ser grande, perfeita, uma verdadeira Black. Mesmo que aquilo lhe custasse a liberdade.
- Pela minha família, mamãe, eu faria o que quer que fosse necessário.
Naquele dia, Bellatrix fez a primeira grande descoberta de sua vida. E deu seu primeiro passo rumo às trevas.
