Olá pessoal! Aqui estou novamente postando uma nova fic. Essa estória contém spoilers da minha outra fic, A Escola do Zodíaco. Recomendo para quem não tenha lido, que leia antes de começar esta, pois talvez ficará perdido em algumas situações. Espero que gostem. Um grande beijo.
Réquiem em Ré Menor
Capítulo 1
Apesar do dia cinzento e da neve que caía naquela manhã, Anisah acordou animada. Levantou-se rapidamente, se agasalhou e tomou o rumo de sempre. Olhou Marrie, que estava já com 2 anos, dormindo e desceu para preparar o café da manhã. Estava chateada com a discussão que acontecera no dia anterior.
"-Já é a quinta vez que te chamo para ir me ver tocar e você sempre com a mesma desculpa de que precisa trabalhar. Você não participa das minhas conquistas, não torce por mim, está destruindo nosso relacionamento e nossa família.
-Anisah, trabalho para proporcionar o conforto para todos nós! É por nós mesmos que dou duro. Passo o dia no laboratório, estudando, fazendo pesquisas, não é a toa!
-Não, Kamus. Você não pensa em nós, você pensa na primeira pessoa do singular! – Anisah se exaltou e tirou o papel que lia de minhas mãos em um gesto rápido – Veja só, estou falando contigo e você mal está me ouvindo! Continua lendo esses seus malditos projetos!
-Mas é isso que trás dinheiro aqui para casa. Como quer que Marrie tenha um futuro promissor vivendo na miséria, Anisah? Por favor, convenhamos!
-Você sabe qual é a profissão do Mu, não sabe?
-Claro que sei, ele é médico psiquiatra.
-Pois é, e trabalha no hospital. Sabe onde?
-Em Lhasa.
-Pois é novamente! E ele com a minha irmã vem para cá, pra ver a minha apresentação. Ele, que é médico, vem. Meu cunhado. Meu marido, não.
-Os médicos ganham muito melhor que eu, Anisah. Tente entender o meu lado.
-Esse é o problema, Kamus. Eu sempre entendo o seu lado, você é que nunca entende o meu..."
Depois disso, entrou no quarto, batendo a porta. Depois de alguns minutos eu conseguia ouvir o som triste de seu violino. Mozart. Réquiem em ré menor K.626. Preferia ouvir um Allegro a ouvir aquele Réquiem. Sempre que se entristecia, tocava aquela música.
Começamos estudando na Grécia. Quando eu passei para o segundo ano da faculdade de Física, Anisah ingressou em Música. Era impressionante a sua sensibilidade para tocar aquele instrumento tão frágil e preciso. Passei várias tardes junto dela, tentando entender como aquele objeto funcionava. Me dava aulas e aulas sobre o tal violino.
"-O timbre do violino é agudo, brilhante e estridente, mas, dependendo do encordoamento utilizado, tem como produzir timbres mais aveludados, mornos. O som geralmente é produzido pela ação de friccionar um arco de madeira sobre as cordas. – Dizia ela, mostrando o arco delicado – E agora, Kamus, uma informação que provavelmente vai te interessar.
-Qual, Anisah?
-O som produzido pelas cordas é transmitido ao corpo oco do violino, à caixa de ressonância, pela alma, um cilindro de madeira que fica dentro do corpo do violino, mais ou menos embaixo do lado direito do cavalete. A alma liga o tampo superior ao inferior do violino, fazendo com que o som vibre por todo o corpo."
Dois anos mais tarde, partimos para o nosso novo destino: Berlim, na Alemanha. Arrumei um pequeno sobrado na conhecida praça Gendarmenmarkt, onde localizam-se vários edifícios notáveis como a Catedral Francesa, a Catedral Alemã ou a Schauspielhaus, que serve como sala de concertos, onde Anisah ensaiava todas as tardes.
Em uma das apresentações da Orquestra Sinfônica de Atenas, um maestro alemão assistiu ao recital e a convidou para participar da Orquestra Sinfônica de Berlim. Fiquei muito orgulhoso e com as notas que tinha, consegui também me transferir para a Universidade de Tecnologia de Berlim. A partir daí, começamos a nos envolver cada vez mais e acabamos nos casando, logo depois que me formei. Um de meus professores na Universidade me arranjou um trabalho na Audi, companhia automobilística, fazia testes nas peças utilizadas nos automóveis. Embora não tivesse sido um emprego na área que sempre quis, aceitei com entusiasmo, mas continuava no laboratório, pesquisando. Sempre me interessei por Física no Estado Sólido e esse era o grande motivo para as discussões constantes entre nós.
Às vezes, Anisah colocava em cheque os meus sentimentos por ela. E o mais engraçado é que eu nunca coloquei os dela em posição de questionamento. A segurança de estar com ela ao meu lado me trazia muita paz. Ainda mais eu, que durante muitos anos, lutei contra um sentimento tão importante, tão confortante: o amor.
Contam meus pais que, desde pequeno, sempre fui muito cético. Questionava Deus, os sentimentos, tudo o que não conhecia. Custava para acreditar em algo. Sempre tinha de ser palpável. Se não era, não existia. E era assim com o amor. Via meus amigos sofrerem por causa do sentimento dito tão "bonito". Não entrava em minha cabeça como um sentimento considerado bom podia deixar as pessoas sem força, em depressão e inseguras. Não era lógico. Até que eu a conheci. E minha opinião sobre tudo mudou.
Mas voltando... A discussão do dia anterior. Fiquei ouvindo durante um bom tempo o Réquiem. Estava no escritório, sentado em frente ao computador, fazendo cálculos e mais cálculos. Átomos e mais átomos. Quando fui me deitar, ela já tinha adormecido. Acordei depois dela e a encontrei na cozinha. Já lia o jornal.
-Bom dia, Kamus. Acordou tarde, não?
-Bom dia, Anisah. Acordei na hora de costume, aos sábados.
-Já já o seu chá fica pronto. – Disse ela folheando as páginas do jornal – Mu e Kia chegam hoje à tarde. Estão trazendo Dikyi, que já está com 5 anos.
-Como o tempo passa, não Anisah?
-Pois é, Kamus. O tempo passa e com ele a vida.
Olhei para ela profundamente em seus olhos. Aqueles olhos que eu sempre tive medo de encarar. Que durante muito tempo me causaram pânico, se transformando depois em desejo. Era nítido que ainda estava triste comigo. Tentei então encontrar algumas palavras, para tentar consertar parte de meu erro.
-Nunca imaginei que estaríamos aqui, Anisah. Nessa cidade, casados e com uma filha.
Ela me olhou novamente com tristeza.
-Nem eu, Kamus. Mas como já dizia George Bernard Shaw, a vida é uma pedra de amolar e desgasta ou afia, de acordo com o metal de que somos feitos.
Foi como um soco no meu estômago. A chaleira começou a apitar. Ela se levantou e foi até o fogão. Aos poucos despejou na xícara o chá já pronto.
Tomamos o desjejum em silêncio. Não consegui falar mais nada durante aquele momento juntos. Quando terminamos, ela se levantou e começou a tirar a mesa.
-Você vai sair agora cedo ou vai ficar em casa, Kamus?
-Pretendo ficar em casa.
-Trabalhando? – Disse Anisah com rancor na voz.
Respirei fundo. Minha consciência já estava pesada demais.
-Sim.
-Certo. Eu vou ter de ir até o Teatro Municipal agora cedo e depois passar na Liuteria. Vou deixar Marrie por sua conta, afinal, é só dar a mamadeira e colocá-la no cercadinho.
Precisava dar um jeito de parar aquela discussão. Estava indo longe demais.
-Anisah, você não acha que está indo longe demais com essa história?
-Pois é, Kamus. Também acho que estamos indo longe demais. Estou saindo agora. Quer algo da rua?
-Não, obrigado, Anisah.
-Sua calculadora não precisa de pilhas novas?
Ignorei o comentário. Ela passou por mim sem me encarar, pegou a bolsa, o cachecol e saiu.
Não demorou para Marrie acordar. Minha pequena. Anisah fez questão de dar um nome francês a ela, pois sempre adorou a cultura francesa. Com os passos lentos e calmos, foi até o escritório. Escondeu o pequeno corpo atrás do batente da porta e sorriu para mim, ao ver que eu sabia que ela estava ali. Tinha herdado o tom de pele da mãe, mas os olhos e os cabelos eram meus, com toda a certeza. Mesmo com pouca idade, já possuía beleza exótica. Daria trabalho quando crescesse.
-Bom dia, papai!
-Bom dia, Marrie.
Ela veio correndo até mim, com os braços abertos. Lembrava a mãe, quando ainda éramos colegas de escola, e ia me abraçar. Abaixei meu tórax em direção a ela deixando-a agarrar meu pescoço. Ela ria gostosamente.
-Eu te amo muito, papai.
Sempre que eu ouvia aquela frase, ficava estremecido. Aqueles dizeres eram muito profundos e importantes para mim. Ficava sem reação.
-Onde está a mamãe?
-Ela saiu, Marrie. – A peguei no colo e fui para a cozinha.
-Mamãe tocou aquela música triste ontem à noite...
Incrível! Depois de um tempo, percebi que esconder o que acontece conosco de nossos filhos é uma tarefa quase impossível. Além de tudo, Marrie era muito inteligente e tinha uma conexão muito forte com a mãe. Sabia quando Anisah estava triste. Sabia quando nós dois discutíamos, conseguia enxergar por trás das ações. São nessas horas que eu me questiono se esse negócio da tal Astrologia... Se ela funciona mesmo. Lígea. Como eu poderia me esquecer dela? Enérgica, verdadeira e corajosa. Impulsiva demais pro meu gosto, mas muito especial. A última vez que eu a vi foi quando Anisah estava na maternidade. Já tinha conseguido se tornar uma promotora excelente e cuidava de casos de assassinato. Casou-se com Dohko, às vésperas de sua formatura. Dohko também tinha se tornado um advogado de defesa muito bem sucedido. Vivia viajando, provavelmente sua pós-graduação em diplomacia estava dando certo. Quando nos viram no hospital, ficaram imensamente felizes.
"-Fico feliz em saber que do amor de vocês surgiu um fruto!
-Muito obrigado, Lígea.
-Não vai fumar um charuto para comemorar a chegada do bebê, Kamus? – Disse Dohko gentilmente.
-Não, não fumo.
-Qual será o nome do bebê, Kamus?
-Marrie, Lígea.
-Belíssimo nome! – Exclamou Dohko.
-Tinha de ser Anisah para dar um nome desses à nossa menina.
-Escute bem o que vou lhe falar, Kamus. – Lígea fez a expressão séria de sempre, como se fosse a dona da verdade – Marrie nasceu sob o signo de Escorpião. Eu, como nativa desse signo, te digo com muita certeza: Terá uma sensibilidade incrível e nada, nada vai escapar de sua visão interior."
Talvez ela tenha percebido na época que eu não dei muita bola. Mas em várias ocasiões, essa conversa sempre me veio em mente. Talvez ela estivesse mesmo certa.
Dei a mamadeira. Ela tomou rapidamente o leite e pediu para ir brincar. Montei o cercadinho no escritório e tentei me concentrar no que estava digitando.
Impossível. A discussão com Anisah não saía da minha cabeça. Estava inquieto. Dei um murro na escrivaninha, de raiva de mim mesmo. Ela não merecia aquilo. Quando ela chegasse, pediria desculpas e diria que ia vê-la tocar, já que era tão importante assim. Respirei fundo novamente. Foi quando a campainha tocou.
Quem seria àquela hora? Me levantei da cadeira bastante desanimado. Embora gostasse do frio, aquela situação em que me envolvi tinha tirado completamente a vontade de fazer qualquer coisa.
-Kamus, como você mudou! Não te reconheceria se fosse qualquer um de meus amigos da escola! – Disse para mim mesmo.
Abri a porta e levei um susto.
-καλημέρα!
-καλημέρα, Mu. Πώς είστε?
-Ora, por favor, vamos parar de falar grego? Isso me lembra a escola! – Disse Kia com o cachecol quase cobrindo a boca, carregando uma criança no colo.
-Entrem. – Disse para o casal – Anisah disse que vocês só viriam após o almoço.
-Não sei se lembra disso, Kamus, mas minha irmã sempre teve uma péssima relação com a Matemática, Física, Química...
-Provavelmente ela deve ter se enganado com o fuso-horário. – Mu se sentiu constrangido, como sempre – Se preferirem, nós vamos para um hotel. Pode ser que não estejam preparados para nos receber.
-Não, não de jeito nenhum! Anisah estava tão ansiosa com a chegada de vocês que já havia preparado tudo. Vamos colocar as coisas lá no quarto?
-Vamos! Mu, você leva as malas? Dikyi ainda está dormindo e eu não quero acordá-la... Kamus, onde está Marrie? Estou super curiosa para vê-la! A última vez que eu a vi, era aniversário de 1 ano.
-Está no cercadinho do escritório. Se quiser ir até lá.
-Primeiro vou colocar Dikyi na cama e depois vou vê-la.
Kia subiu as escadas e entrou no quarto da minha pequena. Anisah tinha arrumado uma cama para a hóspede. Enquanto isso, ajudava Mu com as malas.
-Fico até com vergonha disso, Kamus. Kia sempre foi muito exagerada, veja só, viemos passar apenas o final de semana e ela trás malas para um mês!
-Mu, até hoje, eu ainda não consegui entender as mulheres. – Foi a única coisa que me veio em mente, naquele momento.
Descemos as escadas conversando sobre o trabalho que ele estava fazendo. Contou que era muito difícil conciliar o trabalho com a família, que Kia ainda era apaixonada por ele da mesma forma de como era quando se conheceram. Dei um pequeno sorriso, quem é que não ia se lembrar? E que se ele não tomasse os devidos cuidados, a sua família seria a maior de Lhasa. Kia estava na janela da sala, com a minha filha. Ela apontava as árvores de natal que enfeitavam a rua. Minha cunhada ria dos comentários de Marrie.
-O que pediu para o papai Noel, Marrie?
-Um piano! – Exclamou a menina – Quero ser igual a mamãe!
Mu olhou para mim assustado. Sim, as crianças de hoje em dia estavam crescendo rápido demais. Preparei mais chá e os servi. Não demorou muito, Anisah estava de volta. Ao entrar, não me cumprimentou, mas ao ver a irmã, abriu um daqueles sorrisos que me tiravam o fôlego em segredo. Abraçou a irmã, Mu e Marrie.
O tibetano percebeu que havia algo de errado entre nós. As irmãs subiram com minha pequena para ver se Dikyi já havia acordado. Fiquei sozinho com Mu na sala.
-Kamus, é impressão minha ou você e Anisah não estão bem?
-Discutimos seriamente ontem à noite.
-Acredito que seja apenas uma fase... Kia e eu também brigamos, acontece com todos os casados, namorados...
-Eu espero que sim, Mu.
Apesar de ter aprendido a ser um pouco mais aberto com as pessoas, estava longe de ser o mais extrovertido. Não ia sair contando para ele meus motivos pessoais. Não era assim tão íntimo dele, porém, Mu fez ressalvas.
-Se quiser se abrir, se aconselhar, pode me procurar, Kamus.
O tibetano sorriu. As duas desceram novamente, sem a presença de Dikyi. Marrie não soltava a mão da tia.
-Estou preocupada, ela não acorda, Mu. – Kia foi em direção a Mu, com a expressão facial aflita – Você não devia ter dado a ela aquele calmante!
-Kia, não se apavore, era apenas Ginseng. Ela deve estar assim porque saímos do fuso, do clima, do ambiente em que vivemos. Até a tarde, ela acorda.
-Espero que tenha razão!
Mu olhou para mim e baixou a cabeça. Certamente com aquele olhar, queria me dizer que sabia pelo que eu estava passando. Anisah chamou a irmã para a cozinha e foram fazer o almoço.
O relógio de pêndulo na sala deu uma badalada certeira. Eram 13 horas. Estávamos sentando à mesa quando uma garotinha de olhos e cabelos lilás e com as mesmas manchinhas vermelhas na testa apareceu na sala. Ela lançou um olhar fulminante para Anisah e sem cumprimentar ninguém, disse:
-Não vá tocar amanhã à noite.
-x-
Réquiem em ré menor K.626: Já doente em seu leito de morte, Mozart trabalhava no Réquiem. A etérea melodia do Lacrimosa foi a última coisa que saiu daquela pena divina. Ao terminar de escrever esta melodia, lágrimas lhe vieram aos olhos, e suas mãos deixaram cair a partitura. Pouco mais tarde, à uma hora da manhã do dia 5 de dezembro de 1791, o mestre estava morto. Alguém escreveu: Um profundo sentimento religioso se evola daquelas notas, que parecem saídas de uma alma em direta comunicação com a Divindade. Houve muita disputa depois da morte de Mozart para saber quem terminaria o Requiem, mas no final a tarefa acabou recaindo sobre seu aluno Franz Xaver Süssmayer. Ele completou a orquestração que Mozart havia deixado incompleta, e escreveu o resto da música, baseando-se em parte em anotações deixadas pelo próprio Mozart.
George Bernard Shaw: (1856-1950), polemista e dramaturgo, nasceu em Dublin e iniciou sua carreira como crítico de artes. Exercitou a ficção e o ensaio, mostrando o poder de fogo da ironia cortante e a visão do mundo peculiar em que vivia. Consagrou-se no teatro, deixando clássicos como "A profissão da sra. Warren" (1902) e "Pigmalião" (1913), esta última, sua peça mais popular, e que, em 1964, deu origem ao filme "My fair Lady". O autor foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1925.
Liuteria: A liuteria é uma manifestação artística que engloba a produção de instrumentos musicais de um modo artesanal, a forma mais comum de denominar os que exercem esta profissão é de liutaio ou de luthier, tais palavras tiveram a origem da construção do alaúde, que em italiano se chama liu ,portanto, liutaio significa quem faz alaúde.
καλημέρα, Mu. Πώς είστε?: "Olá, como vai você?" no idioma Grego.
