Beth Greene
Já havia se passado três dias inteiros desde que Lori morrera. O clima que prevalecia na prisão era como uma nuvem negra, praticamente palpável. Ela era uma pessoa importante para cada um de nós, principalmente para mim. Lori sorria de forma tão afável quando me olhava, que por milhares de vezes senti como se estivesse na presença de minha própria mãe. Eu queria ter um momento para chorar minha dor, mas a pequenina inquieta em meus braços me lembrava a cada segundo que havia um motivo para continuar forte.
Rick estava desolado, o que apenas provava o quanto ele amava sua mulher, por mais que não estivesse demonstrando nos últimos meses. Seus assuntos não me diziam respeito, contudo, eu sabia que as coisas entre ele, Lori e Shane sempre foram um pouco turbulentas. Carl sofria a sua própria maneira, mantendo-se afastado e silencioso. Eu sentia tanto por ele... Queria que Rick estivesse ali para consolá-lo, mas, como fazê-lo quando nem mesmo ele possuía estruturas para isso?
Pela primeira vez em todo esse tempo dentro desse grupo, senti como se eu fosse realmente útil. Nunca pensei que teria muito jeito com bebês, sequer havia convivido com muitos, mas ter a pequena menina de olhos claros em meus braços era realmente reconfortante. Ela era como uma pequena fagulha de esperança em meio a tanto sofrimento. Com as coisas fluindo de forma amarga, sequer haviam reservado um tempo para batizar a linda garotinha, entretanto, Daryl costumava chamá-la de Bravinha. Era até um pouco gentil da parte dele apelidar o bebê, geralmente ele costumava ser calado e insensível, mas desde que Bravinha nascera ele tem se mostrado muito mais empenhado em buscar suprimentos. Segundo ele, não permitiria que ninguém mais naquele grupo morresse.
O xerife estava chegando ao fundo do poço. Ninguém conseguia se aproximar, e quando meu pai o fez, tudo o que disse foram devaneios sobre ligações que recebia. Infelizmente, as linhas telefônicas haviam sido uma das primeiras coisas a serem extintas no mundo pós-apocalíptico. A verdade é que todos nós estávamos enlouquecendo aos poucos, e eu só pedia a Deus para que Rick voltasse ao normal logo. O grupo precisava muito de sua liderança, e, além disso, seus filhos precisavam da presença do pai.
Bravinha remexeu-se em meu colo, agarrando um botão de minha blusa com suas mãozinhas pequenas e gorduchas. Seu choro era baixo e abafado, como se pudesse saber do perigo que existia do lado de fora. De certa forma, sentia-me contente por ser uma das únicas pessoas naquela prisão capazes de acalmá-la. Instintivamente embalei meu corpo de um lado para o outro, puxando em minha mente alguma melodia que pudesse acalmá-la e fazer com que ela pegasse no sono novamente.
— Know a man, his face seemed pulled and tenselike he's riding, on a motorbike in the strongest winds. So I approach with tact, suggest that he should relax, but he's always moving much too fast...
"Said he'll see me on the flipside, on this trip he's taken for a ride. He's been taking too much on, there he goes with his perfectly unkept clothes, there he goes...
He's yet to come back, but I've seen his picture, it doesn't look the same up on the rack. We go way back...
And I wonder about his insights, it's like his thoughts are too big for his size. He's been taken, where I don't know. Off he goes with his perfectly unkept hope, there he goes..."
Antes que eu pudesse terminar a canção, a pequenina já ressonava tranquilamente. Por um momento invejei sua calma, sua ignorância sobre o mundo lá fora, e sobre todas as perdas que já havíamos superado antes mesmo dela vir ao mundo. Acariciei seu rostinho delicado de porcelana e suas pálpebras tremeram um pouco. Mesmo com todo o sofrimento que pairava sobre aquela prisão, não pude deixar de sorrir.
Senti uma mão pesada pousando em meu ombro, e sobressaltei-me com o susto, virando em direção a porta enquanto apertava o bebê contra meu peito, protetoramente. Olhos estreitos e azulados encaravam-me com um pequeno sorriso surgindo em seus lábios rodeados pela barba por fazer. Sua expressão era cansada, mas mesmo assim, pude perceber que uma leve felicidade ameaçava tomar posse dele apenas por encarar sua pequena filha.
— Me desculpe — ele sussurrou após um tempo, provavelmente desculpando-se pelo susto.
Acenei devagar enquanto sentia minhas bochechas ferverem, tanto pelo susto, quanto por não saber há quanto tempo ele me observava. Talvez ele houvesse escutado a canção, que de alguma forma se encaixava em sua figura difícil de ser compreendida.
— Quer pegá-la? — ofereci baixinho. Não havia notado que já havia se passado um bom tempo desde que estava com a pequena na cela, e aparentemente a grande maioria do grupo dormia.
— Eu não sei... Ainda não tenho muito... jeitocom isso — Rick parecia hesitante. Sorri discretamente com aquilo. Como podia um homem tão seguro de si, estar receoso apenas por ter de pegar um bebê em seus braços?
— É fácil, e ainda menos complicado quando ela está dormindo — sorri novamente, incentivando-o. Ele acenou com a cabeça, ajeitando seus braços para recebê-la.
Depositei a pequena cuidadosamente em seus braços, e instintivamente ele começou a balançar seu corpo de um lado para o outro. Preparei-me para sair da cela e deixar que eles tivessem seu momento, mas sua mão firme segurou meu braço, fazendo com que eu recuasse.
— Fique — ele pediu com sua voz rouca. De uma forma estranha, aquilo me causou uma sensação desconfortável. Não ruim, apenas diferente.
Minhas bochechas coraram violentamente e dei um passo para trás, encarando-o com meus olhos semicerrados, tentando entender o porquê de seu pedido. Nossos olhares ficaram presos por um momento e eu me senti minúscula frente a todo o sofrimento que aquele homem carregava sobre suas costas. Nós, como grupo, sempre o víamos como um líder, e por vezes nos esquecíamos que assim como qualquer um naquela prisão, ele tinha sentimentos tão intensos quanto os nossos.
Engoli em seco quanto ele deu um passo em minha direção, ficando próximo o suficiente para recostar sua testa na minha.
— Apenas fique, Beth — ele pediu em um murmúrio novamente e tudo o que pude fazer fora assentir com um suspiro descompassado.
Eu sabia que ele estava desmoronando, e talvez precisasse apenas de um abraço, um conforto que nenhum de nós havia tido coragem de lhe dar. Reunindo forças de meu âmago, ignorei o instinto de me afastar temerosa, e envolvi sua cintura, juntamente com o corpo do bebê em um forte abraço. Esperei que ele me afastasse, ou saísse para longe, como havia feito com todos nos últimos dias, mas não foi o que aconteceu.
Apenas concentrei-me em manter minha respiração regular, tentando disfarçar todo o nervosismo que havia em mim. Gotas quentes caíram em meu cabelo quando ele recostou seu queixo em minha cabeça. Só havia o visto chorar uma única vez, e estava incapaz de dizer qualquer coisa que fosse fazer com que ele se sentisse melhor. Eu não era a pessoa com quem ele mais tinha contato, na verdade, eu era apegada apenas a meu pai e a minha irmã, sem ter uma ligação especial com as outras pessoas do grupo, mas naquele momento eu senti como se realmente fosse importante estar ali naquela ocasião.
— Vai ficar tudo bem — tentei soar de forma reconfortante, mas tudo o que consegui foi obrigar minha voz a sair, produzindo um gemido sôfrego e cortante. Eu era uma péssima amiga.
Estiquei meu braço para tocar seus cabelos e senti sua respiração acalmar-se aos poucos. Meu rosto queimava de puro constrangimento, e não tinha a mínima ideia do porque de o xerife ter recorrido justamente a mim, tendo tantos ombros conhecidos e amigos que podiam lhe acolher. Tentei convencer-me que tudo se devia aos cuidados que eu destinava a sua filha, e me pareceu uma boa explicação. Rick recuou por um momento, e percebi que talvez eu tivesse avançado um pouco na barreira que havia entre nós. Eu era apenas uma garotinha, o que eu sabia de sofrimento para tentar consolar um homem com tanta experiência quanto ele?
Ele encarou meus olhos com suavidade, como se houvesse um agradecimento oculto naquele simples gesto. Rick esticou a criaturinha que ressonava calmamente em seus braços em minha direção. Tomei-a para mim, depositando um longo beijo em sua bochecha quentinha.
— Obrigado, Beth — Rick comentou passando suas mãos pelos cabelos, nervosamente. Não entendi a real razão de seu agradecimento, então, simplesmente acenei, voltando minha atenção para ele. — Eu preciso voltar pra lá, ficar de vigia — concluiu, virando-se para a saída.
Hesitante, toquei seu ombro com minha mão trêmula.
— Você sabe que não precisa ser assim... Tem outras pessoas que podem estar lá. Dê um tempo a si mesmo. Sua filha precisa de você. Carl, ele... — interrompi a mim mesma no meio da frase. Eu não devia me meter em sua vida daquela forma.
— O que tem o Carl? — ele insistiu para que eu continuasse.
— Ele também precisa de você... Ele não deixa que ninguém se aproxime o suficiente, e você é o pai, talvez possa dizer algo para consolá-lo, ou apenas estar ao seu lado. Passe a noite com ele, talvez isso seja o suficiente para que ele sinta que você ainda está aqui por ele — soltei de uma vez só, mordendo meu lábio inferior e encarando o chão, esperando ser repreendida pelo xerife por ser tão enxerida.
— Eu... — começou com sua voz um tanto embargada. — Talvez você tenha razão — ele suspirou derrotado.
Estendi a Bravinha em sua direção, e dessa vez ele segurou-a com um pouco mais de firmeza.
— Preciso preparar um pouco de fórmula se você vai passar a noite com ela — sorri aliviada encaminhando-me para saída da cela.
— Vou com você — Rick acrescentou, seguindo-me escada abaixo. — Acho que talvez eu deva aprender a alimentá-la — comentou encabulado.
Ri baixinho com sua insegurança. Ele já havia tido essa experiência quando Carl nasceu, mas fora há muito tempo, e Lori estava ali para ajudá-lo. Senti uma pontada de angústia ao pensar em seu nome, mas tentei não me ater muito aquele fato, precisava ajudar um pai totalmente perdido, como se fosse um marinheiro de primeira viagem. Todo aquele tempo que ele havia mergulhado em sua própria dor, parecia tê-lo cegado para o que realmente era importante. A sorte é que ainda havia tempo para recuperar.
Apenas um pequeno lampião iluminava nossa cozinha improvisada, então tive um pouco de dificuldade para encontrar o necessário para preparar a fórmula. Coloquei a água para aquecer, sentindo-me um pouco envergonhada com a forma que o xerife me encarava, um pouco intenso, e totalmente concentrado. Eu sabia que era apenas porque ele estava empenhado em aprender o preparo da fórmula, todavia, ter sua total atenção ainda deixava-me sem jeito. Nunca tive a atenção de ninguém do grupo, sempre fui a garota frágil que precisava de proteção, e poder ensinar algo para alguém, mesmo que fosse a preparar uma mamadeira fazia com que eu me sentisse como se fosse especial.
Quando a água já estava quente o suficiente, desliguei o fogo e tomei a chaleira em mãos, despejando a água dentro da mamadeira. A escuridão não estava ajudando em nada, e acabei deixando que a chaleira quente encostasse em meus dedos. Gemi baixinho enquanto depositava o objeto sobre a bancada e apertava minha mão contra o peito, sentindo as lágrimas começarem a se formar.
— Você está bem? — Rick perguntou rapidamente, parando a minha frente e tomando minha mão na sua.
— Sim, foi só uma pequena queimadura — menti, tentando não preocupá-lo. — Eu sou mesmo uma desastrada — murmurei puxando minha mão de volta. Aquele contato todo com ele me deixava um pouco zonza e estranha.
Terminei de preparar a fórmula rapidamente, agitando a mamadeira e entregando em suas mãos assim que ficou pronta.
— Assim que ela acordar, você pode alimentá-la. Geralmente ela bebe a mamadeira toda, não há com o que se preocupar — expliquei apressadamente, querendo esconder-me em minha cela até que o sol nascesse.
Eu não entendia muito bem o porquê, mas sua presença estava começando a me deixar nervosa e levemente desconfortável. Rick nunca se aproximara de mim antes, e talvez por isso eu estivesse tão receosa em deixar que ele se aproximasse. Percebi sobre a suave luz alaranjada que ele assentiu, encarando seu pequeno bebê que ainda dormia sem fazer a mínima menção de que acordaria tão cedo.
— Obrigado, Beth — ele agradeceu mais uma vez.
Apenas aproximei-me para beijar a testa da menina, como fazia todas as noites antes de dormir, e fui surpreendida quando o xerife depositou um beijo suave sobre minha cabeça. Meu coração bateu de forma engraçada com aquele gesto, e aproveitei-me da pouca iluminação para sair sorrateiramente, fugindo escada a acima, não sem antes sussurrar um "boa noite". As coisas estavam ficando embaralhadas em minha mente, não havia motivos para ficar tão sem jeito perto dele. Rick estava apenas agradecido pelo fato de eu estar tomando conta de sua filhinha enquanto ele estava ocupado. Era isso, só isso. Tentei convencer-me daquilo até cair no sono. Aquela fora uma noite nublada por sonhos confusos e pouco nítidos.
