Capítulo 1 – A partida
A chuva fina e gelada caía do céu, cobrindo as copas das árvores curvadas que preenchiam o jardim do castelo. A água escorria pelos telhados curvados, caindo em sequência até alcançar o chão, criando desenhos pelas enormes janelas. As mãos ágeis de Izayoi e de sua fiel criada, Megumi, passavam pelas longas mechas negras do cabelo liso, alternando-se com um pente dourado fino. Ela olhou-se no espelho do criado mudo, reparando como os olhos seus castanhos contrastavam com a pele pálida do rosto. Izayoi deixou de pentear o cabelo, depositando o pequeno pente de ouro em cima do móvel de madeira, sem que qualquer som fosse emitido. Levou os finos dedos da mão direita ao rosto, sentindo o choque da pele fria da mão contra as bochechas. Respirou fundo, ainda de maneira silenciosa, sentindo as primeiras lágrimas preencherem os olhos escuros.
Não havia nenhum traço de emoção em suas expressões, embora o brilho das lágrimas estivesse ali. Megumi levantou os olhos para visualizar a expressão de sua ama, quando um claro raio cortou o céu daquela manhã, iluminando o quarto. Izayoi finalmente se virou, levantando-se. Caminhou até uma das janelas do cômodo mais alto do castelo, vendo todos os subordinados daquelas terras reunidos no pátio, sob a fina camada branca de chuva. Tudo estava em absoluto silêncio, exceto pelo assovio ruidoso do vento. Megumi pegou a última camada do quimono branco impecável, envolvendo o corpo franzino de Izayoi. Ela abriu os braços e recebeu a peça, espalhando as mechas do cabelo negro sobre o tecido tão branco quanto sua pele.
- Izayoi Hime, estão todos reunidos. - Tadashi ajoelhou-se diante da entrada do cômodo, baixando o rosto.
- Eu estou indo. – A voz doce quase não conseguiu sair dos lábios dela, espalhando-se como um sussurro. – Arigatou gozaimasu.
A serva aproximou-se mais uma vez, trazendo as joias da Hime e os adereços que envolveriam os cabelos e o rosto dela. Os dedos trêmulos e frios de Izayoi colocaram cada peça em seu lugar, até finalmente se unirem, entrelaçados, frente ao peito dela. Outra vez, os olhos escuros procuraram a janela e ela respirou fundo, tentando conter o ritmo acelerado de seu coração. Não se lembrava da última vez que teve tanto medo. Queria tanto que seu pai estivesse lá, como sempre esteve desde que sua mãe morreu. Fechou os olhos por um instante e quase sentiu o olhar protetor sobre ela, mas um calafrio apagou a sensação confortante. Teve de respirar fundo outra vez, antes que perdesse a coragem.
Recuou devagar, ouvindo o som dos tecidos que vestia arrastando-se pela madeira do chão. Caminhou até a porta do cômodo, saindo assim que a cortina grossa foi afastada, liberando o caminho. Megumi e Tadashi seguiram logo atrás dela pelos largos corredores silenciosos, descendo pelas sequências de escadas. Os níveis inferiores do castelo iam ficando mais cheios, ocupados pelos oficiais de confiança e pelos criados. Conforme ela passava, todos paravam, prestando as devidas reverências. Izayoi continuou, entre passos curtos, silenciosos e vacilantes. Cada metro vencido significava uma batida a mais em seu peito. Seu rosto parecia queimar, embora ainda sentisse as mãos frias.
Entrou pelo último cômodo, quando o mais alto oficial a anunciou. O assovio do vento frio preencheu a sala que antecedia a varanda de acesso ao pátio do castelo. Ela sentiu as pernas tremularem e, por um instante, temeu não conseguir sair do lugar. O silêncio absoluto a obrigou a mover-se, chegando à beirada da enorme varanda de pedra. Todos curvaram-se em um movimento ritmado e lento. Izayoi retribuiu da mesma forma, reclinando o tronco suavemente. Quando voltou, os olhos negros percorreram aquela multidão de camponeses, captando cada uma das expressões amedrontadas. Ela também tinha medo e gostaria de poder dizer isso a todos, mas não podia. Estava desamparada, mas tinha de parecer forte, como se ele ainda estivesse ali, ao lado dela. Olhou para o lado por um breve instante, por mero reflexo, mas encontrou apenas uma fila de oficiais da guarda curvados.
- Esta noite o Lord das terras do Sul, Kenichi-sama, meu amado pai, faleceu. – A voz doce foi procedida por um sonoro e tímido uníssono de surpresa. Todos os rostos amedrontados agora pareciam angustiados. Izayoi respirou fundo mais uma vez, sentindo o coração martelar contra as costelas. – Sendo eu o último membro da família que governa o Sul, recebo as responsabilidades deixadas por Kenichi e assumo a posição de... – Respirou brevemente. – Lady.
Além de ouvir outro uníssono de surpresa, Izayoi captou alguns olhares desconfortáveis entre os oficiais da guarda que a cercavam. Sentiu-se sufocada e, seu coração que batia em um ritmo acelerado, pareceu que ia parar. Respirou fundo mais uma vez e olhou para o céu, recebendo o vento gelado contra a sua pele. Por que, pai? Por que este foi seu último desejo?
Assim que as honrarias finais foram feitas, ela saiu da varanda, seguindo pelo corredor até o salão central. Os três primeiros oficiais da guarda a seguiram, deixando Tadashi e Megumi para trás. Izayoi parou no meio do cômodo, recebendo as primeiras reverências. Os três depositaram as espadas das bainhas no chão e retiraram os capacetes, ajoelhando-se diante dela. Ela curvou-se de volta.
- Chamei-os aqui porque sei que eram os homens de maior confiança de meu pai. – Começou, vendo os três acenarem positivamente. – Hoje sairei em viagem para anunciar aos outros governantes a morte de Kenichi-sama. Gostaria que me acompanhassem e que ordenem a todos os outros oficiais da guarda que protejam as fronteiras. – Respirou fundo, juntando as mãos finas. – Temo que este momento instável suscite ataques.
- Hai. – Concordaram, em uníssono, acenando com a cabeça novamente.
Reverenciou-os outra vez, saindo do salão. Seguiu pelos corredores e escadas até o topo do castelo, onde ficava seu próprio quarto. Entrou pelo tecido grosso da cortina, vendo que Megumi estava de pé em um canto, a esperando. Outro conjunto de quimono estava estendido sobre um futon. A serva estava em silêncio e as duas se olharam por instantes. Izayoi se apressou ao encontro dela, abraçando-a com força.
Megumi havia nascido para ser a principal criada da Hime, tendo crescido fielmente ao lado dela. Desde sempre, algumas formalidades eram ignoradas. Apesar de um longo abismo hierárquico as separarem, sentiam-se, antes de tudo, amigas. E agora, Izayoi sentia como se Megumi fosse a única pessoa que poderia enxergá-la. As lágrimas finas percorriam seu rosto e o choro contido tornou-se o único som do quarto pesado. Megumi respirou fundo, passando as mãos pelos cabelos de Izayoi suavemente. Os adornos presos às mechas escuras começavam a se desprender, escorrendo pelo cabelo liso.
- Ele se foi. – Sussurrou, fechando os olhos.
- Era a vontade do coração de Kenichi-sama. – Após um tempo de silêncio, Megumi respondeu, suspirando fundo.
Izayoi ficou em silêncio, tentando acalmar sua mente. Separou-se da criada e sentou-se frente ao espelho mais uma vez, sem encarar o próprio reflexo. Tirou todos os adornos que se prendiam de forma displicente pelo seu cabelo, deixando-os em cima do móvel. Megumi ajudou-a a tirar o quimono branco, vestindo-a, agora, com todos os trajes oficiais. Finalmente, após vestir as camadas de tecido negro bordado em dourado, colocou o arranjo de ramos de ouro que fora da mãe no topo da cabeça. Não tinha muitas lembranças dela, mas, dentre as poucas imagens de Hitomi, lembrava-se dos olhos expressivos e da coroa dourada que ela ostentava entre os cabelos castanhos. A mesma que seus cabelos negros prendiam.
Pegou um tecido fino, que repousava logo ao lado das joias, no móvel. Apanhou uma caneta e molhou-a na tinta.
A morte é mais leve que uma pluma. A responsabilidade de viver é mais pesada que uma montanha.
Conforme a tinta negra tingia o tecido pálido, Izayoi ouvia as palavras do pai, sussurradas e serenas. Fechou os olhos e viu-o ali, doente, mais uma vez. Megumi não mentia: era o desejo dele morrer. Todo sofrimento dos últimos meses havia tido fim. Ele estava cansado, depois de tanto tempo, e sentia-se pronto para partir. Embora tivesse tido apenas uma filha, em toda sua vida, o coração do velho Lord sabia, de alguma forma, que Izayoi estava preparada. Na delicadeza de uma menina que foi criada para ser Hime, havia força para honrar a família, ele pensava. Agora, restava a ela corresponder aos desejos do pai. Assim que a tinta secou, Izayoi dobrou o tecido e guardou-o dentro do quimono, do lado esquerdo. Aquilo deveria lembrá-la do propósito de todo sofrimento e dificuldade que a esperava.
Levantou-se, tendo Megumi logo atrás de si. Caminhou novamente pelos corredores de paredes brancas e piso de madeira bem lustrada. Tadashi e os três generais estavam ali, esperando por ela. A porta da carruagem foi aberta e Izayoi entrou, começando a longa jornada até seu destino.
Notas:
Aien kien significa destino compartilhado. Se refere à um laço afetuoso e surpreendente ou incomum entre um homem e uma mulher, no geral, predestinados um ao outro.
Baseei todas as descrições do castelo de Izayoi no castelo de Himeji. Quem quiser dar uma olhada, dê uma busca no Google Imagens. Tem fotos por dentro e por fora do castelo, que é, aliás, lindo.
Estou reeditando a Fanfic com calma, então peço que tenham paciência comigo. Espero que gostem do resultado. Comentários, críticas e sugestões serão bem-vindas.
Muito obrigada!
Beijos
