"Eu vou matar Hermione... "
Harry Potter observava o caminhão de mudanças já vazio percorrer o caminho que o levaria até a estrada principal. Resmungou, incrédulo, enquanto fitava a cena à sua frente. Os novos inquilinos tinham acabado de chegar. Dizer que estava contrariado seria abrandar a realidade.
O cachorro começou a latir e abanar a cauda.
– Acalme-se, Wilbur! – disse ele, afagando o pêlo castanho do setter irlandês.
Caminhando devagar, Harry encostou-se na varanda e observou o carro estacionado ao lado da casa situada bem atrás da sua. Era um pequeno e antigo chalé, que o impedia de ver completamente o lago.
Por que deixara se convencer por Hermione? Ele havia comprado a propriedade para ter privacidade e ficar em paz. Construíra uma casa moderna e alugava o chalé à beira do lago.
Depois da morte dos antigos inquilinos, os Kelly, no último inverno, Harry pensara em demolir a casa. Sua prima Hermione, a corretora de imóveis, conseguira convencê-lo do contrário.
– É um lindo chalé. Um ótimo ponto de referência. Existem tão poucas construções antigas na cidade. Por favor, Paul, não o destrua – ela pedira.
Hermione soubera como lidar com ele, apelando para a história do lugar. Ninguém tinha certeza, mas se acreditava que o chalé tinha mais de cem anos. Não se faziam mais construções daquele tipo.
Um pouco contra sua vontade, Harry assentira em alugar a casa. Mas para uma pessoa mais velha, de preferência que trabalhasse fora todos os dias. Talvez um ou dois animais de estimação, mas nada de crianças. De jeito nenhum. Então por que estava em pé na varanda olhando para duas garotas indisciplinadas brincarem no gramado em frente ao chalé? Elas não deviam ter mais de cinco anos. E era o mesmo gramado que dava para os fundos de sua varanda.
Não, não podia ser possível. Hermione era atrevida e algumas vezes passava dos limites, mas não ousaria desobedecê-lo. Quando Harry assinara o contrato de locação, a prima lhe dissera que o novo inquilino era uma viúva. Ele achou ótimo, e logo imaginou alguém como a Sra. Kelly, que fazia deliciosas canjas no inverno e tortas de maçã no outono.
Só podia ter havido algum engano.
Talvez fossem as netas da nova inquilina. Os pais delas deviam estar ajudando na mudança. Nesse caso, tudo bem. Harry suportaria crianças visitando sua propriedade, contanto que ficassem a maior parte do tempo dentro do chalé. Sim, só podia ser isso. Estava se precipitando. Como sempre. Segundo Hermione, ele costumava manter sua privacidade guardada a sete chaves, como uma pessoa avarenta que esconde o dinheiro.
Nos últimos três anos, Hermione se manteve perto do primo, e sempre tentava levá-lo para passear. Um piquenique no feriado de quatro de julho, torneios de futebol, procissões da igreja, paradas em homenagem aos soldados mortos na guerra. Não importava a data, ela apenas se preocupava com a presença de Harry.
– Vamos, Harry, você precisa sair mais. Não espere que as pessoas venham até aqui. Tem de se misturar com os outros.
Na verdade, depois do acidente, ele tentara se relacionar com os moradores, mas não fora bem-sucedido. Sentira-se um aleijado.
Não, Harry prezava sua privacidade. Gostava de viver no final de uma estrada interminável no meio do nada. Apreciava cuidar da casa, dos animais, cortar madeira com as costas ao sol. Adorava ficar sozinho. Ninguém o importunava, o aborrecia. Ninguém o olhava...
Podia ser chamado de recluso, de eremita, de esquisito.
Não se importava com o que as pessoas achavam dele, contanto que não tivesse de encontrá-las, de se misturar com elas. Estava contente, às vezes até feliz, e não pretendia mudar nada em sua vida. O tempo de sentir auto-piedade havia terminado de vez.
Hermione e seu noivo, Rony, eram as únicas pessoas com quem mantinha contato. Harry, entretanto, nunca os visitava. Os dois, em contrapartida, sempre encontravam um tempo em suas vidas atribuladas para aparecer. Rony até se tornara um parceiro nos negócios, arranjando-lhe novos contatos. Havia pouco, intermediara um acordo com um novo cliente. Harry gostava bastante do noivo de Hermione e estava contente com o casamento. Talvez ela aprendesse algo; Rony sabia como fazer suas opiniões prevalecerem.
Embora achasse a prima um pouco avoada, Harry a amava demais. Ela, pelo menos, se preocupava com seu bem-estar.
Observou as crianças rolando na grama. "Hermione não teria coragem...".
Harry decidiu entrar em casa, convencido de que, quando estivesse instalada, a nova inquilina viria se apresentar, uma senhora de cabelos grisalhos, presos num coque, simpática e cozinheira de mão cheia.
Mudou de idéia assim que avistou a porta do chalé se abrindo. Viu uma mulher. Uma jovem e bela mulher, usando um vestido florido que lhe acentuava as curvas perfeitas.
Ela sorria enquanto descia as escadas da pequena varanda, de braços abertos. Parecia estar reverenciando a presença do sol. Inclinou-se para a frente, e cachos avermelhados caíram-lhe no rosto. Então, fechando os olhos, envolveu-se num abraço e começou a rodopiar num gesto que só poderia ser chamado de demonstração de alegria.
Harry quase perdeu o fôlego. Respirou fundo e piscou, torcendo para dissipar a visão. Ela continuava lá, no entanto. Não conseguia distinguir as feições da jovem, mas tinha plena consciência do quanto a mulher era bonita. Sentiu um nó na garganta quando a viu colocar as mãos na cintura. Não seria possível. Esses sentimentos, essas urgências já não existiam mais. Fazia muito tempo que não era acometido por tais sensações. Mas tratou de afastá-los logo. Ninguém seria capaz de fazê-lo sentir-se rejeitado, machucado, de novo.
– Alice! Amanda! Venham jantar, queridas!
