Desde as seis da manhã, Gina estava estudando a planilha com a teste enrugada de preocupação. Agora, quase doze horas depois, a falha no documento ainda a aborrecia. E em vez de ficar para solucionar o problema, tinha que sair e socializar com os colegas de trabalho que nem podia chamar de amigos.
Levantou-se, espreguiçou-se e abriu a janela, deixando a brisa agradável soprar a cortina fina e transparente. Ai, ar fresco. Respirou fundo.
A conversa que vinha do pátio, no andar debaixo, chegou até ela sem dificuldades. Vozes femininas e estridentes soavam na tarde quente e calma que já se despedia.
- Acha que ela virá?
- Nem saberia como chegar.
As mulheres deram gargalhadas cheias de ironia. Gina reconheceu as risadas de Becca e Jules.
- Ela precisa relaxar um pouco. Só pensa em trabalho.
- Concordo. Está sempre tão tensa e sempre controlando o dinheiro. Parece que nasceu com a mão fechada.
Gina ficou tensa com as ondas de humilhação que a invadiram. Estavam falando dela. Ela era a responsável pelas finanças da Sanctuary. O fato de que estavam falando a verdade, porém, não significava que aquilo não a magoava. Era realmente comedida com as finanças, mas não por escolha, e sim pelas circunstâncias. Também não deixava de ser verdade que havia estado ocupada demais cuidando da carreira.
Na maior parte do tempo estava ocupada demais para se preocupar, na verdade, mas, naquele segundo, faria de tudo para revidar a afronta.
As mulheres continuavam falando. E ela, boba, continuava escutando.
- Sinto um pouco de pena dela. Vive para trabalhar. Não sabe equilibrar as coisas.
- Pena dela? Não sinto mesmo. Ela é uma tirana. Só porque gosta de trabalhar como um burro de carga não quer dizer que tenha de fazer o resto ralar como ela. Gosto de curtir a vida. A mulher tem apenas vinte e seis anos e parece uma velha.
Bem feito, pensou Gina. Era nisso que dava ficar ouvindo a conversa dos outros. Como ler o diário de alguém. Invariavelmente, acabava aparecendo algo que não gostaria de saber sobre si.
E agora tinha de ir ao bar confraternizar com as mesmas mulheres que falavam mal dela e com resto dos funcionários do hotel que, provavelmente, pensavam a mesma coisa: que Gina Weasley era uma viciada em trabalho, sem vida social. E não era verdade? Sim, trabalhava muito e esperava que os demais também trabalhassem. Havia sido criada assim. Seguia os princípios do pai: trabalhe duro e será recompensada... com elogios, atenção e, talvez, até mesmo com amor. Então, por que não era feliz como deveria, após tanta dedicação à profissão?
Fechou a janela o mais silenciosamente possível. Havia escutado o suficiente. Não ia deixar que elas a atingissem ainda mais. Contudo, queria mostrar que elas estavam erradas. Iria até o bar, sorrir, rir e fingir estar se divertindo ao máximo, mesmo que odiasse tudo aquilo.
Verificou o batom, perfeitamente delineado na boca, e se assegurou de que nenhum fio de cabelo escapava do imaculado coque. As aparências eram tudo. E, afinal de contas, eles esperavam o aspecto impecável e perfeccionista de sempre.
Parou um instante antes de sair e curvou-se para sentir o aroma do jacinto branco sobre a mesa. Era o único item pessoal no escritório límpido e frio. Um pouco mais revigorada pelo perfume fresco da flor, ergueu a cabeça e fingiu indiferença.
Já no bar, a determinação se fragmentou e Gina gravitou até Max tão logo ele chegou. Em menos de um segundo, estavam absortos em uma conversa de trabalho. A reforma do hotel começaria no dia seguinte e havia uma infinidade de pendências para resolver. Viciado em trabalho como Gina, Max se identificava com ela. Tinha contratado-a ainda recém-formada e ela havia progredido rapidamente com seus conselhos e ensinamentos. Trabalhava horas a fio e não temia os desafios.
Max havia acabado de vender o hotel para uma rede voltada para clientes de luxo e o local seria todo reformado. Próximo da aposentadoria, ele havia aproveitado a oportunidade para garantir uma vida tranqüila e abastada dali por diante. E previa um futuro brilhante para Gina. O grupo tinha hotéis espalhados por diversas cidades e se ela usasse os naipes certos, poderia escolher qualquer lugar para trabalhar.
O problema era que não sabia se queria levar adiante aquela carreira. Com a venda, seria um hotel maior, mais horas de trabalho. E começava a pensar que gostaria de curtir mais a vida. Até então havia passado boa parte de sua existência satisfazendo as expectativas dos outros. E não tinha certeza de que estava valendo a pena o sacrifício. No entanto, não podia dizer isso a Max, principalmente depois da oportunidade que ele havia lhe dado. Max era uma pessoa que ela sentia obrigação de agradar.
Olhou de relance para onde as mulheres se reuniam, fofocavam e bebiam drinques coloridos entre risadas e flertes com bartenders.
E lá estava ela, ainda de papo com o chefe de sessenta e cinco anos, com um copo de limonada na mão.
Aquelas mulheres tinham razão. Uma sensação de depressão pesou-lhe no estômago. Tanto trabalho para quê? De quem era o sonho que estava perseguindo?
Pediu licença e foi até o bar. Pediu ao bartender para que adicionasse uma dose de gim ao copo. Tomou um gole e se virou, desviando o olhar dos colegas e dando uma espiada ao redor. Ainda não estava lotado; alguns clientes sentados e, do outro lado, um pequeno grupo de rapazes jogando sinuca. Não pôde evitar olhar o que dava a tacada da vez. Estava de costas para ela e proporcionava uma visão privilegiada do belo e generoso bumbum. O fato de não brincar não significava que não gostasse do jogo. Sabia apreciar as boas coisas da vida, mesmo que apenas com os olhos. As pernas longas, levemente separadas, vestiam um brim escuro. A blusa branca marcava os ombros largos e as costas musculosas. Ele segurava o taco com destreza e tranqüilidade, enquanto se curvava sobre a mesa, intensificando o efeito másculo e admirável daquele corpo. Acertou a bola, que caiu direto no buraco. Mais uma tacada do mesmo ângulo e ele ganharia a partida. O jogador se levantou para apanhar seu drinque e foi quando Gina realmente o olhou com atenção. Conhecia aquele rosto. Assim como conhecia bem aquele sorriso maroto que se expandia com freqüência.
Harry Potter.
A depressão se evaporou e uma alegria infantil a invadiu. Não o via há anos, mas ele sempre tinha uma cara amigável. E uma cara amigável era o que precisava naquele momento. Lembrou-se do fato de que, quando era adolescente, raramente era capaz de fitá-lo sem corar, pois era louca por ele. Ficou tão feliz em vê-lo que, sem hesitar, foi caminhando na sua direção com um sorriso enorme.
- Harry Potter. Como vai?
O olhar atônito no rosto dele teria sido suficiente para que ela recuasse para um canto na mesma hora, não fosse pelo lindo sorriso que se formou em seguida. Um sorriso que sempre a deixava sem fôlego.
- Gina Weasley, que surpresa! - A voz era tão terna quanto o sorriso. As batidas do coração vacilaram um segundo. Havia se esquecido de como era lindo. Deu um rápido gole no gim e teve a ousadia de sorrir de volta. Olhou de relance para trás dele, onde Jule e Becca a observavam atentamente. Provaria que era capaz de ter uma conversa com um gato sem que fosse sobre trabalho. Elas não precisavam saber que o conhecia desde pequena. Ampliou o sorriso e o encarou bem nos olhos antes de dizer em um tom atrevido, como nunca havia falado antes:
- Faz tempo que a gente não se vê.
Ele piscou, surpreso com o comportamento despachado de Gina.
- É verdade. Você agora é uma mulher crescida. - Ele perpassou o olhar por ela toda. - E, claro, uma mulher de sucesso como estava predestinada a ser. O que faz aqui?
- Bebendo com colegas do trabalho. Você?
- Algo parecido. - O colega de Harry saiu de fininho, deixando-os a sós em um canto, ao lado da mesa de sinuca.
Houve uma pausa. Gina se esforçou para encontrar algo para dizer.
Esforçou-se para não ficar encarando-o. Ele também havia crescido nos últimos anos. O belo adolescente havia se transformado em um homem majestoso e másculo.
O silêncio estava se prolongando além da conta e ela percebeu que ele a olhava fixamente, tanto quanto ela o olhava. Passou a língua pelo lábio superior e a atenção dele voltou-se para a boca de Gina. Algo estava errado, pensou.
Finalmente, Harry se manifestou:
- Estou trabalhando em uma obra em um hotel aqui perto por algumas semanas.
- Sanctuary? - Ela perguntou, aliviada pela conversa ter engrenado novamente.
Ele confirmou com a cabeça.
- Sou a contadora desse hotel.
Ele sorriu:
- Então nossos caminhos voltam a se cruzar. Ótimo! Assim você pode me familiarizar com o lugar.
Poderia. E, claro, assistir à fila de mulheres para conhecê-lo. Olhou na direção das mulheres, penalizada por saber que aquela fantasia dela flertando com um gato incrível não duraria muito. Ele estaria no trabalho no dia seguinte e todos saberiam que haviam apenas jogado conversa fora naquela noite, sem maiores conseqüências.
- Sempre esteve em Christchurch?
Ela se voltou de novo para Harry e continuou a conversa fiada.
- Nunca saí daqui. Escola, depois faculdade, agora o trabalho no Sanctuary. É tudo o que conheço.
Havia sido mandada para um internato naquela cidade aos seis anos de idade. Sentia que pertencia muito mais a Christchurch do que à cidade rural onde seus pais e a mãe de Harry moravam e onde havia nascido.
- Você está linda. Uma verdadeira executiva cosmopolita.
Linda? Imagens das ex-namoradas dele passaram pela cabeça de Gina e empalideceram seu sorriso. Ela não fazia o tipo dele.
- Somos o que somos, Harry - disse ela, um pouco seca, lembrando-se dos comentários das colegas.
- Bem, às vezes somos o que esperam que a gente seja - respondeu ele.
Ela o fitou, desconcertada. O comentário estava um tanto próximo da realidade e das dúvidas que a atormentavam ultimamente. Ele continuava com um sorriso tranqüilo, mas o olhar era astuto. Gina decidiu que manteria o tom brejeiro e superficial no mesmo estilo que Harry sempre adotara.
- Você acha? O que esperam que você seja, Harry? Ele demorou um instante para responder e, quando o fez, os olhos tinham uma luz que parecia dançar e o sorriso lento revelava o humor maroto.
- Bem, posso ser o que você quiser que eu seja, Gina.
Ele parecia estar mais próximo do que antes, seu corpo agora bloqueava a maior parte da visão de Gina, causando a impressão de que não havia ninguém além deles no recinto. A voz dele tornou-se mais baixa e ela teve de se aproximar ainda mais para poder escutá-lo.
- É mesmo? - Ela também baixou o tom de voz e esgueirou o olhar para onde estavam as colegas de trabalho. Continuavam bisbilhotando. Ao voltar os olhos para Harry, notou que ele estava ainda mais perto.
- Claro. Qualquer coisa. Alguma sugestão? Gina não conseguia deixar de sorrir. Tinha algumas sugestões em mente e nenhuma delas poderia ser dita em voz alta. Nunca. A não ser que estivesse atuando em um filme pornô, talvez. A queda que tinha por ele quando adolescente voltou com tudo. Gostava dele. Sempre havia gostado. Obviamente, ela e o resto da população feminina, que em grande parte tivera a sorte de ser retribuída com o afeto de Harry. Exceto ela. Para Gina, ele havia sido apenas o vizinho moleque que uma vez no parque fora um bom ouvinte. Desde então, não conseguia olhar para ele sem corar e ficar da cor de um tomate. E assim estava naquele exato momento; podia sentir o calor em suas bochechas. Uma sugestão? Sonhos ocultos que estavam destinados a permanecer em silêncio.
O silêncio dela não parecia incomodá-lo.
- Sabe o que estou pensando? - Harry parecia inspirado. - Estou pensando que deveria ter dado um abraço mais caloroso depois de tanto tempo sem ver você.
Quanto tempo? Pelo menos oito anos. Mas sabia vagamente o que ele havia feito da vida durante aquele período. Lucy, irmã de Gina, era a melhor amiga de Hermione, irmã de Harry.
Por isso, sabia que ele não estava casado. As chances disso acontecer pareciam remotas. Harry era um mulherengo nato. Todos sabiam disso.
- Um abraço? - Vacilou um pouco em seu papel de mulher confiante e segura de si.
- É. Quem sabe até mesmo um beijo.
Ela tentou desviar o olhar. Tentou de verdade. Até chegou a conseguir por um breve instante, mas acabou cedendo e voltando a fitar os belos olhos verdes que brilhavam para ela.
- Um beijo de saudação? Entre amigos?
Ela supôs que fosse um beijo na bochecha, mas não tinha tanta certeza de que Harry achasse o mesmo.
- Claro. Entre amigos. O que acha?
Achar? Como poderia achar alguma coisa, com ele se aproximando ainda mais, a voz ainda mais baixa? Invadindo seu espaço, enfeitiçando-a. Ele tinha mesmo a reputação de ser rápido no gatilho, desde garoto.
Desviou o olhar mais uma vez. Porém, agora não fitava as garotas; olhava para dentro de si, enquanto o coração martelava.
Harry Potter acabara de pedir para beijá-la. O dia não estava tão mal assim. As palavras de Becca voltaram para atormentá-la: "Não saberia como chegar"; "precisa relaxar"; "parece uma velha" aquela havia sido a que mais tinha doído.
- Tudo bem. - Ofegante e nada descontraída, deu a resposta que nem estava disposta a oferecer. Deveria ter rido da proposta.
(...)
