Conto I
Sob a chuva e a noite

Chovia. Como acontecia muito em Londres, chovia.

Era noite e fazia horas que ele estava parado ali. Quando chegou o sol ainda brilhava de leve no horizonte, e no apartamento dela estava tudo escuro. Mas agora as luzes lá de cima estavam acesas e vez ou outra ele podia ver vultos passar em frente à janela.

Harry estava parado embaixo de um poste de luz da rua pouco movimentada. A água estava enxarcando-o, ele não estava com guarda-chuva ou capa de chuva, mas não se importava. Naquela noite nada era importante, apenas a mulher guardada atrás daquelas paredes de concreto, a mulher que morava no terceiro andar daquele prédio antigo e elegante, a mulher que ansiava ver.

A cortina lá em cima se moveu, e ele ficou nervoso. Talvez fosse ela dessa vez... Mas não, não era. Era ele de novo, certamente verificando se Harry ainda estava ali. Ele ainda estava e ficaria a noite toda. Só sairia dali depois de falar com ela, por mais que ela insistisse em ignorá-lo.

Harry suspirou em pesar enquanto notava que a torcicolo incomodava demais. Estava parado olhando para cima havia horas, porém não desistiria.

Tirou o celular do bolso ainda com os olhos pregados na janela do terceiro andar. Discou sem ver, seus dedos já conheciam bem o caminho para aqueles números. Se a noite estivesse calma e silenciosa, poderia ouvir vagamente o telefone dela tocar, mas o som da chuva abafava tudo.

O telefone chamou cinco vezes. Na sexta, atenderam.

- Alô? Alô?

Harry desligou. Era ele. Ele queria falar com ela, não com ele.

Muito tempo se passou. Ele ligou de novo uma, duas, três, sete vezes. Deu meia-noite e as luzes do apartamento se apagaram. Ele continuou ali. Tentou ligar de novo. Foi uma nova voz que atendeu dessa vez.

- Fala, Harry.

A voz dela, tentando soar rude, preencheu-o de nostalgia. Ah, aquela voz! Aquela mulher! Como gostaria de ter feito as coisas certas quando teve a chance!

- Gina, precisa falar com você.

- Não temos nada para conversar.

- Eu preciso.

- Vá embora!

Ela desligou. Não queria saber dele, não queria que ele estivesse ali. Porém ele ficaria, não partiria.

Ligou de novo, mas ninguém atendeu.

Estava esfriando e certamente ele ficaria resfriado. Que pegasse uma gripe ou pneumonia, só não podia desistir. Quando se movimentou para apertar-se mais e se proteger do vento, viu um vulto saindo do prédio. Como havia alguma luz do poste do outro lado da rua, ele reconheceu os cabelos flamejantes. Era ela. Era sua Gina.

A expressão dela era de poucos amigos; a postura, de confronto. Todavia, ele a conhecia bem e sabia que aquilo era apenas aparência: na verdade ela estava temerosa e insegura, só que não queria demonstrar. Os modos duros eram uma atuação barata para ele, grande conhecedor que era daquela mulher, seu espírito, reações e manias.

Ela se aproximou em silêncio. Parou de frente a ele e esperou. Harry teve a sensação que, mesmo no silêncio, ela gritava alto perguntando o que ele queria. Mas ela sabia o que ele queria.

Nenhum dos dois falou ou agiu por um longo tempo. Por fim ela deu dois passos adiante e colou-o sobre a proteção de sua sombrinha.

- Você deveria ir embora. Está frio e chovendo muito.

Ele não respondeu. Não podia. Estava fascinado com a familiaridade do rosto dela: a pele branca, as sardas sutis, os cílios claríssimos, os olhos castanhos, as maças delicadas, o queixo bem formado. Depois de todo aquele tempo, ainda conhecia cada detalhe de sua face. E de seu corpo também, certamente. Tinha lembranças nítidas das horas que passava a explorá-la, tocando e beijando, deslizando as mãos e a língua por sua carne cálida e receptiva. Lembrava da forma como ela costumava agarrar-se a ele, de como mal articulava os gemidos. Se lembrava da cumplicidade de quando faziam amor, das risadas dela, do modo como prendia os cabelos, de como andava, de sua mania de cantar no chuveiro e roer as unhas e de implicar com os objetos que ele espalhava por todos os cantos. Era incrível como as pequenas coisas que antes o incomodava agora o enchia de saudade.

Ela estava perto dele, próxima o suficiente para que Harry esticasse a mão e enlaçasse sua cintura. Mas isso ele não fez; ele continuou parado em silêncio em frente a ela.

- Harry, vá.

- Não.

A voz dele saiu rouca, como se há muito tempo não a usasse, o que era um absurdo - ele tinha falado aquela mesma tarde com seu amigo Rony.

Gina suspirou visivelmente cansada. Passou as mãos no cabelo ("Do jeito que me lembro", Harry pensou) e olhou para além da rua. Parecia prestes a cair em lágrimas a qualquer instante, e quando falou sua voz estava chorosa.

- O que você quer, Harry? O que você veio fazer aqui?

- Vim te pegar. Te levar de volta.

- Ah!

Foi uma exclamação de incredulidade e surpresa, Harry só não entendeu a incredulidade e a surpresa pelo quê.

-Harry, vai embora!

- Não.

- Vai!

- Não.

- Você não tem nada o que fazer aqui!

- Claro que tenho. Você está aqui.

As narinas dela se inflamaram; Gina se virou e começou a caminhar de volta a entrada de seu prédio. Parou no meio da rua e fitou Harry com uma raiva quase sólida.

- Você não tem nenhum direito de estar aqui!

Ele caminhou devagar até ela, sempre fitando-a com intensidade. Os olhos dele pediam por piedade; ele só queria que tudo ficasse bem outra vez.

- Gina...

- Eu quero que você vá! Vai embora! Você só aparece para estragar tudo, para atrapalhar minha vida! – apesar do ódio dela, ele não se abalou – Você teve sua chance, agora me deixa viver a minha!

- Sua chance? Sua chance de quê?

- De ser feliz! De não estragar tud...

Um carro buzinou. Eles se distanciaram, cada um indo para uma calçada, e deixaram o veículo passar. Depois disso Gina já não parecia tão disposta a brigar.

Harry foi até ela, que segurava a sombrinha como se agarrasse o próprio sopro da vida. Ele obrigou-a a tirar a mão esquerda do redor do cabo do objeto e olhou os dedos de Gina.

- É essa – ele exibiu a mão dela, com um bonito anel de noivado, para ela – a sua chance de ser feliz? É o que esse anel idiota representa?

- É – ela foi seca.

Foi a vez de Harry soltar uma exclamação de incredulidade.

- Sabe, eu não acreditei quando Rony me ligou e disse... – ele não conseguiu terminar a frase – Eu simplesmente não acreditei. Você não pode estar feliz com isso!

- Eu estou muito feliz.

- Eu posso te dar um anel muito melhor, mais caro e bonito!

Na rua silenciosa e vazia, seu grito ecoou. Gina continuou a olhá-lo, um misto de raiva, indignação e desprezo nos olhos dela.

- Você acha que eu quero um anel seu? Eu amo o Draco agora.

- Mentira! Eu posso ver nos seus olhos que é mentira!

- Eu gosto dele e vou aprender a amá-lo. Isso... Você foi há muito tempo. Teve sua chance e estragou tudo, Harry, agora é tarde demais.

- Nunca é tarde demais.

Pela segunda vez na noite, ela pareceu prestes a chorar.

- Isso é mentira. Às vezes é tarde demais sim.

Ela deu as costas e caminhou rumo ao prédio.

- Um dia você me amou? Amou de verdade?

A pergunta de Harry fez Gina parar. Quando ela se virou novamente, ele podia ver, apesar da noite escura e da pouca luz, os olhos dela cheios de lágrimas.

Ela se aproximou dele muito devagar.

- Por que – ela estava a dois curtos passos de distância protegendo a ambos da chuva com a sombrinha – você me pergunta algo que já sabe?

- Eu quero ouvir da sua própria boca.

- É claro que te amei! Mas hoje, sinceramente, eu não sei se te amo – ela secou uma lágrima. – O meu gostar por você chegou a ser amor, pois se eu me comovia vendo você, pois se eu acordava no meio da noite só para ver você dormindo... Meu Deus, como você me doía de vez em quando!*

Ela já estava chorando forte àquela altura. Harry teve ânsia de abraçá-la e confortá-la, mas se viu imóvel, os próprios olhos se enchendo de lágrimas quando ela continuou:

- Era triste ficar esperando você sem saber se ia aparecer ou não, sem saber se você me queria de verdade eu não. Meus braços pareciam nunca ser suficientes para te abraçar, e a minha voz parecia nunca te alcançar, porque você estava comigo e ao mesmo tempo tão distante!*

- Gina...

- Eu te amei, e como te amei!, mas você não sabia o que queria, nunca tinha certeza de nada. Quando partiu, eu só pensava em como você me doía...

- Eu não vou partir dessa vez.

- Claro que não – ela secou mais algumas lágrimas e procurou se controlar. – Quem vai partir dessa vez sou eu.

Ele gritou-a, chamou-a de volta, mas Gina correu para seu prédio e se escondeu atrás da porta de entrada. Harry ainda bateu e implorou por ela, mas não adiantou.

Secando inutilmente as próprias lágrimas que a chuva lavava, ele voltou ao seu lugar do outro lado da rua, sob o poste de luz. Olhou para o apartamento dela no terceiro andar e viu que lá dento continuava escuro.

Harry esperou por metade da noite. Voltou a ligar para Gina, mas ninguém atendeu, nem mesmo o noivo dela, Draco Malfoy. Ninguém apareceu na janela e as luzes continuaram apagadas.

Foi então, com pesar e dor, que Harry percebeu que aquelas luzes nunca se acenderiam para ele. Não mais. Não como tantas vezes se acenderam no passado.

Com um soluço na garganta e um aperto no peito, ele seguiu na noite e na chuva rumo à própria casa, que permaneceria sempre fria e oca sem Gina.


* Trechos adaptados e modificados, mas essencialmente de autoria do escritor Caio Fernando Abreu.


Nota:

Vou repetir aqui o que escrevi no meu blog (vejam endereço no meu profile):
Eu aprendi a gostar de contos não faz muito tempo, apenas um par de anos ou cerca disso. E como escrevo fics, sempre imaginei como seria escrever uma fic de contos, ou seja, várias one-shots reunidas em um só título. Então ontem, assim de repente, tive vontade de escrever uma coisa separada das minhas fics e com vida própria. Então resolvi dar vida a esse projeto de criar uma fic de contos.
O lado positivo é que a) eu não preciso postar com regularidade e b) as histórias não tem continuação, se completam por si só. Então eu posso postar um capítulo hoje e outro só no mês que vem que vai dar na mesma, ninguém terá de esperar para saber como a história vai continuar, pelo simples fato dela não ter continuação.
Meu primeiro conto de chama "Sob a chuva e a noite", e eu o considero uma história triste e bonita. Leiam e tirem as própria conclusões, e, por favor, deixem reviews. Eu sempre fico insegura com novos projetos e querendo saber a opinião de vocês.
Aproveitem!

Beijos,
Lanni.