Morte e Renascimento, parte I
Ainda abalada pelo choque da explosão, Lina esfregou os olhos, tentando limpar as lágrimas, e tateou o chão procurando por sua varinha. Ela ignorou a dor aguda no topo da cabeça, cuspiu o gosto metálico que invadia sua boca e tentou focar sua mente nas lembranças do que acabara de acontecer. Um tilintar estridente ecoou dentro de sua cabeça e a alertou para a presença de sua varinha, que rapidamente encontrou o caminho até suas mãos. Lina apoiou na varinha, ergueu-se com dificuldade e tentou novamente abrir os olhos, mas a fumaça espessa fez as lágrimas retornarem com mais força. Um zumbido agudo em seus ouvidos a impedia de ouvir outros sons, inclusive a própria voz.
Fazendo esforço para manter os olhos abertos, Lina assustou-se com o que encontrou à sua volta. O parque que costumava frequentar todos os dias após as aulas estava irreconhecível. Do outro lado da praça central, em meio aos destroços do que outrora fora um quiosque de lanches naturais, Sara e Miki também recobravam a consciência. Uma sensação de tontura a obrigou a abaixar a cabeça. O chão da praça estava coberto por torrões de terra e pedaços de concreto, mas também havia uma fina linha escarlate que refletia os fracos raios de sol que conseguiram abrir caminho em meio a fumaça. Lina ergueu a cabeça e fixou o olhar em um ponto à sua frente, onde as raízes de uma grande árvore estavam expostas. Enroscado às raízes havia alguma coisa que sua mente não conseguiu registrar, mas que lhe trouxe uma forte náusea. O zumbido em seus ouvidos foi lentamente substituído pelo alto som das sirenes dos carros de polícia e ambulâncias que falhavam em abafar os gritos de agonia das outras pessoas que também haviam sobrevivido as desastre.
Lina se ajoelhou no chão e cobriu o rosto com as mãos. Ela não conseguia acreditar no que estava acontecendo. Aquele deveria ter sido o seu dia, o dia perfeito, o primeiro como a líder das Guardiãs de Tóquio. Como tudo pôde ter dado tão errado? Ela se lembrou das palavras da antiga líder do grupo e sua melhor amiga, Mai: "Não se preocupe, essa missão vai ser tão fácil que você nem vai perceber quando ela terminar.". As garotas estavam contentes e já tinham até combinado aonde sairiam para comemorar depois da missão. Aquela sorveteria nova que abriu no centro da cidade e, depois disso, uma festa na casa da Sara. Aquela era a última missão de Mai e elas fariam uma festa de despedida inesquecível. Mas no momento apenas a dor e a náusea pareciam crescer, junto com uma forte sensação de desespero que ameaçava esmagar seu peito.
Um puxão no braço direito trouxe Lina de volta à realidade. Era Sara, que havia se arrastado até ali e trazia Miki apoiada em seu ombro direito. Ela parecia estar dizendo alguma coisa, mas Lina voltou sua atenção a outra coisa. Ela se ergueu em um pulo e correu cambaleante até a árvore caída, ignorando os chamados de Miki e Sara. Lá encontrou Karin encostada contra o tronco de uma árvore logo ao lado, que havia sobrado de pé. Seu rosto estava pálido e seus olhos desfocados estavam arregalados de terror. Em estado de choque, todo o corpo dela tremia incontrolavelmente. Lina segurou Karin pelos ombros e sacudiu levemente, tentando chamá-la de volta.
- Karin! Ei, você pode me ouvir? Está tudo bem, Karin?
Lina chamou duas, três vezes, mas não obteve nenhuma resposta. Foi então que lhe ocorreu que Karin estava olhando na direção das raízes expostas da grande árvore caída. Ela sentiu um arrepio correr por sua nuca e se virou lentamente para olhar. Subitamente sentiu suas pernas perderem a força e então tropeçou, caindo sentada no chão. Em seguida sentiu um enjôo ácido, forte e desagradável tomar conta do estômago e seu peito foi comprimido por uma pressão esmagadora. Então Lina olhou para baixo e viu uma poça líquida se formar na sua frente. Não demorou muito para adivinhar que estava olhando para seu próprio vômito. No momento seguinte ela ouviu gritos e soluços. Voltando o olhar para cima, ela viu Sarah e Miki paradas de pé ao seu lado, com os rostos estampados em terror. Antes que pudesse esboçar alguma reação, uma luz morna e verde a envolveu. Sentiu seu corpo ficar mais leve e a sensação de enjôo desapareceu, restando apenas uma sensação vaga de vazio e tristeza. Sarah e Miki também estavam envolvidas na mesma espiral de luz verde e pareciam igualmente surpresas. Uma esfera se formou ao redor delas e então explodiu silenciosamente com um brilho cegante. Quando Lina finalmente conseguiu abriu os olhos, viu-se sentada sobre uma cama, dentro de um quarto de paredes rosas, decorado com cortinas de rendas brancas e um carpete alaranjado cobrindo o chão.
Com as costas das mãos, Lina afastou as lágrimas que escorriam insistentemente pelo seu rosto. Ela estava confusa demais para se lembrar do porquê de estar chorando. Sacudiu a cabeça e esforçou-se para manter a consciência, respirou fundo e olhou ao redor. O quarto em que estava lhe era bastante familiar. Era o quarto dos fundos da casa de Sara. Há três meses, as garotas haviam decidido usá-lo como base de operações temporária. Elas levaram dias limpando o quarto, pintando as paredes e o teto e arrumando os móveis. Além da pequena cama de solteiro com lençol branco, havia uma estante cheia de livros, uma mesa e algumas cadeiras. Alguns papéis e jornais ainda estavam espalhados sobre a mesa. Lina olhou para o lado e viu Sara e Miki sentadas desajeitadamente sobre a cama. Um tilintar abafado atrás delas indicou a presença de mais alguém. Elas se viraram para olhar e encontraram Karin de pé, encostada em uma parede. Sua mão esquerda ainda segurava a varinha, para onde a espiral de luz verde havia acabado de retornar. Ela estava ofegante e parecia bastante cansada. Em seu ombro direito estava apoiada uma figura tingida de vermelho vivo.
- Por que estão paradas? - perguntou Karin, cambaleando para frente.
Lina foi a primeira a reconhecer a garota que estava apoiada em Karin. Prontamente saltou da cama e foi ao encontro dela. Sarah e Miki também se levantaram para ajudar Lina e juntas depositaram o corpo sobre a cama. Do uniforme restavam alguns poucos pedaços rasgados e manchados. O corpo estava quase irreconhecível com todos os cortes, arranhões e fraturas. Lina se ajoelhou ao lado da cama e afastou os cabelos emaranhados e sujos de sangue do rosto de sua amiga.
- Mai! - Lina chamou, com a voz embargada. - Por favor, não morra, Mai!
Sara se posicionou ao lado de Lina, apontou sua varinha para Mai e fechou os olhos, se concentrando. Um feixe de luz dourada escapou da ponta da varinha e cobriu toda a cama. Miki compreendeu o gesto de Sara, correu para o outro lado da cama e começou a fazer o mesmo. Lina se ergueu e tentou ajudá-las, mas da ponta de sua varinha saíram apenas algumas faíscas, pois toda a sua magia havia se esgotado durante a batalha.
- Karin , por favor, nos ajude aqui! - Sara disse, olhando para Karin, que observava a tudo calada. - Foi você que fez a magia de transporte, não foi? Então ainda tem algum poder pra usar uma magia de cura, não é?
Lina olhou para o casulo dourado brilhante em que a cama havia se transformado e abaixou a cabeça, olhando para sua varinha. Ela sabia que aquilo não adiantaria, pois a magia de cura que elas haviam estudado servia apenas para ferimentos leves. Mesmo assim, havia uma chance remota de dar certo, ainda havia esperança. Ela puxou Karin até o pé da cama e olhou firmemente em seus olhos, comunicando-se silenciosamente. Lina sabia que Karin também estava pensando na mesma coisa, mas deitada sobre a cama estava sua líder e grande amiga, não havia outra opção. Elas deveriam depositar todas as suas forças na esperança.
Um terceiro feixe dourado atingiu a cama. Durante vários minutos o casulo dourado cresceu e brilhou como se fosse o próprio sol. As forças liberadas pela magia fizeram o pequeno quarto estremecer e a temperatura aumentar. Apesar de estar mais quente, o ambiente parecia mais confortável e o ar tinha uma consistência oleosa e perfumada. No entanto, as varinhas haviam chegado ao seu limite. A primeira a falhar foi a de Miki, acompanhada pela varinha de Karin. Quando a magia de Sara se esgotou, o casulo voltou a ser uma cama e o quarto voltou a ficar frio e triste.
Lina se sentou ao lado do corpo inerte de Mai. Não havia mais nenhum arranhão, corte, ou fratura, o uniforme estava inteiro e limpo e não havia mais nenhum vestígio de sangue, nem mesmo no lençol branco da cama. Lina olhou para o rosto de sua melhor amiga. Por ser um ano mais velha que as demais, Mai fora escolhida como líder do grupo. Durante meses elas se divertiram juntas em suas missões, mas no semestre seguinte Mai teria que mudar de cidade e por isso estava deixando a equipe. Ela havia escolhido Lina como sua sucessora dizendo: "Não se preocupe, no final tudo sempre dá certo." Mas tudo havia dado errado. O corpo de Mai estava frio como gelo e as Guardiãs de Tóquio enfrentavam a sua primeira grande derrota.
Karin pôs as mãos sobre os ombros de Lina, mas foi afastada por um gesto violento. Miki se sentou em uma cadeira e curvou-se levemente, cobrindo o rosto com as mãos. Lina deu alguns passos para trás, encostou as costas na parede e deslizou até o chão. Elas haviam falhado. Primeiro falharam durante a missão, que deveria ter sido simples, trivial, mas acabou se tornando uma verdadeira catástrofe. Depois falharam com Mai, que perdera a vida tentando salvá-las. Lina sentiu uma onda de raiva e desespero invadir seu peito. Se ela tivesse sido uma líder melhor, isso não teria acontecido. Se ela tivesse pensado mais rápido, Mai não precisaria ter se sacrificado. Ela olhou com raiva para sua varinha e a segurou com as duas mãos, uma em cada ponta.
- Lina! Que loucura é essa? - gritou Sara, se apressando em sua direção.
- Me deixe! - respondeu Lina, entortando a varinha. - É tudo culpa minha!
As duas começaram a rolar no chão. Lina tentava empurrar Sara para longe enquanto esta puxava seus braços para impedir que a varinha fosse quebrada. Faíscas amarelas escapavam dos dois extremos da varinha e tingiam a pele das duas garotas com pequenos pontos brilhantes. Karin estava parada, observando-as descrente, tentando decidir se o que estava presenciando era real. Miki também não havia saído do lugar, pois estava abalada demais para perceber a luta que acontecia no chão.
- Nada disso é culpa sua! - Sara gritou. - Ninguém estava preparado pro que aconteceu!
- Mas... se Mai não tivesse confiado em mim... ela ainda estaria viva!
- Não diga isso! Mai sempre se importou mais com os outros do que consigo mesma! Ela teria pulado na frente de qualquer jeito! - Sara retrucou, segurando Lina pelos ombros.
Subitamente um feixe de luz azul cortou o ar e uma explosão surda jogou as duas longe, tirando o ar de seus pulmões. Lina levou a mão à cabeça, sentindo-se zonza e olhou para a Sara, que também estava desnorteada. Miki estava de pé no meio do quarto, com uma expressão fria nos olhos. Karin apenas a observava, assustada.
- Miki, - chamou Lina, reconhecendo na mão dela a varinha que pertencera à Mai - o que você pensa que está fazendo? Largue essa varin...
- Cala a boca! - gritou Miki, agressivamente. Sua voz que fora doce e meiga tinha adquirido um tom amargo e grave. - E daí que nós perdemos essa batalha?
- Calma, Miki. - disse Sara. - Todas nós estamos transtornadas com...
- Não, não preciso de calma. - Miki respondeu. - Eu sei muito bem o que estou fazendo e sei muito bem o que nós todas vamos fazer.
Lina se levantou e trocou olhares de preocupação com Karin e Sara. O ar dentro da sala voltou a ficar oleoso e perfumado. Miki se aproveitou da indecisão de suas colegas, saltou para cima da mesa e continuou:
- Nós precisamos apenas de uma coisa neste momento.
- Q-quê? - perguntou Lina, ainda em choque em ver sua amiga tão mudada. - Como assim?
Os olhos de Miki cintilavam com as faíscas azuis que escapavam da ponta da varinha. Dando um largo sorriso, Miki respondeu:
- Vingança.
