Quick English intro note:

I've decided to translate this wonderful story by hedera_helix so my parents and a friend could read. Cheers :)

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Nota de tradutor:

Boas.

Esta será a única nota que vou escrever, por isso peço desde já desculpa pelo tamanho.

Esta tradução do trabalho de hedera_helix, publicado no site archiveofourown org, só foi começada por querer que os meus pais e uma amiga lessem o que, para mim, é um fanfic melhor do que muitos livros impressos. No caso deles, que não conhecem/apreciam Shingeki no Kyojin/Attack on Titan, pode ser usufruído como aquilo que eu o considero ser: um romance histórico extremamente bem escrito e emotivo que poderia estar à venda numa livraria.

No entanto, eles não se sentem confortáveis o suficiente com a língua inglesa para lerem um livro desta envergadura no seu formato original. A qualidade da minha tradução não poderá chegar nem perto da qualidade da escrita original; no entanto, já que ia tentar uma tradução para Português (PT-PT, pré Acordo Ortográfico), algo ligeiramente aterrador, achei que não perdia muito em atirá-la para a internet, não vá alguém algures poder usufruir dela também.

Obviamente, isto é uma tradução amadora de alguém que não tem nada perto de uma formação universitária neste campo. Por uma questão de fluidez, certos nomes de localidades foram traduzidas para o seu equivalente português, e certas expressões tornadas mais casuais através de alguma gíria portuguesa, desde que considerasse adaptar-se no contexto, intenção e na personalidade da personagem em questão. O mesmo se aplica a tratamentos tu/você. Em contrapartida, outros termos em Alemão na versão original (Frau/Herr/etc) mantém-se aqui, assim como termos e títulos militares que ficarão assinalados com itálico. Todo o género de sugestões e correcções são aceites e encorajadas!

Vou tentar manter alguma regularidade nos updates de capítulos, dando-lhe desde já um prazo médio de 2 semanas.

(Tal como a versão original, vou manter os avisos por capítulo. No entanto, o ao3 permite um link directo para o fim do capítulo, para que os avisos possam ser acedidos previamente para quem assim preferia, a fim de evitar ler situações a que sejam particularmente sensíveis. Vou manter esta estrutura aqui no ffnet)

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Levi olha para as manchas no chão da cozinha por mais alguns segundos do que o normal, quando lhe ocorre que não se lembra quando foi a última vez que o esfregou. Já passou tanto tempo que já nem se lembra do que elas são; aquela castanha grande foi da vez que a Isabel entornou a sopa, ou quando ele quase derramou aquela caneca de café? Esta última deve ter sido há semanas atrás - não têm havido cartões de ração de substituição há algum tempo - mas a mancha continua lá.

Enquanto se aproxima da mesa, Levi apercebe-se que se habituou tanto a desviar-se das manchas que já nem nota a mudança no passo. Senta-se ao lado de Farlan, que vai rodando as papas de aveia pelo prato para as arrefecer, sem entusiasmo. Por um momento, pensa em perguntar o que aconteceu ao leite que tinha comprado no dia anterior, mas sabe que Isabel deve tê-lo dado à Frau Gernhardt de novo; não há como negar que os filhos dela precisam mais de leite do que eles, por isso não pensa muito no assunto.

- A Isabel já saiu? - pergunta a Farlan, que sussurra em concordância.

- Disse que ia ver o Herr Schild, por causa do cão dele.

Levi resmunga uma resposta antes de comer uma colherada das papas aguadas que não sabem a nada em particular. Isabel já fazia isto há semanas, desde que descobrira o animal atrás de uns caixotes do lixo que tinha andado a revistar - e quantas vezes é que Levi já lhe tinha dito para não o fazer? - e procurara o dono para poder devolver o cão ao lar em segurança. Era melhor do que ficar em casa o dia todo, e melhor do que roubar comida para os vizinhos esfomeados, por isso Levi não reclama com ela; especialmente quando o Herr Schild a deixa comer das rações dele sempre que as pode dispensar. Durante as primeiras semanas, Levi manteve-a debaixo de olho sempre que ela voltava de uma dessas visitas, para ver se havia alguma mudança radical no seu comportamento. Uma vez, até foi com ela para apaziguar todas as dúvidas sobre o homem. Herr Schild revelou ser um homem na casa dos setenta, um viúvo cujas únicas alegrias na vida eram aquele cão, e uma visita diária de uma filha que ainda vivia perto o suficiente para o visitar.

- Vais sair hoje? - pergunta a Farlan, tentando manter a voz num tom casual, mas o outro homem levanta os olhos do livro com uma expressão assustada.

- Não estava a pensar... - começa, olhando para Levi de forma hesitante antes de decidir. - Não. Hoje não. - Há um tom estranho na sua voz e uma parte de Levi sente-se culpada por ter perguntado. - Tu?

Levi acena. - Vou tentar encontrar trabalho.

É a preocupação constante destes dias; procurar trabalho, alguma coisa para fazer, alguma coisa para não ficar fechado em casa. Ele não percebe como é que Farlan consegue. Todos os dias em casa, a ler os seus livros e a escrever. O que há para escrever? Nada lhe acontece nestes dias. De qualquer forma, Levi termina o seu escasso pequeno-almoço e deixa-o nas suas coisas. Afinal, não há nada que possa fazer para mudar como ele é; e quem é Levi para dizer que Farlan não é o inteligente ali, por viver daquela forma?

Encontra-se nas escadas com Frau Niemeyer, do andar de baixo, depois de uma visita à casa de banho comum - desagradável, como sempre. Ela traz uma carta apertada na mão e ele pergunta-se se serão finalmente notícias do filho, o que foi enviado para Buchenwald há dois anos por um crimezeco do qual ela não fala. Ela agarra-lhe no braço, e pergunta-lhe, com aquele olhar penetrante:

- Como está daquela sua tosse?

Levi tenta sorrir. - Melhor, desde que o tempo tem melhorado - explica brevemente, satisfeito por poder parar com a tosse falsa durante uns meses. Frau Niemeyer, uma intrometida devota, não precisa saber que o motivo de o exército o ter rejeitado não foi uma doença pulmonar não especificada.

- Fico feliz por saber - diz-lhe ela, com uma amostra de sorriso. - Vi o seu irmãozinho a correr lá fora à pouco - continua, apesar de ele já ter começado a descer as escadas. - Devia mesmo ter mais atenção com ele, sabe.

Levi acena sem uma palavra, perguntando-se por quanto mais tempo poderá Isabel manter aquela fachada em específico. - Eu digo-lhe para ter mais cuidado - promete à velha, que aparentemente ainda não estava satisfeita.

- E aquele seu amigo? - continua ela, demorando-se nos degraus acima de Levi, mão cerrada no corrimão. - Não o tenho visto há algum tempo.

Levi consegue sentir o sobrolho a franzir-se.

- Ele descobriu que o irmão morreu o mês passado - diz. As mentiras saem com tanta facilidade. - Ele estava em Leningrado. Era o último membro da família. Não se tem sentido muito bem desde aí.

A expressão da Frau Niemeyer está cheia do género de pena que todos agora têm pelas notícias trágicas dos outros; superficial, e secretamente satisfeitos por a tragédia atingir outra pessoa desta vez.

- Lamento, - diz ela, movendo a cabeça para o lado. - É tão triste ver uma mente fraca assim desperdiçada num jovem bonito como ele. Mas ainda assim, quem pode culpar os pais por não o mandarem para uma instituição? O preço desses sítios! Se eu tivesse podido pagar, era o que eu teria feito com o meu Stefan.

Ela interrompe-se por um momento, expressão distante antes de regressar ao presente. - Ele ainda tem aquela tia em Berlim, não tem? Talvez eles se possam confortar um ao outro.

- Espero que sim - Levi responde, esforçando-se para que a sua voz demonstre uma amostra de emoção, o que, mesmo passado todos estes anos, continua a não ser tarefa fácil.

- Bem, não o quero importunar mais - suspira ela finalmente, pegando as compras do chão. - Heil Hitler.

- Heil Hitler - responde Levi rotineiramente, antes de descer o resto das escadas e sair. O dia vai ficar soalheiro, mas há uma brisa gélida no ar, mesmo tendo em conta o quão cedo é. Levi puxa os colarinhos do casaco contra o vento quando começa a descer a rua.

Vai procurar nas lojas locais primeiro, perguntando por qualquer coisa para fazer, mas ninguém precisa de ajuda por estes dias, já todos aprenderam a gerir sem ajuda extra. As fábricas continuam iguais, recusando toda a gente que pareça ser capaz de carregar uma arma em vez de trabalhar. Levi decide tentar um pouco para lá da cidade, atravessando o Elba pela Ponte Augustus e passando pela parte velha da cidade, sem parar até que um grito surge atrás dele.

- Ei, tu! Baixote!

Algum instinto faz Levi voltar-se e o ar fica preso na garganta assim que vê os uniformes cinzentos. Conta cinco homens, todos armados com pistolas, os rostos rasgados por sorrisos sinistros enquanto estão apoiados na parede, junto a um arco que liga ao pátio interior de um edifício. Um deles faz sinal a Levi para se aproximar e este fá-lo de forma hesitante, embora a mente esteja ocupada a ponderar fugir.

- Posso ajudar-vos? - Levi pergunta tão educado quanto possível, parando a poucos metros dos soldados e tentando manter a voz firme para esconder o facto de o coração estar a martelar contra as costelas.

- Sim, acho que podes. - Um dos homens avançou, e apesar da divisa no colarinho ser de um preto simples, Levi consegue identificá-lo como tendo a maior patente do grupo. Mais do que o estatuto do homem, o que o preocupa é o que aquela divisa preta significa: os homens são da Gestapo.

- Do que se trata, então? - pergunta Levi, franzindo os olhos quando o sol trespassa as nuvens e ofusca os homens do seu campo de visão. Consegue sentir suor a empapar as axilas e luta para manter o nervosismo no rosto a um nível apropriado. Afinal, ninguém quer parecer demasiado tranquilo em frente de pessoas assim.

- Podes fazer o favor de me mostrar os teus papéis.

A mente de Levi está cheia de palavrões enquanto luta para que as mãos parem de tremer, puxando os papéis do bolso; recebeu-os há muito tempo, antes de fugir de Berlim, e sabe que a informação está datada, além de incorrecta de raiz. A mão esquerda fecha-se nervosamente em torno do punho de uma pequena faca que tinha atirado para o bolso das calças antes de sair de casa. O soldado observa a sua identificação por uns bons vinte segundos, entre os quais os olhos de Levi analisam o resto do grupo tão discretamente quanto possível. A sua mente trabalha de forma febril, calculando resultados e formulando planos, tentando evitar considerar aquele irrevogável, mas muito possível, fim da situação.

- Podes dizer-me o teu nome - ordena ele a Levi, que resfolega.

- O quê, não sabe ler? - pergunta antes que se consiga travar, como se os seus nervos tivessem ganho sobre a lógica por um segundo. O homem de uniforme olha para ele severamente, a cara já a mudar para vermelho. - Theodore Mertz - responde Levi antes que o homem possa falar.

- Diz aqui que és de Berlim. - O homem passa os papéis para um oficial mais novo, que os vira para o sol antes de os examinar.

- Mudei-me para aqui depois dos meus pais morrerem - mente Levi, mantendo o rosto impassível. Os seus olhos detiveram-se para seguir uma jovem mulher de vestido cinzento enquanto esta passa na rua entre Levi e os soldados, mãos enluvadas cerradas nas alças da mala; o seu olhar não se eleva por um segundo do pavimento.

- Os meus pêsames - diz o homem, soando a tudo menos isso enquanto acena perante as palavras de Levi. - Como é que eles faleceram? Se não te importas que pergunte.

- Intoxicação por monóxido de carbono - responde Levi, sabendo que soa demasiado indiferente quando vê as sobrancelhas do militar elevarem-se rumo ao cabelo. - Ficaram presos num abrigo anti-aéreo.

- E tu não estavas com eles?

O olhar de Levi segue o soldado mais novo enquanto ele passa os papéis para mais um outro soldado, apontando para algo neles e soltando uma risada baixa que Levi espera ser só ele a gozar com a sua altura. O outro soldado não parece tão divertido, mas agarra nos papéis na mão do colega, olhando para o rosto de Levi e de volta para os documentos, como se estivesse a tentar determinar o quanto ele condiz com a fotografia. Levi afasta o olhar dele e volta a fixar-se no homem que falara antes.

- Estava fora - explica, tentando mantê-lo breve. - A visitar o meu tio Kenny.

- A visitar o teu tio Kenny - o soldado repete, aumentando o sorriso. - Bem, que simpático foi da tua parte. Devo admitir, há uma coisa nisto tudo que não consigo perceber.

Levi tenta controlar a respiração; consegue sentir o punho da faca a ficar húmido com o suor da sua mão enquanto fixa o homem, tentando antecipar as próximas palavras. Vai apontar alguma coisa nos papéis de Levi, alguma discrepância que lhe falhou? Levi engole a custo e respira fundo para dissipar a desorientação que o bater frenético do coração lhe está a causar.

- Como é que não foste recrutado? - pergunta o soldado, mantendo o tom estranhamente educado. - Com certeza os rapazes do Departamento de Guerra não te recusaram só porque és baixo, pois não?

Levi abana a cabeça. - Tenho uma doença pulmonar - diz, esperando que a breve explicação seja suficiente. A mente repete a frase, como que a tentar focar a sua atenção em algo que ele parece não conseguir apanhar.

- Que lamentável - comenta o soldado, e para Levi, a voz soa agora alarmantemente a troça. O homem suspira de forma cansada enquanto um deles passa os papéis de Levi de novo para as suas mãos e olha para eles mais uma vez. - Que tipo de doença pulmonar?

A mão de Levi cerra-se na faca, cérebro a trabalhar desenfreado para arranjar alguma doença que tenha alguma coisa a ver com pulmões, e na altura em que diz - Tuberculose - sabe que já demorou demasiado para responder. O soldado ergue o olhar dos documentos, com um brilho quase enfadado, acenando para Levi se aproximar. Em vez disso, ele dá um passo para trás.

- Vem cá - ordena ele a Levi agora, fazendo-o recuar outro passo.

- Para quê? - pergunta, mantendo a voz firme apesar de não se lembrar quando foi a última vez que sentiu tanto medo. A expressão do soldado torna-se impaciente de imediato.

- Temos de nos certificar de uma coisa - explica, voz subitamente cortante. O olhar de Levi salta do homem para os outros soldados, que começam a aproximar-se dele devagar, como as pessoas andam em direcção a animais que querem capturar.

- Já vos mostrei os meus papéis - Levi tenta, começando a ficar desesperado. - O que precisam de saber deve estar aí, não?

O soldado endireita-se e suspira de novo, seguindo com o olhar as pessoas que passam pela rua à volta deles, mães com os filhos, jovens mulheres a caminho da sua hora de almoço nalgum cafézinho à beira rio. Levi sente como nenhuma delas olha para eles, como se já tivessem aprendido a não olhar quando coisas como estas acontecem em plena luz do dia, mas os seus próprios olhos são puxados para a mão do militar e para esta a descer para o coldre da pistola.

- Preciso que baixes as calças - diz-lhe o homem, dedos a brincar com o fecho do coldre. - Agora, ou o fazes aqui na rua, ou ali no arco onde é um pouco mais privado.

Levi mal se apercebe de conter a respiração enquanto olha em choque para o militar. Pelo canto do olho, consegue ver os outros soldados a aproximarem-se.

- Não vou fazer isso - diz ao homem em voz baixa; as palavras parecem rasgar-lhe a garganta na luta para saírem.

- E porque não?

- Porque é degradante, caralho - insiste Levi, apesar de saber muito bem não ser essa a razão pela qual tem de resistir à ordem. Lembra-se de ouvir um dos seus vizinhos mencionar algo deste género ter acontecido antes, mas na altura tinha pensado que o vizinho inventara a história como alguma piada perturbadora.

- Ou porque tens alguma coisa a esconder - replica o militar, sobrolho franzido de repente ao focar os olhos algures nas ancas de Levi. - O que é que andas a remexer nesse bolso?

Levi tenta parecer tão inocente e despreocupado quanto consegue, mas de novo, quando diz - Nada - sabe que voltou a hesitar um segundo demasiado longo. Assim que dá outro passo atrás, um soldado agarra-lhe o braço e puxa a faca do bolso.

- O que temos aqui, então? - o soldado arrasta-se preguiçosamente quando Levi atira todo o seu peso contra o homem que o agarra; caem os dois no chão mas Levi aterra de lado, rodando rapidamente até ficar de pé e correndo pela rua.

Consegue ouvir os homens a gritar atrás de si, o rugido dos passos pesados assim que começam a sua perseguição, mas tem um avanço e conhece este jogo, apesar de já terem passado anos desde que teve de fugir a pé. Levi consegue sentir a força nas pernas enquanto corre, aquela sensação electrizante de habilidade e poder que o relembra de como as coisas costumavam ser, e sente-se sorrir mesmo com os perseguidores a aproximarem-se. Sabe que o sentimento vai desaparecer depressa; pouca comida e vida árdua tiveram os seus efeitos, e aquela energia vai dissipar-se muito mais depressa no seu corpo pequeno do que dos corpos treinados dos seus caçadores.

Vira à direita num beco, correndo até meio antes de virar à esquerda, saltando sobre uma parede baixa e disparando por um pequeno jardim; consegue ouvir os cães ladrarem a pequena distância e pragueja baixo enquanto continua para uma rua velha pavimentada; os prédios altos cortam a luz do meio dia e o lugar está banhado em sombras esbatidas. Levi interroga-se se deve abrandar para passo, tentar passar despercebido e evitar assim os soldados, mas a rua está quase vazia, e sem muita gente, o plano é menos provável resultar. Por isso mantém o ritmo e corre em frente até ouvir vozes altas, e o som de passos a aproximarem-se fá-lo esgueirar-se por uma brecha entre dois edifícios; mesmo no espaço limitado, os seus passos mal abrandam, algo que ele deseja que aconteça com os soldados que são todos provavelmente do dobro do seu tamanho. Assim que emerge na rua paralela, um grito ruge atrás de si.

- Ali está ele!

Levi pragueja ao virar à esquerda, dando meia volta e correndo agora o mais depressa que consegue. Consegue ouvir o disparo ensurdecedor de uma arma que assusta um cão e o faz ladrar, e o som da parede a quebrar-se atrás de si quando a bala a atinge fica quase abafado em comparação. O seu coração começa a bombear ainda mais depressa, o sangue corre para as pernas e ele luta para conseguir pensar. Não conhece este lado da cidade tão bem, não memorizou os melhores sítios para se esconder e sente que está a testar a sua sorte. Ao correr pela rua, os pés a escorregarem nas pedras velhas da calçada, analisa o caminho em frente; uma encruzilhada entre os prédios, pode virar à esquerda ou à direita. Ou...

Mesmo em frente está um prédio residencial de dois andares cercado por um muro de jardim, não muito alto e não muito largo, e acima dele algo apanha o olhar de Levi; uma cortina, puxada para fora da janela aberta pela brisa da manhã. O plano é terrível, sabe-lo assim que o pensa, pensa de novo em virar à direita já que virar à esquerda já não é uma opção e, ao chegar à encruzilhada, vê uma carroça de madeira vazia encostada à parede em frente. Antes que possa pensar mais, pula em cima dela e salta, agarrando-se ao parapeito da pequena varanda francesa antes de trepar, balançando-se com esforço contra a grade e saltando para a janela aberta, atirando o corpo para o lado de lá apenas segundos antes dos sonoros passos começarem a acumular fora do muro; senta-se no chão abaixo da janela, a lutar para recuperar o fôlego, o seu peito e a garganta a gritarem por ar, quase levando-lhe lágrimas aos olhos enquanto tenta evitar arquejar.

Para lá do seu arfar silencioso, Levi consegue ouvir os soldados perguntarem-se uns aos outros para onde ele fugiu, e pelo que consegue perceber, eles escolheram o caminho mais longo em vez da passagem estreita que ele usou, o que deve ter assegurado a sua fuga. O cão ladra e gane, praticamente abafando os gritos dos soldados.

- Merda de nazis - pragueja em voz baixa, só agora se voltando para investigar o quarto em que está; a primeira coisa que vê é o cano de uma pistola, apontada firmemente entre os seus olhos.

Devagar, como se receasse que o movimento do seu olhar fosse um movimento demasiado súbito, os olhos de Levi começam a a analisar o homem que segura a arma: alto, corpo forte, muito mais forte que o dele sem dúvida, calças e botas de um uniforme militar, o resto da farda cuidadosamente pendurada num cabide à sua direita, o chapéu pousado num móvel de madeira. Fora do apartamento, ele consegue ouvir alguém a apontar a janela aberta; os soldados estão a discutir se ele seria ou não capaz de ter saltado. Levi mantém-se incrivelmente imóvel, os seus pensamentos na faca que aqueles cabrões da Gestapo lhe tiraram, e nem consegue pensar o suficiente para amaldiçoar a situação em que encontra.

- Estou a ver que estão a falar de ti - diz o homem, a voz grave e firme.

A pistola parece pesada mas mantém-se assustadoramente imóvel na mão dele e Levi luta para afastar o olhar dela para observar o homem e o resto da divisão com mais atenção. Há um lavatório atrás dele com um espelho, a moldura parece estranhamente antiquada; Levi apanhou o homem a barbear-se, restos do sabão espumoso que usara ainda nas bochechas e no queixo. O cabelo loiro está cuidadosamente penteado, sobrancelhas pesadas alinhadas de forma severa sobre olhos azuis claros, usa suspensórios cinzento escuros, as botas impecavelmente engraxadas. O quarto é austero mas confortável, não sobrecarregado de coisas, apenas mobiliário essencial, sem um único toque feminino tanto quanto Levi consiga ver, mas ele gosta do espaço, aprecia a simplicidade. Há uma cama à sua esquerda, feita com precisão e cuidado, sem candeeiros nas mesas de cabeceira, apenas uma vela num castiçal branco de esmalte; o fundo é cravado na forma de uma concha com vincos a alargarem para o rebordo - faz Levi recordar-se dolorosamente daquele triste passeio à beira mar, o único a que a mãe o levou, apesar de ele não perceber porque haveria de pensar nisso agora.

Levi processa tudo isso enquanto o olhar saltita pelo quarto, regressando sempre à pistola, e pergunta-se porque é tudo tão vívido, porque é que está a reparar em tudo aquilo agora, porque é que não está à procura de portas ou janelas ou coisas para atirar ao homem, algo que lhe desse a mais ínfima hipótese de fuga. Olha para a pistola de novo, percebe que está carregada e decide: é assim que vai morrer, e que fim mais podre. E encontrar beleza nesta merdosa, medíocre mobília é provavelmente melhor do que ver a sua vida a passar-lhe à frente dos olhos; ver essa tragédia de segunda categoria de novo parece ser a única coisa que poderia tornar tudo isto ainda mais deprimente.

Lá fora na rua, os homens ainda estão a falar, debatendo se devem verificar a casa; um deles insiste, dizendo algo sobre judeus e macacos que Levi não regista devidamente. O cão continua a ladrar. Pelo barulho, parece ladrar à carroça e à parede, e chegam a uma decisão; Levi começa a aguardar que os passos pesados subam os degraus.

O homem em frente dele parece cravado em pedra, a figura alta imóvel, o rosto impassível. Quando as batidas sonoras finalmente rugem à sua porta, ele baixa a arma sem hesitação.

- Não faças nada estúpido - diz, voltando-se para o lavatório e secando a cara e as mãos antes de sair do quarto; Levi consegue perceber pelos suaves sons metálicos que o homem espera até estar do lado de lá da porta antes de desengatar a arma.

Após uns segundos atordoados, o corpo de Levi parece reacordar. Iça o pescoço para espreitar cautelosamente pela janela; estão dois soldados ainda a patrulhar a rua além do muro do jardim, e Levi pragueja. Há vozes vindas da porta da frente e Levi ouve a conversa atentamente; os homens que o perseguem soam apologéticos, um deles está a tentar calar o cão que continua a ladrar alto enquanto falam, e Levi lembra-se daqueles rumores absurdos que dizem que os cães da Gestapo são treinados para reconhecer o cheiro de judeus.

- Estava a perguntar-me o que seria a barulheira - ouve-se a voz abafada do homem enquanto Levi se move à volta da cama em direcção ao lavatório tão silenciosamente quanto possível. Levanta-se, hesitante, vendo o brilho baço de uma navalha no fundo da bacia, atrevendo-se a considerá-la um sinal da sua sorte a mudar. Agarra-a silenciosamente com a mão esquerda, secando o punho de marfim numa toalha; um punho escorregadio não ajudará com uma lâmina tão afiada.

Move-se pelo quarto devagar, posicionando-se no espaço ao lado do roupeiro, atrás da porta. Ouve a conversa enquanto tenta pensar, calcular as razões para o homem não o entregar à Gestapo de imediato. Ser o único nazi bom no mundo não parece uma explicação razoável.

- Não posso dizer que tenha visto algo fora do normal - o dono do apartamento diz, soando tão desinteressado como antes. - Lamento não vos poder ajudar.

O ladrar do cão tornou-se um rosnar baixo e um ganido; Levi consegue ouvir as garras dele esgatanharem o chão e sente uma gota de suor escorregar-lhe pela testa.

- Importa-se que dêmos uma vista de olhos? O criminoso é pequeno, e sabe como estes ratos judeus se conseguem esconder - um outro homem pergunta, rindo-se da sua pequena piada, ao que se segue um silêncio tenso.

- Claramente, isso não será necessário - outra voz mais nervosa junta-se à conversa. Alguém puxa o cão da porta; o ladrar ecoa na entrada, sobrepondo-se às palavras do homem.

- Parece que o Rottenführer se está a esquecer da sua patente e da minha - Levi ouve o homem dizer rispidamente, como se estivesse a realçar algo. - Espero que controlem o barulho daqui para a frente.

- Sim, senhor. Com licença, senhor - um dos soldados ainda consegue desculpar-se antes da porta ser fechada.

O corpo de Levi fica tenso ao perceber que o homem vai regressar e roda a navalha nervosamente, segurando o punho contra a palma da mão, o lado rombo da lâmina a raspar contra o pulso. A respiração acelera ao ouvir o homem aproximar-se do quarto. Levi tem tempo para um segundo de reflexão, uma noção estranhamente calma de como está a ultrapassar aquele limite entre morrer ou matar. A porta começa a abrir, o corpo torna-se leve com força, com raiva, com sobrevivência, e ataca. A pontaria é alta, para a garganta, mas calcula mal a distância; o homem desvia-se do ataque sem dificuldade, prendendo o braço de Levi com uma força aterradora. O que se segue é um combate silencioso, desequilibrado e curto. Não há vantagem que Levi consiga aproveitar, e após meros segundos o homem torceu-lhe o braço para trás das costas, pressionando-o firmemente contra o roupeiro e retirando-lhe a navalha da mão.

- Era precisamente isto a que me referia - suspira o homem antes do aperto doloroso no braço de Levi desaparecer. Quando se volta, vê o homem a fechar a janela e a puxar a cortina branca simples para a tapar. - Eles vão ficar na zona por um bocado. Seria melhor esperares até anoitecer - sugere ele, voltando-se para encarar a incredulidade de Levi quase com uma indiferença serena, antes de murmurar simplesmente: - Se calhar gostarias de te sentar enquanto esperas.

De repente, como se seguissem uma ordem, as pernas de Levi cedem e ele cai no chão em frente do roupeiro. Fraqueza e tremores surgem agora que aquela sobrevivência teimosa deixa os seus membros, e Levi tenta lembrar-se qual foi a sua última refeição quente que não tivesse sido batatas. Restos de fiambre e nabos de Krieger, mas tinha dado tudo a Isabel a Farlan, e isso já fora há cinco dias. Esmolas de nazis, tal como isto, este homem obrigando-o a existir; o ressentimento surge de repente e apetece-lhe gritar, bater em alguma coisa ou alguém, mutilar e matar e mostrar ao mundo a sua fúria, toda a raiva nascida desta idiotice hedionda, esta vil mentalidade retrógrada que no decorrer da sua infância lhe roubou qualquer perspectiva, qualquer expectativa, qualquer entusiasmo pelo que a sua vida adulta pudesse trazer. Levi consegue sentir o homem a observá-lo mas recusa-se a olhar; a pior coisa seria ver pena nos olhos de alguém como ele.

- Talvez seja melhor tomarmos um café - diz o homem. - Ou talvez queiras comer alguma coisa? Há quanto tempo não comes uma refeição decente?

Levi mantém-se calado por teimosia, se não por surpresa, e o homem suspira profundamente.

- Com certeza não há motivo para não agirmos como pessoas civilizadas - continua ele. - Mesmo nestas circunstâncias.

Levi resfolega pela escolha de palavras. - Civilizado? - responde com escárnio. - Não acho que alguém como tu devesse usar uma palavra dessas.

- Diz o homem que me tentou matar nem à cinco minutos - recorda o homem, e Levi não consegue evitar erguer o olhar.

- Tentaste matar-me primeiro - refuta, sem perceber o quão infantil soa até a boca do homem ser torcer para uma amostra de sorriso.

- Ameacei a tua vida, sim - diz o homem, e só agora Levi regista o quão distinto o seu sotaque austríaco soa - e o quão repugnantemente familiar. - Mas só eu sei se a minha intenção era de facto tirar-ta. Se pensares de forma lógica, teria sido muito mais fácil para mim entregar-te aos nossos estimados amigos ali.

Lei sente algo alterar-se na sua mente, como se algo pesado o tivesse subitamente abandonado, o aparecimento do sentimento de futilidade que acompanha o tipo de raiva que não pode ser expressada e que ainda procura uma direcção e um objectivo; há uma cautela que permanece, no entanto, uma desconfiança que ele não acredita que vá poder abandonar depois de tudo o que viu, toda a maldade do mundo. O homem não diz a Levi que ele está seguro, e por agora não necessita de o fazer. Levi suspira e levanta-se do chão, caminhando até uma sala mobilada com a mesma austeridade militar.

- Não gosto de café - diz de passagem ao homem, e ouve-o resfolegar baixinho.

- Talvez chá, então - comenta ele, enquanto segue Levi e passa por ele para a cozinha. Levi senta-se num sofá para esperar; o homem regressa uns minutos depois com um bule de chá e duas chávenas surpreendentemente delicadas, parte de um conjunto. Serve o chá através de um coador, Levi acrescenta leite ao seu e recosta-se no sofá.

- Eu tentei matar-te, sabes - diz ele ao homem, apesar de não saber porquê e não sabe se de facto está a ser honesto.

- Oh, não duvido - responde educadamente, mexendo o seu chá devagar com uma colher. - Esse teu instinto de sobrevivência é bastante louvável. Nunca encontrei um assim tão forte em alguém como tu antes. - Como Levi não comenta excepto por um franzir de testa, o homem continua. - Como conseguiste subir o muro? Parece-me que seria impossível alguém do teu tamanho escalá-lo.

- Estava uma carroça velha junto a ele. Saltei daí - Levi explica com naturalidade, mas a expressão não suaviza.

Há algo tão ridículo em tudo isto, sentar-se no apartamento de um militar nazi, a beber chá e a discutir isto, se tinham de facto tentado matar-se um outro, como se estivessem a falar da merda do tempo. O homem atirou uma perna sobre a outra e parece estranhamente relaxado e formal ao mesmo tempo; a camisa interior branca parece deslocada da sua postura militar, e Levi sente que ele pareceria mais adequado num fato, ou até a usar o resto daquele uniforme revoltante. Algo na frase anterior do homem ficou gravada na sua mente, algo irritante e ofensivo, mas Levi não consegue identificar o quê, e esquece-lo enquanto o homem prossegue.

- Belo salto - elogia-o ele, e Levi resfolega de novo, confuso pelo comentário mas não se incomoda. - Então, quanto tempo passou? Desde a tua última refeição decente, refiro-me.

Algo em Levi quer rebelar-se e dizer ao homem que preferia comer o próprio vómito do que aceitar comida de um cabrão nazi como ele, mas essa hipocrisia começou a superar a força que encontra na desobediência. Costumava ser assim antes, quando era mais novo e as restrições tinham começado a chover por todo o lado e ele jurara nunca se curvar perante qualquer uma delas. Parecia resistência nesses dias, achava que leis injustas como aquelas não deviam ser obedecidas sob circunstância alguma, e agarrara-se a essa noção mesmo quando Kenny o chamara de cobarde e lhe dissera para se orgulhar da sua herança. Mesmo hoje, Levi não consegue decidir se é um cobarde por viver escondido como vive, por fazer tudo o que consegue para não acabar como o resto deles. Talvez seja sobrevivência, como o homem disse, um instinto animal que lhe diz para continuar a respirar pelo máximo de tempo que consiga, mesmo quando estender a sua existência miserável parece não ter qualquer propósito; talvez no final das contas, ele nem sequer tenha outra escolha.

- O que é que vais comer? - Levi pergunta por fim, beberricando o chá tentativamente.

O homem sorri. - Receio que não vá poder respeitar restrições alimentares tão em cima da hora - responde, e Levi não consegue perceber se ele está a gozar ou não. - Mas tenho sorte por ter suficiente para partilhar, mesmo que a comida em si não seja nada de especial.

Os pensamentos de Levi regressam aos motivos do homem, mas tentar encontrar qualquer razão ou lógica por detrás das acções de um nazi parece uma perda de tempo; quem sabe porque fazem eles o que quer que seja, porque matam uns e poupam outros, o que inflama o ódio que têm por todos os que não são exactamente como eles. Talvez o homem esteja a tentar aliviar a consciência, tal como Krieger está sempre a dizer que faz - apesar deste homem parecer não ter aquele espectáculo nervoso de emoção tão característica do outro.

- A cavalo dado não se olha o dente - diz Levi, bebendo mais chá; já faz tempo desde que tomou chá decente como este, com um toque de bergamota que dá ao leite aquele aspecto cremoso. Não consegue evitar sorrir para a chávena.

- Sim - responde o homem de forma quase casual. - Estes tempos são difíceis. Todos temos de fazer sacrifícios em tempos de guerra.

- Uns mais do que os outros.

O homem dá uma gargalhada sem humor. - Assim é a natureza deste mundo, e a natureza daqueles que o habitam - diz ele, a voz a ficar de novo estranhamente apática. Esvazia a sua chávena e levanta-se, elevando-se sobre Levi enquanto diz: - Se me permites, tenho trabalho para tratar. Sente-te como se estivesses em casa, tanto quanto consigas.

O homem atravessa a sala para um pequeno recanto com uma escrivaninha simples de madeira escura, que ele destranca antes de erguer o topo e destrancar a gaveta de cima e retirar alguns papéis. Levi continua a beber o chá e observa o homem enquanto este se senta - o corpo pesado e musculado parece demasiado grande para a cadeira - e começa a escrever, página após página, à mão, pára de vez em quanto para substituir a recarga de tinta da caneta.

Passado um tempo, retira uma pequena máquina de escrever de outra gaveta e continua a trabalhar, retirando papéis e pastas, assinando coisas, fazendo cópias, coisas que seria de esperar que alguém como ele deixasse para uma secretária; Levi pondera se aqueles papéis serão secretos, algo que derrubasse todo o regime Nazi se caíssem nas mãos erradas. É um pensamento agradável, tornado melhor pelo calor do apartamento quando comparado com o de Levi, que só agora começara a aquecer depois dos meses gelados de inverno. Apesar das circunstâncias, Levi começa a sentir-se relaxado e cansado pelo calor confortável e pelo clicar e bater constante da máquina de escrever; há algo calmante no som, tranquilizante, e pouco depois ele adormece.

.

Acorda com um toque no ombro várias horas mais tarde, saltando apesar da sua gentileza educada. O homem está à sua frente e Levi afasta-se dele instintivamente, lutando por um momento para se recordar de onde está; a cabeça está pesada pelo sono, como se tivesse sido acordado a meio de um sonho. Torna-se claro que dormiu melhor aqui, logo aqui, do que dormiu nas últimas semanas em qualquer outro lado. A boca abre-se num grande bocejo enquanto o homem gesticula para a cozinha.

- Preparei o jantar - diz ele no mesmo tom neutro de antes.

- Que horas são? - pergunta Levi, desorientado; o sol movera-se e brilha pela janela numa palete avermelhada de fim de tarde, começo de noite.

- Passa pouco das cinco - responde o homem e Levi levanta-se, esticando as costas e os braços. - A casa de banho é por ali se quiseres lavar-te. - Aponta para o pequeno hall na entrada que leva à porta da frente.

Levi segue as direcções dele ansiosamente, entrando na pequena divisão e trancando a porta atrás de si. Ao contrário do que o apartamento iria sugerir, a casa de banho é maior do que Levi assumira mas igualmente ascética na sua mobília - uma sanita, um lavatório, uma banheira, um armário de canto para toalhas e outras coisas e uma porta no canto mais afastado que leva ao quarto - mas a privacidade da divisão fá-la parecer quase impressionante. Apercebe-se de que já faz anos desde que tomou um banho como deve ser, do tipo que costumava tomar em Berlim, em que se deixava marinar na banheira durante quase meia hora, mudava a água e ficava lá deitado até que arrefecesse de novo - a única indulgência que o seu tio alguma vez permitira em casa. Nesses dias, tomar banho era mais do que lavar-se, mas a necessidade tornara-se inimiga desse género de luxos. Depois de tratar do que tinha para tratar, Levi lava as mãos durante um bom minuto, reaplicando sabonete três vezes e mantendo a água tão quente quando possível antes de rodar a torneira da água fria e salpicar a cara com a água gelada. Limpa-se numa toalha lavada do armário de canto; cheira suavemente a lavanda.

Quando se senta à mesa de jantar, o homem oferece-lhe a primeira fatia de perna de borrego e vegetais. Levi empilha a comida no prato com entusiasmo e começa logo a comer, saboreando a carne em particular apesar de, após ter sido reaquecida do dia anterior, esta ter secado e se tornado dura e fibrosa. Enquanto come, Levi olha para o outro homem, mapeando a largura dos ombros e o cuidado do cabelo; não parece ter um único pêlo daquelas sobrancelhas largas fora do sítio. O homem faz Levi recordar-se daqueles posters da Hitler Jugend que costumava ver espalhados por todo o lado, e na verdade, há pouca coisa nele que não o torne o representante perfeito da raça superior Ariana; alto, musculado, excessivamente bonito com aquela autoridade natural, uma presença militar entranhada. Levi supõe que aquilo é o suficiente para a maior parte das pessoas hoje em dia - porra, provavelmente até funcionaria com ele, noutra vida - mas como as coisas são, é difícil admirar essas qualidades em quem quer que seja, não importa o quão não-agressivos pareçam. O homem não presta atenção a Levi até este decidir quebrar o silêncio.

- Ouvi dizer que as nossas tropas em Itália têm tido problemas - diz Levi.

O homem ergue o olhar do jantar com uma expressão séria. - Preferia não falar da guerra, se não houver problema - responde; Levi não sabe porque esperava que o homem soasse zangado, nem porque está ligeiramente desapontado por ele não parecer zangado.

Levi escarnece. - Um oficial do exército que prefere não falar da guerra - diz com uma risada. - Deves ser uma merda no teu trabalho.

O homem pousa a faca e o garfo no prato com um clink audível. - Eu sou muito bom no meu trabalho - reitera ele, ainda impassível enquanto limpa os cantos da boca com um guardanapo branco de linho - mas preferia não falar de trabalho agora. - Ele continua a comer, parando passado um pouco para acrescentar: - E não acho que seja o melhor tema para um jantar.

- Sei lá - Levi discorda baixinho. - Acho que é melhor do que eu falar sobre o cagalhão que fiz na tua casa de banho à pouco.

Há outro clink sonoro quando o homem baixa os talhares; Levi consegue ver a dificuldade que ele tem para engolir a comida que tem na boca. - E porque é que haverias de falar de uma coisa dessas? - pergunta ele, uma nova nota impaciente surgindo na voz. - Especialmente enquanto comemos?

Levi encolhe os ombros. - Um dos poucos prazeres que me sobram na vida? - sugere antes de dar uma risada. - Quem sabe? Se calhar só acho que é divertido chatear pessoas como tu.

- Pessoas como eu?

Engole um pedaço de batata antes de repetir, irritado: - Sim, pessoas como tu. As pessoas que são as verdadeiras responsáveis por o mundo ser a merda que é para toda a gente agora.

Aquela raiva reprimida surge de novo e Levi tem vagamente a noção do facto de querer que o homem discorde, que Levi o oiça, que grite insultos por ele estar tão errado sobre tudo, mas para sua desilusão, o homem continua a comer, cortando pequenos pedaços de borrego com bizarra precisão.

- Compreendo como isso te faria sentir melhor - diz ele, deixando a conversa aí, empilhando vegetais e carne cuidadosamente no garfo antes de Levi soprar de irritação. O silêncio na mesa arrasta-se por vários minutos antes do homem suspirar e dizer: - Não espero que fiques grato por este gesto - começa, enquanto Levi apoia o cotovelo na mesa e tira o último bocado de gordura do borrego. - Mas o teu ressentimento por o aceitares também não é da minha conta. Se sentes alguma vergonha ou amargura por receberes a minha ajuda, preferia que não te focasses em me culpar por ta ter oferecido.

O sobrolho de Levi franze-se ao considerar as palavras durante o silêncio que se segue, e não tem a certeza se se deve sentir envergonhado ou consternado, ou zangado por estar ouvir um sermão sobre ressentimento e amargura deste filho da puta nazi, mas a indiferença que surge após tudo o que faz nestes dias diluí as emoções de novo, até que tudo o que ele consegue fazer é concordar com o homem em silêncio. Afinal, não há como negar o facto de que Levi não está zangado com ele; sabe simplesmente melhor ter um representante do mal sem rosto que continua a envenenar-lhe a vida. Nunca chegando ao ponto de pedir desculpa a alguém como este homem, Levi pica o resto da sua refeição; consegue sentir os olhos do homem em si, como que a monitorizar a sua reacção.

- Posso dar-te um conselho? - o homem diz de repente, forçando os olhos de Levi a deixarem o pedaço de cenoura preso no garfo. - Da próxima vez que tentares atacar alguém significativamente maior do que tu com uma arma pequena como uma faca, não devias atacar como fizeste hoje. - A cara do homem é solene, e as palavras despidas de qualquer sentimento ao continuar: - No que toca a pura força física e estatura, vais estar sempre em desvantagem. No entanto, o teu tamanho pode ser uma mais-valia se o aprenderes a usar.

- Como? - pergunta Levi, talvez parecendo demasiado entusiasmado, porque a boca do homem move-se para um sorriso que parece deslocado após toda aquela apatia.

- Como és pequeno, vais ser sempre mais rápido do que alguém com o meu porte - explica ele, parecendo interessado pela primeira vez num tópico de conversa. - Devias aprender a usar essa velocidade, desviar-te de ataques directos com passos laterais. Deves manter-te ciente de que alguém que está habituado a tirar partido da sua estatura irá provavelmente usar força bruta contra o seu oponente. - O homem faz uma pausa por um momento para voltar a encher o seu copo. - O que devias ter feito hoje, em vez de me atacares directamente, deveria ter sido tentares por-te atrás de mim, forçar-me a uma posição em que não conseguiria tirar partido da força da parte superior do meu corpo. Também devias ter mantido o teu braço baixo até ao último segundo, para não ofereceres ao teu adversário uma maneira fácil de te prender - como eu fiz.

Levi mantém os olhos no homem enquanto este continua a comer o seu jantar. - Porquê? - pergunta. - Porque havias de me dar este género de conselhos?

O homem parece considerar as palavras por um momento enquanto mastiga a última garfada. - Porque não? - replica ele. - Estou apenas a dizer-te as observações que fiz. Se lhes consegues dar uso ou não, não depende de mim. - Levanta-se, esvaziando o copo antes de começar a levantar os pratos. - Além disso, parece-me que precisas da instrução. Para o caso de te meteres em problemas de novo.

Levi resfolega. - Alguma instrução de como me desviar de balas? - pergunta. - Aqueles cabrões da Gestapo têm pistolas, sabes.

O homem pára o que está a fazer por um momento. - Suponho que esse é um tipo diferente de problema - admite, antes de continuar a levar os pratos para o lava-loiça. - Infelizmente não tenho uma solução pronta para esse dilema em particular.

Levi encolhe os ombros. - Bem, acho que é melhor do que nada - diz, sem agradecer ao homem pelo conselho ou pelo jantar, e sai da cozinha; o homem junta-se-lhe na sala após um momento.

- Imagino que já seja seguro regressares agora - calcula ele, espreitando para a rua por uma nesga nas cortinas. - Mantém-te nas ruas mais movimentadas. Evita chamar atenção.

- Eu sei o que faço - Levi bufa em irritação, fazendo o homem voltar-se para ele; a expressão no seu rosto é estranha, quase surpreendida, até que ele sorri de novo, aquela expressão estranha, deslocada, que ganha o interesse de Levi apesar de tudo o que tem contra esta pessoa.

- Claro que sabes - o homem concorda com uma sugestão de riso na voz. Atravessa a sala na direcção de Levi rapidamente e estende a mão. - Tudo de bom - diz com um sorriso.

Levi olha para a mão por um momento antes de a apertar; é uma sensação estranha, a mão é demasiado grande e demasiado quente para ser confortável. - Claro - murmura, puxando a mão à pressa e saindo do apartamento sem mais demoras.

.

Tal como o homem previu, Levi faz o caminho de regresso pela cidade sem incidentes, mas quando sobe as escadas para o seu apartamento, sente a exaustão do dia a espalhar-se pelo corpo, que começa a sentir-se pesado como chumbo e dorido. A primeira coisa a recebê-lo é a cara de Farlan, pálida e cravada de preocupação.

- Jesus Cristo! - arqueja ele quando Levi fecha a porta atrás de si. - Foda-se, mas por onde é que estiveste? Disseste que voltavas antes das duas! A Isabel e eu temos estado preocupadíssimos-

- Tive uns problemas - Levi corta assim que Isabel corre para a sala, dobrando-se de alívio assim que o vê.

- Vês? Ela tinha a certeza que estavas morto num beco qualquer, tive de fazer tudo para a impedir de ir à tua procura - continua Farlan, apontando para a rapariga, que recupera a energia de repente, correndo para Levi e apertando os braços à volta do seu pescoço.

- Tinha medo que não fosses voltar mais - sussurra-lhe ela ao ouvido, e apesar de Levi saber que chegar tarde não tinha sido culpa sua, não consegue deixar de sentir uma picada de culpa.

- Estou bem - promete a Isabel suavemente, encostando a bochecha à cabeça dela e suspirando profundamente. - Só me atrasei um pouco, só isso.

Ela despega-se devagar, voltando as costas a Levi de imediato; ele não consegue perceber se ela está a limpar as lágrimas dos olhos ou só a aproveitar para respirar, mas dá-lhe os dez segundos de que ela precisa para regressar a si. Quando ela finalmente se vira, ostenta o seu habitual sorriso rasgado.

- Advinha só? - começa ela, excitada, enquanto Levi segue Farlan para a pequena cozinha, onde este regressa ao seu lugar à mesa e continua a sua tarefa de descascar ervilhas com um ar cansado no rosto. - Ouvi o Herr Schild dizer que eles afundaram outro submarino no Atlântico! Já é o terceiro esta semana!

Levi sorri fracamente perante o entusiasmo dela. - Isso é óptimo - diz ao juntar-se a Farlan à mesa. - Para que é isso? - pergunta, acenando para as ervilhas, esperando que um tema mundano faça desaparecer alguma daquela dor da cara dele.

- Uma sopa - Farlan mal responde, mantendo o olhar nas mãos enquanto Isabel se atira para a pequena cama grumosa atrás de Levi; as molas velhas guincham audivelmente sob o peso dela.

- Sabes que vai ficar tão deliciosa, mano - diz-lhe ela com uma gargalhada na voz. - Como no Natal. Só que melhor porque as ervilhas são frescas desta vez. E temos duas cenouras inteiras para acrescentar também.

Levi boceja e dá uma risada, espreguiçando-se e esticando os braços acima da cabeça. - Tenho a certeza que será deliciosa - concorda, e Farlan revira os olhos antes de sorrir.

- Devia ter despachado isto há horas - reclama ele. - Mas temos estado tão agitados que não consegui fazer isto.

Levi resfolega baixinho. - Vocês os dois têm mesmo de se controlar - repreende-os de novo, como tantas vezes antes. - Um destes dias eu posso não voltar. Não podem simplesmente deixar-se cair e desistirem.

- Não digas coisas dessas - Farlan riposta severamente. - Faz parecer que já desististe. - Regressa à sua tarefa de forma quase irada antes de resmungar: - E estás a perturbar a Isabel.

Atrás de Levi, Isabel escarnece ruidosamente e senta-se na cama. - Eu posso falar por mim, sabes? - comenta ela acaloradamente antes de se deitar. - Não devias dizer coisas dessas porque não são verdade - diz ela ao tecto sem se virar para olhar para nenhum deles. - Além disso, a guerra vai acabar em breve. Vai ser mais um mês ou assim e depois tudo vai voltar a ser como era. Vai ser tudo o máximo, vão ver.

Farlan e Levi trocam olhares sombrios mas nenhum deles diz alguma coisa; Levi pergunta-se há quanto tempo ela começou a dizer aquilo - um ano, talvez? E há aquele fascínio com submarinos a naufragarem no Atlântico, como se essas embarcações fossem o cerne da guerra e quando todos eles tiverem sido destruídos, todo o restante combate irá terminar. Farlan suspira para a sua taça de ervilhas enquanto Levi se levanta subitamente, esperando poder quebrar o desconforto do silêncio com o movimento. Começa a tirar a roupa da corda acima do fogão enquanto Farlan começa a atear a fornalha. Nenhum dos dois fala até o calor das chamas ter embalado Isabel para um sono profundo; Farlan tapa-a com um cobertor antes de se juntar a Levi na mesa, descascando as suas duas preciosas cenouras e perguntando: - Então porque demoraste tanto tempo? - em voz baixa.

Levi expira devagar antes de responder: - Não foi nada. Não te preocupes com isso.

Consegue ouvir a irritação de Farlan no curto silêncio que se segue. - Não me venhas com isso - reclama ele. - Eu preocupo-me, e a Isabel preocupa-se. Eu sei que tu achas que não temos de nos preocupar com as coisas que fazes, mas estamos todos nisto juntos. Tu sabes que tive praticamente de a amarrar para impedir que ela fosse à tua procura.

Levi suspira perante o sentimento de culpa que se segue àquelas palavras, e inclina-se na mesa, baixando a voz. - Fui parado pela Gestapo hoje - explica brevemente, olhando para a cara preocupada de Farlan e apressando-se a acrescentar: - Está tudo bem, mostrei-lhes os meus papéis antigos. Eles não vêm à minha procura aqui.

Farlan parece acalmar-se um pouco ao andar na direcção da panela das ervilhas para as mexer. - Eles interrogaram-te? Foi por isso que demoraste tanto tempo?

Levi abana a cabeça. - Eles começaram a suspeitar por isso fugi. Tive de me esconder durante um bom bocado.

O outro homem acena devagar. - Não estás ferido, pois não? - pergunta, olhando para ele, e Levi abana a cabeça de novo.

- É uma mais-valia que eles tenham todos péssima pontaria - responde ele, com uma amostra de sorriso irónico que fica por retribuir. Levi pergunta-se se deve contar a Farlan sobre o seu esconderijo, mas reconsidera e deixa as explicações por aí.

É verdade que não está ferido, mas o seu corpo está pesado e dorido, como se a força que o mantém a lutar se tivesse esvaído; os músculos estão fracos e cansados, mas está demasiado exausto para se sentir amargo quanto a isso agora, para lamentar toda a perda de potencial. Com a chegada da exaustão vem aquele anseio por calor que não tem nada a ver com o tempo fresco da primavera, e sim com a necessidade de proximidade e conforto - e Farlan, ele tinha de facto feito essa pergunta, ele preocupa-se com o que acontece a Levi, e em comparação a isso, o resto importa? Que Farlan ainda goste de outra pessoa, e que Levi também não o ame?

Levanta-se da mesa, aproxima-se do outro homem e envolve os braços levemente em torno da cintura dele, inclinando a cabeça para o ombro dele; consegue sentir Farlan a ficar tenso antes de relaxar sob o seu toque.

- A sopa está com bom aspecto - comenta, e o outro homem dá uma gargalhada.

- Não temos sal nem carne para pôr - diz ele, rindo. - Nem temos meia cebola.

Levi boceja ruidosamente. - Nunca gostei muito de cebola - murmura, aconchegando o rosto contra o pescoço de Farlan; cheira a sabão e suor da maneira que Levi começou a associar a casa. - Achas que a devíamos acordar quando estiver pronta?

Farlan abana a cabeça. - Não, deixa-a dormir - responde, raspando a colher de pau contra o fundo da panela. - Ela pode comer de manhã.

Levi inspira aquele aroma a sabão e antes de se aperceber, murmura: - Desculpa ter-me atrasado - contra os cabelos suaves da nuca de Farlan.

Farlan encolhe os ombros contra o queixo dele. - Não foi culpa tua - diz, pressionando a bochecha na testa de Levi por um momento. - Estás aqui agora. Isso é que é importante.

A sopa cozinha lentamente e na altura em que fica pronta, estão ambos a bocejar longamente; Levi lava-se no lava-loiça, limpa a camisa e pendura-a sobre o forno para secar enquanto Farlan come o seu jantar. Quando finalmente rastejam para a cama, Levi sente Farlan deslizar para perto dele sob os cobertores e pressiona o corpo contra ele, partilhando o calor. Puxa um dos braços de Farlan à sua volta antes de puxar os joelhos para junto do peito.

- Vais sair amanhã? - Farlan pergunta num sussurro ensonado, e Levi estremece perante o pensamento que tem conseguido manter afastado até este momento.

- Vou estar de volta antes de acordares - promete-lhe e ambos ficam em silêncio; não há mais nada a dizer, nada que precise de ser dito, nada que ambos já não saibam ou sintam.

À medida que o corpo descansa, os pensamentos de Levi regressam àquele apartamento, repetindo o seu inútil ataque com a faca vividamente na sua mente até adormecer, acordando tarde na manhã seguinte pelo som de alguém a tentar mover-se silenciosamente pela cozinha, a sua mente envolta naquele nível baixo de irritação que o faz saber sempre que dia da semana é. Levanta-se rapidamente e deixa o apartamento antes do meio dia, não querendo despejar nenhum daquele ódio em Farlan ou Isabel. Nenhum deles lhe pergunta onde ele vai quando sai mas consegue sentir os olhos deles quando fecha a porta.

Caminha sem rumo, sem parar, apesar de saber que ainda tem horas pela frente; não consegue manter-se calmo nestes dias. Mal repara nas bandeiras e festividades até que se vê apanhado por uma multidão a ver a parada enquanto esta marcha, o vermelho, branco e preto das bandeiras explodindo por entre a massa verde de uniformes. Levi observa os soldados, sentindo os músculos ficar rígidos de raiva enquanto força a passagem por entre a multidão e continua a andar pela cidade, sem tomar nota da rota até ver uma brecha familiar entre dois edifícios, os buracos das balas fixando-o da parede do outro lado da rua. Levi evita olhar para a janela em frente e muda de direcção, caminhando até ficar com fome e os pés se cansarem e quase se deixa ficar dormente por aquela amargura que parece ter-se tornado parte de si - que se tornou impenetrável.

A noite chega cedo e as paradas terminam, deixando para trás bandos de soldados sem nada melhor para fazer do que se embebedarem e cambalearem pela cidade tão sem rumo quanto Levi; não lhe prestam atenção, não quando estão fora de serviço e estão ocupados à procura de outra pessoa, de preferência numa saia inapropriadamente curta com um borrão de batom vermelho na boca e grande necessidade de dinheiro. Vai para o seu lugar habitual no banco do parque assim que os sinos da Frauenkirche batem as oito badaladas.

Fica a ver a governanta enquanto esta se afasta com o seu cabelo grisalho preso debaixo de um lenço, esperando uma boa meia hora para se certificar de que ela não volta antes de entrar no prédio e subir as escadas. Bate à porta suavemente e aguarda, um minuto, dois, três, mas ninguém responde, e ele não sabe se se devia sentir zangado ou aliviado. Olha à volta para o corredor vazio antes de sair do edifício de novo e regressar ao parque, andando às voltas por ali para aplacar a sua irritação, submergindo-se naquele ressentimento que carrega dentro dele para todo o lado mas que parece não conseguir superar.

Espera uma hora antes de tentar de novo, mas não há resposta até depois da meia noite quando Krieger finalmente regressa, tresandando a álcool e a cigarros e quase fazendo Levi engasgar-se quando a porta se abre. Quando finalmente entra no apartamento consegue sentir um calafrio entranhar-se nos ossos e quase se sobrepõe à raiva, aquele frio distinto que não tem nada a ver com o tempo. Afinal, a noite tem estado amena e ele ainda está a usar o casaco de inverno, tendo vendido todos os seus casacos mais leves há anos. Pendura-o num roupeiro na entrada e vira-se para Krieger, que está mais bêbedo do que tinha julgado, bamboleando para trás e para a frente enquanto fecha a porta atrás de si.

- Porque é que demoraste tanto tempo, caralho? - pergunta ao homem, em voz baixa. - Tenho andado às voltas no parque há horas.

Krieger mal ri sequer, pegando num copo da mesa.

- Não sabes? - pergunta ele, divertido. - É o aniversário do nosso Führer! - Ergue o copo e a voz em simultâneo e Levi cerra os dentes.

- Baixa a voz, caralho - ordena-lhe, sem se incomodar em dar uma resposta ao passar por Krieger. - Vamos despachar isto - resmunga, atravessando o apartamento e entrando no quarto. Consegue ouvir Krieger a esvaziar o copo e a pousá-lo de novo na mesa antes de o seguir.

- Se te queres comportar como uma pêga, por mim tudo bem - diz com uma gargalhada seca ao alcançar Levi, agarrando-o pelo pescoço e puxando-o para um beijo desleixado e molhado na orelha; Levi esfrega a pele enquanto Krieger segue para o gramofone e começa a sondar a máquina como se fosse a primeira vez que o faz, mudando o disco e movendo a agulha para trás e para a frente com as mãos vacilantes por um bom minuto até que finalmente desiste; a canção começa a meio de um refrão familiar. Despem-se, Levi muito mais depressa do que o outro homem, que ainda está a lutar com a fivela do cinto quando Levi já se deitou no colchão grumoso com um cheiro bolorento, suor entranhado e cigarros; franze o nariz enquanto vê o homem a debater-se para tirar as botas de cabedal brilhante dos pés, quase caindo no processo. Apetece-lhe dizer mais uns quantos palavrões mas fica calado, apagando o candeeiro na mesa de cabeceira assim que Krieger conseguiu despir-se; sem as roupas parece mais pequeno, e como de costume, Levi sente-se enojado de olhar para ele. A súbita lembrança de que por debaixo de cada uniforme está um ser humano deixa-lhe um sabor acre na boca, e ele cerra os dentes para manter longe a náusea.

Krieger rasteja debaixo do cobertores e arrasta-se para mais perto; assim que a mão pegajosa dele lhe toca nas costas Levi cospe: - Já tens os papéis?

A mão afasta-se e Krieger suspira ruidosamente. - Porquê - começa ele, voltando-lhe as costas e ligando o candeeiro do seu lado da cama. - Porque é que tens de me perguntar sempre isso, Levi? Hm? - Ele estica-se para a gaveta da mesa de cabeceira e tira uma cigarreira e uma caixa de fósforos. - Faz-me sentir como se tu não quisesses saber de mim.

- Não quero - Levi contrapõe sem pensar. - E não é como se já não soubesses. Por isso, quando é que os papéis estão prontos?

Krieger suspira de novo e acende o cigarro, inspirando longamente antes de dizer: - Não demora muito - e mais nada além disso. Levi não consegue evitar sentir-se vazio e algures, no fundo, sabe que devia ter deixado de desejar uma resposta diferente há muito tempo.

- Lembra-te - diz ao homem ainda assim - os meus podem esperar. Arranja-

- A vida dos teus amiguinhos é muito mais importante do que a tua. Sim, sim - Krieger interrompe-o, parecendo zangado. - Qual é a tua com essa? Hm? - Expira uma nuvem de fumo. - Sentes-te culpado por alguma coisa? Salvar esses dois é a tua penitência? Ou os judeus não têm esse conceito?

Levi range os dentes em irritação; quer dizer alguma coisa, quer frisar que não espera que alguém como Krieger compreenda, não espera que alguém que celebra o aniversário da encarnação do mal puro possa preocupar-se com outras pessoas, quanto mais compreender que a vida de outro pode ser muito mais importante do que a sua própria.

- Pensando bem, se calhar isto é a minha penitência - Krieger escarra e ri um pouco. - O que achas? Achas que salvar a tua vidinha miserável vai remediar as coisas que fiz? Ou será mais como ver um rato e não o matar?

Levi consegue sentir os cabelos da nuca porem-se em pé, se de nojo se de raiva, não percebe. - Não vai fazer diferença na tua vida de qualquer das maneiras - responde-lhe; a calma do seu tom surpreende-o até a ele. - O mais provável é as pessoas como tu acabarem a viver confortavelmente até estares velho e a mijar-te nas calças, faças o que fizeres.

Krieger ri mais alto. - Provavelmente tens razão - concorda ele, apagando o cigarro e voltando-se para Levi; a mão cerra-se à volta do braço indelicadamente e puxa-o para mais perto. - E também vou ter sempre a tua memória para me fazer companhia. - A mão larga-o e move-se para baixo e entre as suas pernas e Levi cerra os dentes firmemente para não fazer nenhum som. - Se calhar isto não é a minha penitência. Se calhar és a minha recompensa. Se calhar se déssemos a todos os bons soldados um bom rapazinho judeu como tu, já teríamos ganho a guerra.

Levi continua a ranger os dentes, apesar de não querer dignificar o que o homem disse com uma resposta; Krieger chamá-lo de rapaz não é nem de perto a pior parte disto, incorrecto quanto possa ser. - Podes saltar a merda das divagações por uma vez? - pergunta em vez disso, ainda a fitar a parede, a respiração vacilando quando o toque de Krieger aperta. - Já te disse que pensar não é um dos teus fortes, por isso podes parar e despachar-te? Se é que consegues sequer levantá-lo nesse estado.

O cacarejo de Krieger é baixo junto ao seu ouvido. - Porque é que não me dás uma ajuda com isso? - pede-lhe ele num suspiro áspero. - Sê bom para mim, Levi. Por uma vez, como se fosse a sério. - Há uma nota de desespero na voz de Krieger quando ele o chama pelo nome que Levi passou a achar a coisa mais revoltante em tudo isto. A mão de Krieger move-se mais depressa agora, mas com aquelas palavras os seus esforços tornam-se inúteis. - O que queres mais de mim? Hm? Vou salvar a tua vida, Levi, a tua e a dos teus amigos. Não mereço alguma coisa por isso? Algum afecto, algum que seja?

Levi quer dizer-lhe que não, mas mantém-se calado, sabendo que não vale a pena arrastar isto. Afinal, já sabe o que vem a seguir.

A mão larga-o e afasta-se. Levi ouve as respirações rápidas e escassas que Krieger dá atrás de si. - Tu és só um frígido filho de uma puta, não és? - sibila ele, a delicadeza de apenas momentos atrás tornada veneno de repente. - Tal mãe tal filho, não é o que dizem? - Ele espera por uma resposta mas continua quando percebe que não vai receber nenhuma. - És uma putazinha frígida. Devia ter-te pregado uma bala da primeira vez que te vi e percebi quem eras. Até a esfregares-me o chão parecias que querias cuspir-me para cima, sua puta vadia frígida.

- Acho que há aí uma contradição - Levi nota descuidadamente, fazendo Krieger agarrar um punhado do seu cabelo e atirado-lhe a cara contra a almofada com força; o aperto é doloroso e as mãos de Levi formam punhos nos lençóis.

- Achas que isto é engraçado? - rosna-lhe ele ao ouvido. - Eu tenho a merda da tua vida literalmente nas minhas mãos e tu desrespeitas-me? Achas que isso é algo esperto de se fazer? Hm?

Os músculos de Levi contraem-se pelas palavras; parece que beber deixou Krieger ainda mais volátil do que o habitual, e apesar de Levi saber que ele não deverá fazer nada precipitado, reconsidera que será melhor estratégia prevenir que os insultos escalem para violência. Por isso permanece calado, inalando o ar rançoso que consegue inspirar e deixa que o homem recomece a sua repetição.

- Deixaste-te usar, não foi? - ele exige em voz baixa. - Não sou eu que sou o problema. Deixaste outro gajo foder-te, não foi?

- Não. - É a única pergunta a que Levi responde nestes dias. Já disse aquela palavra tantas vezes e tornou-se tão vazia de emoção que ele se surpreende quando uma imagem lhe surge na mente, a imagem de uma janela e de uma cara acabada de barbear.

O puxão no cabelo aumenta e a respiração de Levi torna-se entrecortada pela dor penetrante. - Não me mintas, sua puta. Quem foi? Aquele teu amigo, foi? Deixaste que ele te fodesse, não deixaste? Ele e qualquer outro homem nesta merda desta cidade. Não deixaste?

- Não. - O puxão aumenta ainda mais, obrigando Levi a arfar por ar.

- Já te disse para não me mentires - Krieger explode, elevando a voz. - Sabes o que vai acontecer se eu descubro que me tens mentido, não sabes? - A pausa entre as palavras está cheia dos arquejos de Levi e da silenciosa, constante ameaça a que se acostumou tanto. - Vais no primeiro comboio para leste, Levi. Eu juro. Não me queiras testar.

O aperto no cabelo suaviza, torna-se uma carícia, um tipo diferente de desagradável. - Levi. - Krieger sussurra-lhe de repente ao ouvido outra vez, como se as palavras anteriores não tivessem acontecido, e Levi estremece pela maneira como o seu nome soa, tão diferente e errado apesar de já dever tê-lo ouvido ser dito daquela forma uma centena de vezes. - Levi. Desculpa pelo que disse. Mas tu sabes que eu não gosto quando me julgas. Sabes o que isso me faz, não sabes? - O toque gentil desliza pelas suas costas e ainda assim Levi não diz nada. - Tu sabes que eu não tenho escolha aqui. Eu não fui sempre assim, tu sabes disso. Lembras-te? Daqueles dias em Berlim?

Alguma coisa em Levi parece morrer com aquelas palavras. Ele não quer lembrar-se. Nem Berlim, nem nada daquilo.

- Tu sabes que já te queria mesmo nessa altura - Krieger continua, os dedos acariciando a espinha de Levi, obrigando-o a estremecer contra sua vontade. - Conseguia vê-lo nos teus olhos. Tu sabias o quanto eu te queria. Já brincavas comigo mesmo nessa altura. - Move o corpo na cama e pressiona a cara contra a nuca de Levi, inspirando e plantando alguns beijos frágeis na pele sensível. - Não consigo suportar a ideia de te imaginar com outra pessoa. Isto é demasiado importante para mim agora.

Levi lê a mudança do peso do homem no colchão; sabe que deve esperar a súbita oleosidade, as mãos ásperas puxando-lhe o corpo para cima e guiando-lhe os movimentos, a sensação inicial de intrusão que aumenta quando o homem em cima dele endurece pelo aperto à sua volta, a submissão e a auto-preservação que ele interpreta erradamente como devoção. Levi geme pelo desconforto, o fedor a álcool no hálito do homem, a pressão latejante que o faz questionar se de facto houve alguma altura em que ele tivesse gostado disto. A mão de Krieger agarra-lhe o pescoço, apertando como pinças enquanto ele se inclina sobre Levi, os lábios descendo para a pele, as palavras perto do ouvido.

- Amo-te, Levi.

O corpo torna-se pesado com um novo tipo de horror, a garganta parece fechar-se pela onda de náusea que faz o seu corpo tremer violentamente quando o homem se inclina de novo, repetindo aquelas palavras, a voz tornando-se um grunhido ofegante. No fim, as palavras sincronizam com as estocada das ancas que balançam Levi para trás e para a frente, fazendo-o cerrar os dentes para conter a repulsa que aumenta dentro de si. Depois de Krieger ter finalmente terminado, ele pragueja ruidosamente.

- Deus, olha para ti - diz ele, um rasgo de nojo renovado ensombrando a vitória habitual. - Sujaste os lençóis outra vez. Vocês judeus não sabem manter-se limpos?

Levi levanta-se sem uma palavra, reunindo os lençóis e saindo do quarto. O disco já parou de tocar à muito e além do raspar da agulha Levi consegue ouvir um coro de soldados a cantar lá fora na rua: Deutchland, Deutchland über alles. Atravessa para a casa de banho e puxa um balde de debaixo do lavatório, enchendo-o com água quente antes de despejar os lençóis. Senta-se na sanita - uma experiência desagradável - e, tirando uma toalha manchada da prateleira de cima do armário, enche uma bacia de esmalte com água quente, agarra uma barra de sabão e entra na banheira. Ainda se está a esfregar quando Krieger entra na casa de banho dez minutos mais tarde; Levi mantém os olhos em si para não ver a o estado em que o homem ficou e para não ter de se perguntar que tipo de gente consegue esperar dez minutos antes de lavar a merda de outra pessoa de cima de si. O homem assobia o hino nacional enquanto se lava no lavatório antes de mijar; senta-se na sanita para observar Levi, que o tenta ignorar enquanto esfrega o corpo com a toalha até a pele ficar cor de rosa pela aspereza do pano e pela força das mãos.

- A tentar lavar o judeu em ti? - Krieger pergunta, divertido, claramente sem se lembrar que fez aquela piada antes. Levi não levanta o olhar da banheira, não faz um som, não pensa no comentário por um segundo. - Sabes que já ouvi pessoas a dizer que vocês judeus são bons com magia negra. - O homem continua sem ser encorajado. - Eu costumava achar que as pessoas que o diziam eram malucas, mas olha só para ti. Mal és um homem e deixas-me louco. - Pára por um momento, para auto-reflectir ou para esperar por uma resposta que Levi não lhe dá. - Deixas-me louco, Levi. O que fazemos é loucura. É perigoso e não faz sentido que eu faça coisas assim, mas não consigo deixar de pensar em ti.

Levi limpa a toalha agressivamente antes de despejar a bacia de esmalte para a banheira e voltar a enchê-la com mais água quente; não diz nada a Krieger, que suspira longamente.

- Tenho saudades tuas quando te vais embora - assegura-lhe ele de novo, pela milésima vez. - Tenho mesmo. Nunca olho para outra pessoa, homens, mulheres, não interessa. Só te quero a ti, Levi.

Levi enxagua o sabão do corpo enquanto luta contra o impulso de esmagar a cara do homem com a bacia.

- Vês, é por isso que me comecei a questionar. Sobre a magia negra, digo - Krieger continua. - O meu cérebro não tem estado bom. Sinto-me como... - Coça a cabeça distraidamente por um momento. - Sinto que estás na minha cabeça, a toda a hora. Estou sempre a pensar no teu corpo, como é bom foder-te e que não consigo parar, a sério que não consigo.

- És um filho da puta idiota - Levi murmura ao despejar a bacia de novo e saindo da banheira. - Magia negra? Só podes estar a gozar comigo, caralho. - Sai da casa de banho, a pingar água pelo chão de madeira enquanto muda os lençóis. Krieger deixa-se ficar sentado na sanita durante mais uns minutos antes de ir para a cama, as costas voltadas para Levi num gesto petulante que nunca merece uma resposta. Levi fica deitado tão longe dele quanto consegue, conseguindo descansar por umas horas antes de acordar subitamente por algum pensamento persistente, algo que Levi manteve afastado mas de que não se esqueceu e que esteve a lutar para regressar à superfície. Senta-se devagar, sentido a dor do que Krieger fizera num latejar desconfortável; não dispensa sequer um olhar para a figura a roncar enquanto sai da cama, veste-se em silêncio, e sai do apartamento.

Caminha pelo parque na escuridão antes do romper da madrugada; a cidade tornou-se silenciosa e rodeado dos seus passos constantes nas pedras da calçada, Levi deixa que aquele pensamento irrompa. A memória daquela voz baixa volta vividamente, a dizer algo sobre o seu instinto de sobrevivência. 'Nunca encontrei um assim tão forte em alguém como tu antes.' Fora isso? Considerando tudo o resto, tinha sido uma coisa bastante merdosa de se dizer. E houve aquilo de ter comentado o tipo de comida que Levi poderia consumir. Portanto ele sabia, e ainda assim...

Levi regressa para essa parte da cidade, sem saber ou se importar com o motivo. Não há nada para se obter com nada hoje em dia - que diferença faz se ele decidir não ser cuidadoso desta vez? 'Mantém-te pelas ruas mais movimentadas.' 'Desviar-te de ataques directos com passos laterais.' 'Tudo de bom.' Levi pára e olha para a janela. Mesmo a esta hora da madrugada está aberta, há luz no quarto, a cortina ondula para trás e para a frente com a brisa. Levi franze o sobrolho e volta as costas, caminhado para casa, pensando nos soalhos. Já faz quase um mês desde que os esfregou. Talvez hoje seja o dia para isso.

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AVISOS:

- violação

- linguagem obscena

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