Arco I: Destino

Capítulo I: Fuga

Zaji esperava pela próxima luta irrequieto. Passava de um pé para o outro, em uma espécie de dança. Pé esquerdo, pé direito, pé esquerdo, pé direito…

Por que raios demoravam tanto?! Uma arena no meio do nada, controlada por beduínos, o que os impedia de iniciar a próxima luta?!

Então, soou a voz do mestre da arena:

-E agora, o invicto Zaji! O lutador de cabelos como a noite, na flor de seus dezessete anos! Leve como areia, poderoso como uma serpente! Façam suas apostas!

O portão tosco de madeira começou a se erguer lentamente. Os olhos vivos de Zaji brilharam em seu melhor verde. Luta. Como ele ansiava por isso.

Saiu com um sabre em punho, olhando a platéia. Todos os admiravam por lutar sem proteção, apenas com a camisa e a calça brancas, de algodão, ideais para o calor do lugar.

Foi quando sentiu que alguém o observava fixamente, sentado em algum lugar da multidão.

Do portão da arena, surgiu um moleque. Talvez da mesma idade que o oponente, enterrado em montes de proteção toscas e primitivas. Empunhava duas simples adagas, curtas, sem adornos ou refinamentos.

O portador de todos esses objetos parecia ser igualmente frágil e inútil. O corpo era esquálido, fino e desprovido de músculos desenvolvidos. Tinha o cabelo curto, acobreado, de acordo com o clima quente.

Contudo, seus olhos não completavam o quadro. Amarelados, pareciam conter toda a força que faltava na aparência, esguios como os de um gato e ferozes.

-No outro canto, Loren, o Furacão de Lâminas! Sobrevivente dos ataques de Pentshire! Seu tamanho não condiz com sua habilidade, confiem em mim!

Na platéia, um homem envolto em panos verdes fitava Zaji com interesse, um sorriso torto nos lábios enquanto fazia uma gorda aposta.

"É certo que Zaji vencerá." O murmúrio passava pela platéia. Porém, alguns poucos, vindos de uma terra longe dali, apostavam em Loren. Conheciam sua fama.

Zaji sorriu convencido e soltou um riso curto, segurando o sabre displicentemente.

-He! Esse lagartinho vai lutar contra mim? Zaji, a Serpente? Zaji, o Chacal? Tá legal… Haha. Bom, senhores… –O moreno ajeitou sua postura- …Aqueles que em mim apostaram, espero que estejam com os bolsos prontos para o chover da grana!

Dizendo isso, avançou contra Loren, pretendendo atacar pela frente. Mas a um metro de distância do rapaz, fintou e deu um salto, seguido de uma cambalhota circense, para pousar atrás do "lagartinho". Girou o sabre em um ataque lateral e inesperado.

Loren nem se moveu. Apesar dos equipamentos de 'segurança' amarrados pelo corpo, ele observou, as mãos nas costas, enquanto o outro avançava.

Continuou observando, calado, enquanto o outro saltava por cima de si e preparava um ataque certeiro contra o frágil corpo do de olhos amarelados.

Mas, ao ser atacado, deu um passo pra trás, efetivamente desviando do outro.

-Bela acrobacia. -Provocou o moleque, sorrindo. Parecia uma criança sorrindo.

Zaji não se irritou. Era ele que irritava por ali. Girou nos calcanhares e preparou outro ataque, visando os tornozelos do outro. "Com todo esse peso, quero ver esse moleque saltar. Vou aleijá-lo".

Loren deu outro passo para trás, ainda com as mãos nas costas, reagindo rápido de volta onde estava, acabando por pisar na lâmina do outro, colocando todo o peso no sabre de batalha.

-Lute com golpes limpos. - pediu, tirando o pé da arma, voltando a se distanciar.

-Esse golpe só é baixo na altura, lagartinho. Mas é muito justo. -Dizendo isso, Zaji girou, largando o sabre, e apoiando-se nas mãos em um movimento de capoeira, mirou um chute na cabeça de Loren. Com o calcanhar.

O moleque tentou abaixar, mas o equipamento atrapalhava seus movimentos. O chute pegou no maxilar, deixando uma mancha de terra no rosto do outro.

A multidão berrou, animada com o primeiro golpe da batalha.

-Tsc, bando de mentecaptos. -Praguejou o moleque, finalmente sacando as adagas, colocando-se em posição de defesa.

Zaji aproveitando-se do breve momento desnorteado de Loren, pegou seu sabre e observou. "Bando de …", diziam seus lábios. Ele não foi capaz de compreender os últimos movimentos.

Sem esperar mais, avançou, direto, sem truques. O lagartinho veria sua habilidade.

Loren foi acompanhando o movimento do outro, esquivando com as laterais do corpo pela arena, as vezes pulando, as vezes apenas esquivando. Usava a parte cega das lâminas das adagas para rebater alguns ataques do outro, desviando os cortes do sabre tanto quanto podia.

É claro, as vezes o equipamento o retardava, fazendo com que levasse um chute ou um corte. Mas nada grave.

Por algum motivo misterioso, se recusava a atacar.

Zaji começava a zangar-se com a falta de ação. Mirava praticamente todos os golpes na cabeça de Loren, pois sabia que o moleque não podia abaixar com muita velocidade. Os cortes múltiplos e desleixados que fizera no menino sangravam em profusão. "Eu não sei o que ele está esperando, mas se não for rápido, vai desmaiar por perda de sangue." Pensava. Insolação ou mesmo calor também eram um risco, causado por todo aquele equipamento. Apesar dessas vantagens, a energia de Zaji também se esvaia.

O de cabelos acobreados, de súbito, mudou sua postura. Após esquivar de um ataque de Zaji, começou a estocar com as adagas, fazendo inúmeros ataques falsos revezando com ataques a sério, tornando-se um furacão de lâminas. O equipamento não parecia atrapalhá-lo a não ser na hora de se esquivar, e ele usava o próprio sangue para tentar cegar seu oponente.

Uma medida desesperada, mas geralmente eficaz.

Zaji soltou o rabo de cavalo curto, que levava sempre. Passou a usar o cabelo para repelir os respingos de sangue de Loren, e também impedir que esse visse seus movimentos em seus olhos. Agora a coisa tinha ficado séria. Ambos estavam machucados e cansados, porém Loren carregava peso extra. Fora o primeiro chute desferido, que havia se tornado uma (linda) mancha roxa. Zaji contava com sua melhor amiga, a fadiga. Ela viria a seu auxílio e Loren perderia. Ele só precisava aguentar até lá.

Com isso em mente, os dois continuaram sua dança desvairada.

Com alguns intensos minutos de seu furacão, o moleque começou a voltar para a defensiva. Passou a usar o equipamento a seu favor, jogando as áreas protegidas contra os ataques de Zaji.

Contudo, a lentidão voltou a atrapalhá-lo. Outro chute atingiu-o em cheio, no rosto. O moleque perdeu o equilíbrio e parte da visão, despencando no chão.

O homem, que antes tinha o olhar fixo em Zaji, levantou-se e berrou acima das vozes de toda a turba.

-Parem! Eu quero comprar esse pirralho! - disse, referindo-se a Loren.

-Cale-se! -Gritou Zaji, da arena- Eu o derrubei! A vida dele me pertence e a mim cabe escolher terminar com ela!

A verdade é que essa havia sido a melhor luta de Zaji em tempos. Ele queria saber qual seria o destino de Loren.

-Não o matarei. Se o senhor comprar a minha liberdade. Entendeu?! Não me comprar. Comprar a minha liberdade.

Ele poderia fugir quando quisesse, isso era fato, mas seria perseguido. O melhor era ser liberto e seguir o homem verde de longe. Para fora daquela secura.

-Quem você pensa que é, discutindo com um cidadão livre, lutador? - rebateu o homem de verde. Virou-se para o mestre de jogos, erguendo um saco de couro maior que sua própria mão calejada.

-Ofereço um saco de moedas de ouro pela vida dele.

A platéia, silenciosa, apenas ouvia enquanto os eventos se desenrolavam.

Loren não levantou, mas estendeu a mão até o tornozelo de Zaji, chamando sua atenção. Nos seus olhos, antes tão ferozes e fortes, um pedido de ajuda. O pavor tinha tomado suas feições, enquanto ele revezava o olhar entre o guerreiro e o negociador.

A princípio, Zaji quis ignorar aquele olhar. Mas logo isso se tornou impossível, tamanho era o medo estampado naqueles olhos.

Mas Zaji conhecia o sistema. Se Loren fosse comprado, seria levado para "dentro", tratado e suas roupas seriam trocadas. Afinal, o produto tinha que estar limpo para a venda. Enquanto isso, seus ferimentos seriam tratados também. Era a chance perfeita. Ele só tinha que recusar certos cuidados, já que nenhum de seus ferimentos era muito sério e esperar. Assim que Loren estivesse sendo conduzido para a "sala de venda", mais conhecida como "sala dos sem destino", ele o ajudaria. Derrubaria o par habitual de guardas e eles fugiriam. Era perfeito. Era possível.

-Dane-se então!-Gritou ele, no mais perfeito nervosismo fingido. - Que o compre!

-Pensou bem, guerreiro. -Disse o homem de verde, enquanto jogava o saco de moedas na arena, perto de onde o mestre dos jogos ficava para administrar as lutas.

Dois guardas apareceram para levar Loren. Ele se desesperou, apertando o tornozelo de Zaji.

-Não, não, ele não, de novo não, não deixe que me levem, por favor, não! - pediu o outro, os olhos suplicantes fitando o rosto de Zaji, mas os guardas vieram e arrancaram-no dele após alguma luta.

-Não, me soltem, me larguem! - Loren continuava suplicando, implorando por ajuda em seus olhos, mas os guardas eram muito superiores em peso e força. -Não!

Ele berrou uma última vez, um grito fino e desesperado, que daria calafrios no mais frio e duro guerreiro, antes de ser levado de volta à estrutura detrás do par de portas de madeira por onde havia entrado.

Aquilo doeu um pouco em Zaji. Mas nada de mal aconteceria com Loren atrás daquelas portas, e bem, o plano estava formado. Só era necessário esperar pelo momento perfeito.

Então, o moreno também foi levado. Os curandeiros vieram, velhotes recurvados, de gestos amplos. Ele os espantou a gritos, berrando como um louco que o deixassem apenas com a água e a pomada herbal. Após aplicar esta em sua coleção mais recente de cortes, Zaji a colocou em uma sacola de pano, juntamente com carne seca e maçãs que haviam sido deixadas em sua cela, para "reabastecimento de suas energias". Encheu quatro cantis, esvaziando muito da tina de água, e os guardou também. Por fim, trocou a camisa e vestiu uma capa cor de areia, para proteção. Guardou outra para entregar a Loren.

Sem nunca esquecer seu sabre, saiu rumo ao "resgate".

Já Loren passou muito mais tempo sob supervisão. Limparam-no superficialmente, apenas curando os ferimentos nos membros e os hematomas do rosto, e deram-lhe roupas limpas. Macias, é verdade; mas o significado de estar vestindo-as fazia o menino preferir ter ficado com as antigas. Pelo menos não estaria prestes a ficar cara a cara com aquele homem novamente.

Após alguns adornos desnecessários, apenas para melhorar sua aparência e ser obrigado a comer para parecer mais saudável, encaminharam o garoto para a "sala de venda".

Durante todo o trajeto, ele tremia. Desesperado, mal conseguia fazer o que lhe ordenavam, embora quisesse espernear, dificultar o processo ao máximo.

Mas suas memórias, passando por sua mente, impediam-no de reagir. Seus olhos estavam cobertos por uma cortina de desespero.

Zaji correu pelos corredores o mais rápido que podia. Encontrou Loren e seus "amigos" a uma curva da Sala dos sem Destino. Nome horrível, mas apropriado.

Sem nem se quer hesitar, pegou o primeiro guarda pelas costas, tapando sua boca com a mão e trespassando-o com o sabre. Depois se virou rapidamente e cortou a garganta do outro. Rápido e silencioso. Zaji, a Serpente.

Virou-se para Loren:

-Vamos logo dar o fora daqui.

O outro apenas assentiu pasmo demais para proferir uma palavra.

Correram. Zaji virava aqui e ali, rapidamente, procurando…

-Achei!

Um ponto da parede de madeira trazia um rasgo, uma pequena fratura de não mais de cinco centímetros de espessura.

-Essa parede está podre. No três, jogue-se contra ela. Um… Dois…Três!

Os dois pularam contra a parede, caindo no deserto do outro lado.

-Vista isso. -Zaji estendeu a capa para Loren. -Vai protegê-lo da areia.

Loren obedeceu. A princípio, achou que ele queria sua cabeça; na arena, o moreno havia dito que tinha direitos sobre sua vida. Mas, se estava oferecendo uma capa, então…

-Está me salvando? Por quê? - perguntou, amarrando a capa nos ombros, de repente satisfeito com as roupas novas.

"Por que me salvou?" Oras, boa pergunta. Zaji não sabia. Os olhos de Loren o chocaram, sim, mas então e daí? Memórias passaram em flash, rápidas e doloridas. Aí estava a razão. Mas ele apenas respondeu:

-Porque eu quis, certo? Não enche. -Dizendo isso, ele saiu andando. -Temos que nos afastar daqui, e rápido.

-…Obrigado. - disse Loren, realmente sincero. Seus olhos amarelados agora se preenchiam de esperança. - Já devem estar ao nosso encalce… Devemos correr? Para que direção? - perguntou, andando no encalce do guerreiro moreno.

-…Tudo bem. -Respondeu Zaji. Então o moleque sabia agradecer! - Devem estar mesmo. Mas tudo bem. Vê o vento? Tem tempestade vindo aí. De areia, lógico. Ajude-me a encontrar uma pedra grande, sim? É nossa única esperança de proteção. Além do mais, nossas capas são uma boa proteção. De costas, parecemos dunas andantes. Com cabelo. -Ele riu da própria "piada". -Enfim, pedra. Procuremos.

Apesar de tudo, Zaji não respondeu a pergunta sobre a direção a ser tomada.

-Eu lembro de ter visto uma quando estava a caminho daqui. A Oeste. -Ele olhou para o céu, e após um instante, começou a seguir um ponto no horizonte, orientado pelo Sol. -Por aqui. Siga-me -Disse, enquanto começava a correr naquela direção contra o vento, cerrando os olhos, a capa cor de areia tremulando atrás de si, como o calor fazia com as imagens próximas.

Zaji o seguiu, andando.

-Correr é uma idéia estúpida! -Gritou ele, para um Loren já distante. -Você acabou de sair de uma luta e nosso querido calor de 50 graus vai cuidar da sua morte! Vamos, pare e me espere!

Alcançando Loren, que o esperava com uma expressão irritada, o moreno riu.

-Eu sei que está com pressa. E com medo. Eu também. Por isso, não devemos ser estúpidos, certo?

Continuaram andando.

-Certo. -Respondeu Loren, resignado.

-Bom. Bom que você saiba um caminho também. Eu não sei.

-Só tenho medo de que não cheguemos a tempo. Aguento correr alguns metros, estou acostumado a caminhar por este deserto. –Explicou, ainda irritado por ter de parar, mas sensato o suficiente para dar razão ao outro.

Ele observou o ponto no horizonte, a Oeste, que imaginava ser a pedra que os salvaria por aquela noite.

-Eu bem suspeitei. Você andava em ziguezague. -Notou o moleque, abrindo seu primeiro sorriso aquele dia.

-Lagartinho chato você… -Disse Zaji, ante o comentário de Loren. -Eu fui capturado a tempo demais. Meu chão é a arena já faz seis anos. Não sou obrigado a saber andar nesse lugar todo igual. Muito menos correr. Você comeu, mas eu não. Não quero ter um lindo ataque de anemia nesse lugar idiota. Onde está a tal pedra?

O moreno era impaciente. E grosso. E mandão. Em seu total, uma companhia maravilhosa.

-Para que uma pedra? - Perguntou Loren, por fim.

-Oras, já não falei? Proteger-se da tempestade. Cavaremos um pouco ao seu pé, só para nos encaixarmos um mínimo. A pedra apartará o vento e a areia. Entendeu?

-Não sabia. Do jeito que luta, parece que era guarda de alguma vila aqui perto. - Loren explicou, forçando-se a manter a caminhada a passos largos, mas confortáveis, sem correr. - E, como eu poderia saber que não comeu? Coma algo agora, tem algo nessa bolsa aí, não? - sugeriu, apontando para a bolsa à tiracolo do outro.

Analisou o outro. Era uma personalidade… Peculiar, com certeza. Mas Zaji havia salvado ele e isso dizia bem mais do que as grossas palavras.

-Entendi. Engenhoso. - comentou, enquanto seguia seu ponto no horizonte, sem dizer ao outro onde estava.

-Guarda… Pfft. Não tenho vocação pra cuidar de ninguém. Nem de você. Que bom que pelo menos você luta um pouquinho, não é? -Riu torto. - É brincadeira. Foi uma luta muito boa, parabéns.

O vento começou a soprar mais forte.

-Mesmo que eu tivesse algo para comer, e tenho, agora não dá mesmo. -A pedra encontrava-se a uns cinquenta metros de distância. -Loren, vamos correr!

-Eu não preciso de que cuidem de mim, não se preocupe. - disse o outro, rindo também.

O vento mais forte zuniu nas suas orelhas, fazendo com que Loren não entendesse o que o outro havia dito. Quando deu por si, Zaji já corria em direção à pedra.

-Ah, legal, uma hora você não quer correr, outra você quer. Decida-se! - reclamou o moleque, colocando as mãos na cintura, irritado, enquanto mantinha seus passos rápidos.

Loren alcançou a pedra um pouco depois de Zaji.

-Está louco? Por que saiu correndo?

-Você não ouviu nada do que eu disse?

-Hã?

-CAVE! -Gritou Zaji.

O vento havia aumentado ainda mais, causando pânico no moreno. Acomodaram-se no buraco segundos antes da onda de areia passar. Sentado em meio ao barulho rangente, Zaji sentiu uma dor aguda logo abaixo das costelas. Lugar de um dos melhores ataques de Loren. Baixou a mão para o ponto, só para senti-la umedecer. Sangue.

"Ótimo. O efeito coagulante da pomada deve ter acabado, e eu ainda fiz todo aquele 'exercício'. Que merda."

Não conseguia se comunicar com Loren durante a tempestade, já que os dois mal podiam abrir os olhos.

"Melhor assim. Esconder, resolver depois."

Com esse pensamento, Zaji se entregou a fadiga da luta e do deserto, caindo no sono rapidamente.

Mas o de olhos amarelados, que nunca havia enfrentado uma tempestade de areia sob condições tão perigosas, não pregou o olho. Manteve os olhos fechados durante a maioria do tempo, mas notou que o outro não se mexia mais, adormecido. Parecia mais cansado do que si mesmo, e com razão; Zaji havia começado a lutar bem mais cedo que Loren, e apesar de sua resistência, devia estar exausto. Pelo menos era isso que Loren pensava.

A onda demorou a passar. Mas, após algum tempo, a areia começou a baixar, permitindo que o moleque pudesse enxergar.

Ele se virou, para acordar o outro, prestes a falar, quando viu o tom escuro do sangue coagulado nos dedos dele, ainda adormecido. Lembrou-se ainda do momento que desferira aquele ataque e riu um pouco, apesar da pequena preocupação. Num momento, inimigos até a morte. No outro, parceiros de fuga. O destino podia ser bem surpreendente às vezes.

Erguendo a camisa, Loren arrancou algumas ataduras que revestiam seu corpo permanentemente, desde antes de ser capturado, e com cuidado, tentou limpar e cobrir o ferimento. Talvez a medida acabasse por ser provisória demais, mas pelo menos, ajudaria na recuperação de Zaji.

Duas horas haviam se passado. Foi o que Zaji constatou ao observar a altura do Sol. Loren não estava ao seu lado. Olhando em volta, viu o outro parado mais adiante. Vigiando.

Tirou um cantil da bolsa e deu três longos goles. Eles tinham que sair de lá logo.

Lembrou-se do ferimento. Ao abaixar o olhar, notou ataduras fixadas com muita falta de profissionalismo. Riu. Loren tinha que aprender a fazer isso direito. Retirou as ataduras e passou a pomada. Isso seguraria por mais duas horas. E depois, mais pomada. Iria bastar. Cobriu novamente com as ataduras e baixou a camisa.

Chamou o menino ao longe:

-Ei, Loren! Vai um gole d' água?

-Lógico! - respondeu Loren, de imediato. Levantou a mão, esperando que o outro jogasse o cantil, e assim que o fez, deu dois ou três goles parcimoniosos, apenas para espantar a sede.

O garoto se aproximou, devolvendo o objeto em mãos para o guerreiro.

-Aonde vamos agora? - perguntou casualmente, mas depois, os olhos amarelos ficaram pesados. Quer dizer, agora que tinham despistado os guardas e as autoridades da arena, cada um poderia seguir seu destino. Aliás, Zaji poderia cobrar a sua vida agora, logo depois dela ser prolongada.

Ainda assim seria um bom final, longe daquele homem de verde que tanto odiava.

Balançou a cabeça, afastando os pensamentos negativos, e estendeu uma mão para o outro.

-Quer fazer uma parceria?

-Claro. Eu estava prestes a sugerir o mesmo. Afinal, não sei o caminho.

-O caminho para onde? -Perguntou Loren, confuso. - Tem algum destino em mente? Algum sonho? -Questionou o menor, arriscando-se em assuntos que poderiam ser pessoais ao outro, ou não.

Ele olhou o horizonte por um momento.

-Acho que sei de duas cidades aqui perto. Mas sem um destino, andar a esmo só vai acabar matando a gente. -Explicou, as mãos nos bolsos.

-Eu não ligo. Para longe.

A verdade é que Zaji tinha alguém para encontrar. Mas não tinha pistas. Fazia muito tempo

-Então… Não se incomodaria de me acompanhar, certo? -Perguntou Loren, abrindo um sorriso completo, animado com a nova companhia. - Beleza! Eu estava a caminho de uma cidade longe daqui. Longe do deserto. Algo com flores, frutas e um rio. -O garoto explicava, animado. Até fazia o mapa no ar, com os dedos explicando o que queria encontrar. -… É uma viagem longa. Mas com companhia, fica curta. -Acrescentou, com um grande sorriso.

Zaji não conseguia entender muito bem a animação de Loren, mas acabou por sorrir também.

-Certo! Longe e flores, não é? Guie-nos. -Sorriu novamente.

"Longe daqui… Talvez eu possa encontrá-la…". Loren era muito parecido com ela. Não na aparência, mas na alma. Nos olhos. Isso entristecia Zaji, da mesma forma que o alegrava.

Viajaram durante alguns dias em um ritmo monótono, seguindo a direção apontada por Loren e comendo as escassas rações de Zaji. Mas após seis dias de viagem, tudo estava no fim.

-Loren… Temos mais um cantil de água, na metade e o suficiente para mais uma refeição. Algum plano? De quanto é a distância?

-Bom… -Loren começou a calcular, orientando-se pelo Sol e pelas estrelas que tinha visto na noite anterior. -A próxima cidade deve estar a um dia de viagem. No ritmo em que estamos, talvez possamos chegar à noite. -Ele ponderou, seguindo alguns pontos de referência no horizonte.

Loren olhou para o outro. Tinha a pele queimada de Sol, como ele. Mas a viagem parecia ter encurvado Zaji, enfraquecido, talvez. Perguntou-se se não teria a mesma aparência que ele agora, após tanta caminhada.

-Não quer mesmo que eu carregue a bolsa? E como está o machucado? - perguntou.

-Está tudo bem, não tem mesmo quase nada dentro dela. À noite… Temos o suficiente, se não pararmos. Comeremos andando… As queimaduras de Sol também precisam ser tratadas logo…

Zaji tinha passado os últimos dias menos grosso do que quando se conheceram. Talvez fosse mesmo apenas o cansaço.

-Sim. Chegamos, reabastecemos e paramos por um ou dois dias para nos restabelecer. Um bom plano, não? - comentou, sorrindo simplesmente. - E se nos atrasarmos, podemos caçar algum lagarto do deserto e comê-lo.

Loren virou para o outro, subitamente, durante a caminhada:

-Zaji. Quantos anos você tem?

-Sim, é um bom plano. -Zaji olhou para o menino. -Tenho dezessete. Por que a pergunta súbita? Aliás, e você?

-Bem… Estivemos viajando juntos, mas ainda sei pouco sobre você. Fiquei curioso. –Explicou, sem constrangimento. - Eu tenho dezesseis. Mas se compararmos minha cara com a sua, devo parecer com uns treze anos, não acha? -Perguntou, soltando um riso leve. Já se sentia confortável do lado de Zaji.

-Treze, hein? Diria que parece mesmo. Mas não, é só um ano mais novo. Que engraçado. –O moreno sorriu, mas não com os olhos. -Quer dizer que o Furacão de Lâminas está curioso sobre a Serpente? Quem diria…

-É o que dizem. Minha cara é de criança. Mas não reclamo, costuma ajudar, geralmente. –Loren respondeu. A cara e a idade eram definitivamente de criança, mas a cabeça já estava mais adiante. -Eu diria que eu estou curioso sobre você. Mas sim, é verdade. -Disse, o olhar no horizonte. - O que fazia na hora que te pegaram para a arena?

-Eu… Estava com uma amiga… -Zaji estava visivelmente perturbado. Estacou e levou as mãos ao rosto, parando de falar. -Já faz muito tempo…

Loren parou também quando viu que o outro tinha parado. Foi até suas costas, empurrando-o gentilmente para frente.

-Vamos, não podemos parar. -Sussurrou e voltou a se colocar ao lado do outro. - Não precisa dizer se te machuca. Era apenas curiosidade.

-Me desculpe… Foi só um lapso… Já faz muito tempo. Esqueça. Eu já o fiz também. -Mentira. Grande Mentira. Mas era mais fácil assim. Sorriu. -Vamos logo. Lagarto do deserto não tem gosto bom.

-Não precisa se desculpar. E lagartos do deserto só tem gosto ruim para os que não sabem separar as peças certas! -Disse, apertando o passo com o moreno.

Com a caminhada que tinham dado ate ali, já podiam avistar os muros da cidade ao longe.

Pouco depois, chegaram. Atravessaram os portões mastigando os últimos pedaços de carne seca. Zaji parecia bem mais alegre. De repente, virou para Loren com semblante preocupado:

-Não temos dinheiro. Loren, não temos nenhuma grana.

-Merda, tem razão. –O menino resmungou, dando um tapa na própria testa. Depois, observando as pessoas circulando pela rua, pensou rápido. -Podemos roubar… Embora essa opção não me agrade. Ou podemos mendigar.

Uma música no plaza principal, alegre, cigana, começou a tocar.

-Ou podemos nos apresentar por dinheiro! Rápido, o que sabe fazer? -Perguntou Loren, os olhos amarelos arregalados.

-Bom… Eu sei lutar. Passeis seis anos na arena. E também… Piruetas. Todos os tipos de piruetas possíveis. E também…

-Piruetas tá ótimo. Tem alguma coisa que sirva de recipiente? Para as moedas? -Perguntou Loren, estrelas nos olhos, o espírito empreendedor vindo à tona.

-Cara, você está muito animado. -Zaji segurava-se para não rir. -Tem a sacola, ué.

-Dê-me a sacola! É hora do espetáculo! -Exclamou o moleque, recebendo a sacola das mãos de Zaji de modo ansioso. - Mas, ah, faltam os adornos. Para chamar atenção.

Loren se aproximou do outro, amarrando seu cabelo, ajeitando suas roupas e colocando nele os adornos que tinha recebido antes de ser direcionado para a Sala dos Sem Destino.

-Aí, perfeito! Cara de artista. Vamos para aquele canto da praça para a apresentação.

-Eu poderia roubar no jogo também… É mais fácil. Além do mais, está sugerindo que eu dê piruetas em um canto?! Ah, não senhor. Eu tenho meu orgulho.

O sorriso de Loren foi simplesmente desintegrado.

-Mas roubar é errado. E não temos dinheiro para sequer apostar. -Disse o moleque, desapontado. -E é porque aquele lado da praça é mais vazio, mais chão para usar de palco e mais chances de chamar atenção. Vaaaamos, Zaji! -Ele pediu, os olhos suplicantes.

-Certo, certo. Você é mesmo muito estranho, lagartinho. Enfim… Faça o que eu disser.

Zaji começou a bater as mãos em um ritmo compassado, dizendo:

-Apresente-me em alto e bom som! Bata palmas e bata os pés! -A essa altura, Zaji já cantarolava as instruções, atraindo as pessoas. -Apresente-me como a Serpente, o Chacal e tudo o mais! Pois eu sou Zaji, que levantará voo!

Nisso, pulou para trás, em um pirueta impressionante, uma cambalhota no ar, aterrissando perfeitamente… Sobre as mãos, plantando bananeira e esperneando com as pernas, rindo alto.

-Apresente-me, apresente-me, Loren, o Furacão!

Era como se estivesse acostumado com aquilo. Loren animou-se tão rapidamente quanto antes, se não mais.

O menino abriu um enorme sorriso, e, seguindo as instruções do Chacal, começou a bater palmas e pés nas pedras do calçamento, atraindo a atenção de crianças, mercadores e compradores.

-Alto, senhoras e senhores! Trago a vocês uma das pessoas mais impressionantes que já encontrarão nesta província! -Dizia o garoto, que embora não tivesse uma voz profunda de homem, tinha uma voz melodiosa que era igualmente agradável. -Venham ver uma apresentação única da Serpente do Deserto, do Chacal, de Zaji, o guerreiro! E permitam-me, Loren, o Furacão, receber suas contribuições para nosso sustento desta noite. -Ele apresentou, fazendo gestos e giros com o corpo, usando sua agilidade para chamar a atenção de todos na rua.

O chamado cantado de Loren atraiu a multidão, que batia palmas e batia o pés, cada um no seu ritmo. Tudo era mais barulho do que música, mas riam todos enquanto Zaji virava mortais, dava passos em paredes e apoiava-se em uma só mão.

Em certo momento, Zaji pulou na beira de uma fonte e equilibrou-se em um só pé, o outro para o lado, como uma criança, os braços abertos.

-Obrigado a todos pelas suas doações! Agora, um final especial! Uma moeda de ouro, eu aposto, que posso subir onde quer que mandarem e também descer! Escolham! Apostem! Apenas um, não se empurrem!

-Eu! Eu, aqui! -Berrou um garotinho, trajado em roupas nobres, que havia assistido a todo o espetáculo e agora tinha os olhos brilhantes. Ele colocou a mão no bolso e jogou na sacola de Loren.

-Muito bem, garotinho, aonde quer que ele suba? -Perguntou Loren, agachando para ficar na altura do garoto.

-Na torre da Igreja! -Ele pediu, desafiador, apontando a ponta da torre da catedral a poucos metros dali, fazendo todos, inclusive Loren, arregalarem os olhos e encararem Zaji.

O medo se espalhou por Zaji, mas era uma moeda de ouro! Uma moeda de ouro inteirinha. Dez de prata ou cinquenta de bronze… Estariam ricos!

-Pois não, jovem mestre! -Disse, sorrindo.

Então, correu até a lateral de uma casa, saltou, segurou-se em uma saliência, apoiou o pé em um buraco e alçou-se para cima em uma pirueta. Correu pelo telhado, pulou para outra casa e depois para outra, aonde escalou a chaminé e pulou contra a torre da igreja, ralando os dedos ao segurar-se.

Subiu em uma performance impressionante de força nos braços, chegando ao topo.

Gritou a plenos pulmões:

-A subida foi difícil! Mas aqui estou eu, Zaji, a Serpente, ao lado da marca de Deus!

Aplausos subiram da multidão. O menino ria:

-Desça, desça!

-Pois não! Espere-me no pé da torre, do lado de dentro!

Assim que o nobrezinho atravessou as portas da igreja, Zaji agarrou a corda usada pelos padres para tocar o sino e desceu por essa, escorregando rapidamente e queimando as mãos. A corda acabava a cinco metros do chão, aonde o moreno a soltou, deu três cambalhotas no ar e parou ao lado do menino que esperava, radiante.

Zaji fez uma mesura alongada e circense, segurando a capa.

-Pronto, jovem mestre

Não foi apenas o nobre garotinho que havia se impressionado com a habilidade de Zaji. Todos na rua, sem exceção, admiravam o espetáculo de piruetas e força do Chacal. Loren, principalmente, parou e ficou olhando, boquiaberto. Era um show de equilíbrio e maestria sobre os movimentos do próprio corpo.

Quando Zaji desceu, Loren correu, os olhos com mais estrelas do que quando planejava o espetáculo, até a parte de dentro da igreja.

-Isso foi incrível, Zaji! –Ele elogiou, com a sacola a tiracolo tilintando de moedas. -Incrível mesmo! Todos estão falando de você! Eu mal acreditei quando te vi do lado do sino! -Disse o de cabelos acobreados, gesticulando e falando sem parar.

As pessoas cercaram Zaji, mas ele apenas as afastou rindo, e caminhou com Loren.

-Muito obrigado, eu sei. -Respondeu Zaji, rindo, enquanto lavava as mãos raladas e queimadas na fonte. -Agora já podemos dormir em um lugar confortável ou algo assim.

Secou as mãos na capa, do lado interno, deixando uma leve macha vermelha.

-Aliás, por que você estava tão animado com a idéia de um espetáculo de rua?

-Porque, quando mais o povo poderia ter a oportunidade de ver a Serpente em ação? Era a chance deles, logo, eu agi por eles. -Explicou Loren, meio que tirando o corpo, quando na verdade, era ele o mais entusiasmado pelo espetáculo.

Ele notou a mancha na capa do outro, e, sem pedir permissão, segurou uma das palmas, revelando-as machucadas.

-Vamos precisar de ataduras também. -Notou, procurando com os olhos alguma banquinha de suprimentos.

-Ah, sim, mas tudo bem, isso é coisa pouca. Mas escuta, Loren… Você também pareceu bem entusiasmado observando a Serpente. -Riu. -E você? Não vai se apresentar? O que sabe fazer?

Zaji fez as perguntas imitando o jeito animado de Loren e rindo muito. As mãos machucadas não pareciam realmente incomodá-lo.

-Digo por nós dois. Preciso trocar as minhas também. -Ele disse, caminhando até uma banquinha que parecia bem suprida, mas estacou com o comentário do outro. -Claro que não, eu estava trabalhando em coletar as moedas! -Ele negou, orgulhoso, quando na verdade a sacola tinha ficado no chão, as moedas chovendo dentro dela. -Eu? Não sei fazer piruetas como você. E está ficando tarde, se não corrermos, não vamos achar onde comer e dormir. Quem sabe amanhã? Se me apresentar, é claro. -Sugeriu, novamente animado.

-Coletar as moedas… Ok. -Zaji ria com os olhos, além da boca, e deveria ser um alívio vê-lo assim. -Não perguntei se sabe dar piruetas. Perguntei o que sabe fazer. Afinal, eu não posso trabalhar por nós dois, certo?

E realmente foi. Loren encarou o outro por algum tempo, memorizando o jeito como seus olhos sorriam.

-Eu? Sei fazer alguma coisa. -Disse, sorrindo de lado, despistando o Chacal. -Mas garanto que não é menos impressionante do que o que sabe fazer, embora eu fosse adorar ficar apenas como apresentador. -Disse, enquanto tirava algumas moedas de cobre da sacola, calculando o preço de algumas compras na praça.

-Eu adoraria ver o seu "talento não menos impressionante", lagartinho.

A companhia de Loren era perfeita. Na arena, Zaji se distraída brigando e fazendo todos pensarem que ele era perigoso e violento. Embora gostasse de lutar, ele não era assim. E nas horas noturnas, sozinho, lembrava-se de coisas que não deveria. Mas viajar com Loren era bom. Ele animava-se muito fácil, ria muito fácil, enfim, transparente como vidro.

-Eu também tenho outros truques guardados. Faça aí as suas compras, enquanto eu procuro por uma pousada. -"E uma pessoa", pensou Zaji. -Dê-me duas de prata para que eu não fiquei pobre, sim?

-Então, antes de seguirmos viagem, farei minha apresentação e você ficará orgulhoso, caro Chacal. -Disse o moleque, assentindo com a cabeça.

Loren sentia-se muito animado com a companhia do moreno também. Há muito tempo ele viajava, mas era geralmente sozinho, e fugindo. Ele sabia se virar, mas ter alguém para conversar e ajudar transmitia um grande conforto para o moleque, que se sentia aliviado, energia revertida em animação e sorrisos. Tudo parecia dar certo desta vez.

-Certo, nos encontramos daqui à uma hora. -Combinou, dando as duas de prata com certa parcimônia, fazendo com que Zaji precisasse puxar as moedas dos seus dedos. - Não gaste tudo! –Recomendou, meio avarento.

-Certo, certo. Não prometo nada.

E antes que Loren pudesse protestar, Zaji deu as costas, rindo e saiu andando.

-Hey! - Loren tentou protestar, mas o guerreiro já estava longe, e logo ele voltou a se preocupar com o reabastecimento.

O moreno perguntava para as pessoas descrevendo-a, falando seu nome. Mas como ela poderia estar tão perto? Quarenta minutos haviam se passado. Zaji entrou em uma loja de instrumentos usados. Saiu de lá depois de cinco minutos, no bolso, haviam sobrado cinco moedas de bronze. Uma prata e meia por aquele instrumento. Até que valia pena.

Em seus dez minutos restantes, encontrou uma boa pousada. Guardou o instrumento no cinto e foi para o local de encontro. Breve Loren veria seu outro talento.

Já Loren parou em várias banquinhas, procurando os melhores preços. Comprou bastante carne seca, algumas frutas, damascos secos, nozes, queijo e um novo cantil, que junto com os outros, encheu de água e totalizou cinco recipientes de água. Estavam nutricionalmente reabastecidos.

Ainda assim, parou em uma tenda de viajantes, e após alguma negociação, comprou um belo rolo de ataduras, um pouco de pomada e panos, que serviriam especialmente para si. Tinha deixado os seus antigos ainda na arena e não podia ficar sem eles.

Loren teve tempo, ainda, de correr para uma loja de armamentos e comprar duas novas adagas, para sua proteção, e um cinto, para carregar objetos junto a si.

Contente com suas compras percebeu que havia economizado cerca de um quarto do preço original das mercadorias. Abrindo um sorriso maior ainda, foi até o ponto de encontro e avistou Zaji ao longe com um instrumento musical.

-Música, Serpente? -Perguntou, enquanto se aproximava.

-Pois sim! -Respondeu Zaji, sorrindo e sacando a flauta do cinto. -Vamos terminar nossos negócios.

Empoleirou-se rapidamente um telhado próximo e começou a tocar. Loren entendeu e logo abriu a sacola para receber as moedas.

Zaji tocava sereno, imóvel no telhado enquanto o vento corria em sua capa. Era uma melodia simples, Loren pensava até já ter ouvido. Lembrou-se logo: Era uma cantiga de ninar, uma música popular, velha e sem origem.

Era simples, mas o moreno a tocava como se fosse a melhor música do mundo. E seu palco, o telhado de barro no fim do dia, logo fez com que mais moedas chovessem na sacola. Estavam ricos.

Bem, não ricos. Mas até que tinham bastante.

Assim que reconheceu a música, Loren acompanhou Zaji discretamente com a própria voz, enquanto recolhia as moedas das pessoas na parte. Foi uma apresentação muito bela, com o Sol se pondo ao fundo e os comerciantes terminando suas barganhas. Uma tarde com um tom de tranquilidade. O moleque de cabelos acobreados sentiu que tinha os ouvidos abençoados pela melodia, e, mais uma vez, impressionou-se com o rapaz.

Zaji terminou, fez uma mesura, regada de aplausos, guardou a flauta no cinto e pulou para o chão, ao lado de Loren.

-E então? -Perguntou, sobre seu desempenho. -Agora falta você. E então? -Sorriu torto, dessa vez se referindo aos talentos escondidos de Loren.

-Foi maravilhoso. –O outro admitiu, sincero. -Onde aprendeu a tocar assim? E quanto as minhas habilidades… -Disse, cobrindo o rosto com sua capa, misterioso. -Depois. Quando precisarmos de dinheiro~.

Zaji sorriu:

-Então espero que o dinheiro acabe logo. Aprendi… Por aí. Mas não sei tocar muito. Me ensinaram… Já faz muito tempo.

"Já faz muito tempo." Esse era seu mantra. Mesmo que não fizesse tanto tempo assim. Se estivesse no passado, podia fazer bastante tempo. E o tempo apaga o que queremos esquecer. Afinal, ela o ensinara a tocar. E Loren não precisava saber.

-Só toco cantigas populares e coisas assim. Nenhuma grade peça. Mesmo assim, eu gosto. –Completou.

-Nãão, nada de gastar a toa! -Reclamou o outro, mas rindo em seguida diante do olhar subitamente vago do moreno. Não gostava de vê-lo assim, aquele momento não era uma situação triste.

-O que passou, passou, sim? Hakuna Mattata. -Deu uns tapinhas nas costas de Zaji. -E, se eu soubesse tocar assim, também adoraria. Deixa a música extremamente bela. -Disse, ajeitando a sacola com as compras no ombro. -Achou alguma pousada? Já está escurecendo.

-Certo, passou. -Zaji calou-se por um momento, o olhar vago. -Sim, achei. Aconchegante e barata. Siga-me.

Loren não gostava daquele olhar vago. Mas isso não dependia inteiramente dele, logo, não insistiu no assunto.

Andaram pela rua, o movimento comercial diminuindo aos poucos. Logo chegaram ao seu destino. A pousada era pequena, dois andares. Feita de madeira clara, com janelas azuis. Não tinha nome, então era apenas "pousada".

Caminharam lado a lado, e no estabelecimento, Loren fez questão de pagar por dois quartos, apesar de sua avareza e de estarem um ao lado do outro.

Já na porta de seu quarto, Zaji virou-se para o menino, na porta ao lado:

-Nos encontramos no salão para o jantar?

-Sim, com certeza. -Loren disse, sorrindo, dando a bolsa para o guerreiro após retirar o que havia comprado para si, ou seja, as ataduras, os panos e as adagas.

Na hora do jantar, os dois desceram e sentaram-se em uma das várias mesas do salão. Depois de acomodados, Zaji virou-se sério para Loren, e disse, num tom neutro:

-Loren, por que você precisa de tantas ataduras? Nossos cortes foram mais superficiais e já fazem seis dias. Estão praticamente fechados. E também… Por que tanto pânico do homem de verde?

Para quem escondia muitos segredos, Zaji perguntava demais

Loren não esperava aquelas duas perguntas tão diretas. Olhou para o moreno, piscou duas vezes, deu uma garfada do seu próprio prato antes de continuar.

-Lembra de quando fui apresentado pelo mestre de jogos? Sobrevivi ao ataque de uma cidade. Mas não inteiro. -Disse o garoto, levantando a camisa até o abdome, revelando uma cobertura de ataduras que cobriam toda a área das costelas e provavelmente continuava até o peito, e abaixou o tecido rapidamente. - Na fuga, acabei queimando e cortando o tórax todo, então… Preciso continuar trocando as ataduras. -Contou, a voz constante e neutra. Como se fosse fácil falar disso.

Mas, quanto ao homem de verde…Foi pensar nele, e o garoto travou. Paralisou. O maxilar trancou-se junto com as pálpebras, enquanto ele derrubava o garfo e lutava para se livrar de suas memórias, tremendo. Ainda eram fortes demais, recentes demais…

Zaji pegou o garfo de Loren do chão e colocou-o na mesa. Depois, virou-se para o rapaz:

-Loren. Olhe para cá.

Nada. Ele tremia, mas não se moveu.

-Loren. Agora. Olhe nos meus olhos.

O menino levantou os olhos só um pouco, encarando o verde no rosto de Zaji. Já esse transmitiu toda a tranquilidade possível para seu olhar e apenas falou:

-Nós já fugimos. Já estamos longe. Ele não vai mais te alcançar.

Dizendo isso, baixou a mão na cabeça do moleque por uma fração de segundo, um gesto fraternal, e depois, disse, alto:

-Garçonete, precisamos de outro garfo, por favor. E uma água.

Chacoalhava o outro levemente:

-Loren. Loren, e aí?

Loren se encolheu ao toque do outro, inicialmente. Mas manteve a conexão entre amarelo e verde e ancorou-se nos olhos de Zaji para escapar das lembranças.

-E-está tudo bem. Passou, mesmo. -Ele disse, tirando a mão do outro de sua cabeça. -Só… não dá pra pensar nisso. Ainda.

A garçonete veio com o garfo e a água. Loren bebeu o líquido com cuidado, as mãos ainda moles.

-É por isso que quero ir para um lugar com flores e água, muita água. -Explicou ele, batendo o punho na mesa com força. -Ele não vai me encontrar de novo ali. Não mesmo.

O moleque estava de volta. E como prova disso, abriu um breve sorriso.

-Mas e você, Zaji? Consegue falar do seu passado? -Perguntou, um pouco temeroso de que o outro reagisse tão mal quanto si mesmo.

-Só… Só das lembranças nas quais ela não está presente.

Zaji sentia-se aliviado. Se Loren continuasse daquele jeito, teria que pedir ajuda. Não sabia lidar muito bem com pessoas. Mas o truque para acalmar animais até que havia funcionado bem. Quem diria.

-Tem alguma que queira compartilhar? Aonde você nasceu? -Perguntou Loren, cuidadoso, mas ao mesmo tempo encorajador. Estava curioso sobre Zaji também e a história dele parecia ser uma daquelas épicas.

-Bom, eu nasci muito longe daqui. Em uma cidadezinha sob o domínio de um grande império, com muitas árvores, Pristas. Mas quando eu tinha seis anos, uma praga assolou a cidade. Meus pais morreram aí. Foi mais ou menos sete noites antes do meu aniversário.

"Por causa da praga, eu sai da cidade, só seguindo a estrada, em direção ao continente de Stariot. No caminho, um grupo meio cigano, meio circense, me acolheu. Foi aí que aprendi as piruetas. Fiquei com eles por dois anos.

Com nove, eu já me achava grandíssimo, e parti. Cheguei na cidade litorânea de Pierrot, onde as ruas são sempre enfeitadas por bandeirinhas e as casinhas baixas são coloridas. Ganhei dinheiro como artista de rua, por isso a minha "performance". Então… Aos dez, eu a conheci. Mas quero parar por aqui, se não se importar."

O brilho havia sumido novamente de seus olhos. Mas para alguém tão fechado, até que tinha tagarelado bastante.

-Uau… Tão novo assim? Ninguém tentou se aproveitar de você ou algo assim? -Perguntou Loren, mas percebendo que a pergunta tinha sido um pouco estranha, limpou a garganta. -Quer dizer, não foi muito difícil? Geralmente crianças não aguentam longas caminhadas e tal.

O de olhos amarelos entendeu que 'ela', fosse quem fosse, era assunto proibido. Algum tipo de amor perdido ou algo assim, talvez. Mas não podia deixar de ficar curioso com a história do outro; afinal, detrás de uma grande força, há uma grande história. E parte da origem dela ele tinha acabado de descobrir.

Zaji quase cuspiu a colherada de sopa quando ouviu a pergunta.

-Se aproveitar de mim soou bem estranho, Loren. –O moreno deu um riso curto. -Mas eu não tive que andar muito. Andei um dia, ou dois, não lembro muito bem. Além do mais, a estrada era ladeada de macieiras e um regato corre com ela a maior parte do tempo. Não tive muitos problemas. Mais alguma pergunta? -Zaji arqueou uma das sobrancelhas, em uma expressão divertida. Ele ponderava se um dia contaria sobre ela para Loren. Quem sabe. Talvez quando já não doesse tanto. Talvez quando a encontrasse.

-Sim, super estranho, oops! -Ele comentou, rindo. Mas não parecia um riso dele. -E à noite? Na hora de dormir. Não era frio? E roupas? E não tinham animais perigosos? -O garoto fez uma chuva de perguntas, mal podendo conter a curiosidade.

Loren, que já havia terminado de comer, apoiou os cotovelos na mesa, para ouvir e ver o outro com mais atenção.

-Com essa sua cara, até parece que a minha vida é interessante, aff. -Zaji revirou os olhos exageradamente. -Ah, por lá era meio frio, mas não é como se eu tivesse saído despreparado. E estávamos na estação quente. Quanto aos animais… Bom, coelhos e renas, não é um grande problema, certo? Os muito ferozes não chegam perto da estrada. Dentro da floresta há mais comida.

Zaji havia percebido um vacilo leve no riso sempre animado de Loren. Talvez fosse só impressão, mas queria distraí-lo.

-Mas é sim! Eu não teria coragem de viajar assim, de jeito nenhum. -Pontuou o moleque, fazendo pouco de si. -Mas parece que a situação ajudou bastante. E a caravana circense? Fazia apresentações? Foi difícil aprender as piruetas? -Perguntou o garoto, entretido com a história do outro.

Loren ponderava se pedia um prato mais ou não. A comida estava boa e quentinha, mas ele mesmo fazia melhor, logo…

-Bem…

Antes que Zaji pudesse falar, uma garota de uns vinte anos entrou no salão, a respiração pesada.

-Os caçadores da arena estão aqui! Estão procurando duas pessoas, queimando todos os estabelecimentos por onde passam!

Zaji não teve que ouvir mais nada. Levantou-se rapidamente, derrubando a cadeira e puxou Loren pelo braço até o andar de cima.

-Pegue suas coisas rápido e me encontre no meu quarto! Sairemos como gatos!

É claro, eles podiam ter saído na dianteira, mas os caçadores também deveriam estar em seu encalço. Loren seguiu as ordens de Zaji e em instantes, reuniu seus poucos objetos, entrando no quarto do outro, as adagas no cinto e o resto nos bolsos, pronto para pular pela janela com o outro.

-A saída da cidade é do lado oposto! Teremos que cruzar a cidade pelos telhados! -Avisou Loren, abrindo a janela após alguma briga com as trancas.

-E o que você acha que eu quis dizer com "como gatos"? -Respondeu Zaji, pulando diretamente da janela para um telhado a dois metros de distância. -Loren, vem!

-E eu lá vou entender metáforas num instante esse?! -Reclamou o loiro, que pulou agilmente da janela para o telhado. Sem o peso extra que levava na batalha, ele finalmente podia usar toda a agilidade e ginga do corpo relativamente pequeno e magro. -Por aqui! -Sussurrou, correndo pelo telhado da casa até o próximo teto, pulando e aterrissando sem fazer barulho.

-Você não precisa me guiar! -Disse Zaji, indo atrás. -Você também salta muito bem!

-Obrigado! -Gritou Loren, num pulo entre dois telhados.

Correram pelos telhados, saltando e subindo. Loren era ágil, muito mais do que o esperado. Mas na hora de subir, era mais lento. Provavelmente devido à 'falta de músculos desenvolvidos'. Nessas horas Zaji ajudava-o. Juntos, ambos percorriam o topo da cidade em tempo recorde, ajudando-se e mantendo um ótimo ritmo.

Depois de correr no mínimo por dez casas, saltaram para a rua. Mas, é claro, as coisas não podiam sair bem. Erraram uma curva e os caçadores da arena os viram.

-Lá estão eles! -Um homem de rosto coberto, usando uma capa preta, seguido por outros igualmente uniformizados, avançou sobre eles.

Loren, movido pela adrenalina, tentou correr por entre alguns muros mais unidos, que davam em becos e consequentemente deveriam despistá-los.

Mas os caçadores estavam preparados. Tinham armas também. Um deles tinha um arco e flecha, que atirou e pegou que em cheio no moleque, a flecha cravando-se em suas costas.

Ele praguejou, mas não parou de correr, seguindo e às vezes puxando Zaji consigo.

-Você acabou de levar uma flechada! -Gritou Zaji, enquanto corriam.

Decidindo que deveria fazer algo, saltou e dando três passos em uma parede, passou para a frente de Loren. Fez uma curva súbita e entrou em uma casa qualquer, puxando o outro para dentro.

-Arranque já isso! Os caçadores usam flechas com entorpecentes! Eu não sei quanto essa aí, mas arranque-a!

Loren não ouvia uma palavra do que Zaji dizia. A concentração em correr e sobreviver era muito maior, logo, apenas quando foi puxado para dentro da casa, deu-se conta da dor que sentia.

-E-entorpecentes? - o garoto titubeou na fala. Estava curvado; a camisa branca agora estava manchada de escarlate. O tiro tinha atingido uma das escápulas, não muito profundo, mas onde passavam suas ataduras permanentes.

Provavelmente teria uma infecção e teria de retirar as ataduras, o que o preocupava e assustava muito. Mas, se desmaiasse por conta dos entorpecentes, Zaji acabaria cuidando de si, caso não fosse pego pelos caçadores.

-Arranque para mim! Rápido! Eu não alcanço! -Pediu o garoto, curvado de dor, oferecendo as costas para o guerreiro.

-Vai me dizer que você nem havia notado a flecha?! -Disse Zaji, preocupado. -Cuidado para não morder a língua. No três. Um, dois…

E puxou. Mentiu sobre os números para que Loren se distraísse.

-Você sangrou demais. Não existe possibilidade de o entorpecente ter chegado a fazer efeito. O problema é a ferida onde você já estava ferido.

-Claro que tinha! Eu só estava preocupado em fugir… -Dizia, quando Zaji arrancou a flecha de suas costas, reprimindo um grito. -M-melhor, então.

-Chefe, eles viraram ali! -O grito soou assustadoramente perto.

-Corra, Loren! -Zaji o empurrou para outro cômodo e arrastou uma mesa na frente da porta. -Eu juro que te alcanço! Agora corre! -Gritou para o outro lado, enquanto sacava lentamente o sabre, esperando os caçadores se aproximarem.

"Espero que eles não tenham dois grupos…" Pensava, apreensivo. "Podem pegar Loren pelo outro lado. Porém… Ele é o Furacão de Lâminas. Com o ombro furado. Bosta, tenho que me apressar!"

O resto aconteceu rápido demais. Ouviu um grito, Zaji o empurrou para outra porta e ele ficou preso, uma promessa em seguida por parte do outro.

Mas Loren se recusou a fugir. Era pequeno, sim. E, em comparação a muitos homens, fraco. Mas sua habilidade e agilidade sempre compensaram isso por ele.

"Eu não vou te deixar sozinho, Zaji. Você não me deixou e eu não vou fugir!", foi o que pensou o garoto de olhos amarelados, ignorando toda a dor que sentia no ombro.

Ele pulou a janela. Mas ao invés de sair entrando, ele esperou, grudado à parede da casa, que os caçadores entrassem. Tirou as adagas do cinto e enrijeceu os músculos, preparando-se para saltar na janela do cômodo onde Zaji esperava lutar sozinho.

O primeiro homem avançou, gritando. Zaji deslizou para o lado, desviando. Mas logo atrás já havia outro, o golpe preparado… Lâminas retiniram quando Loren entrou pela janela, imediatamente apartando o golpe. Seu braço vacilou devido ao ferimento e ele balançou. Zaji contornou sua esquerda e perfurou os rins do Caçador 2.

Mas Caçador 1 havia virado e mirava a nuca de Zaji. Loren deslizou pelas costas do amigo e atirou uma adaga entre os olhos do atacante.

Caçador 3 entrou, mirando nas pernas de Loren. Zaji deu uma cambalhota e amputou os pés do homem, que caiu, gritando.

-Venham, eles estão aqui!

Mais deles estavam vindo. Só aí Zaji teve plena consciência de que o menino lutava ao seu lado.

-Loren, o que você tá fazendo aqui?!

-Eu não vou te deixar sozinho! -Gritou Loren, recuperando a adaga que tinha ficado presa entre os olhos de um dos três primeiros caçadores. -Vamos acabar com a próxima leva e continuar a fugir! -Ele disse, em posição de ataque, lado a lado com o parceiro.

Cinco caçadores corpulentos entraram, com sede de sangue refletido nos olhos.

Loren sorriu. Não seria muito difícil, principalmente com Zaji ao seu lado.

O moreno avançou sobre o primeiro, como se mirasse em sua cabeça. Mas fez uma finta, e, girando o corpo, acertou o homem atrás dele, deixando o primeiro para Loren, que o matou com dois golpes rápidos no peito.

Zaji correu para a esquerda do terceiro, lançando um olhar para o amigo: "Direita, Loren."

O homem morreu com golpes laterais, um de sabre e um de adaga.

Loren avançou sobre o quarto, furando um olho, e Zaji, usando o amigo de cobertura, veio de baixo, cortando o último do queixo até a testa.

-Se você continuar a lutar vai sangrar até morrer! -Gritou para o menino.

-Não importa! Morro, mas não volto para a arena! -Justificou o moleque, entre um gemido e outro da batalha.

Tinham acabado com a leva de caçadores. A casa estava cheia de sangue e corpos, completamente destruída.

-Vamos, falta pouco para o fim da cidade! -Exclamou Loren, saltando pela janela, mas sempre perto do outro. Estavam em conexão, e assim, o garoto agia em conjunto com as ações do guerreiro. Como um time.

Zaji queria correr para longe, e Loren sentiu isso, então, correu. Mas o moreno lembrou-se de que os caçadores restantes eram usuários de arco-e-flecha.

-Loren, para! Paraaa! -O puxou pelo braço e forçou a parar. -Eu não poupei a sua vida para você gastá-la. As guarnições de caçadores tem sempre, no máximo, dez homens. Nós já matamos oito deles. Você não vai voltar para a arena. Agora, por favor, aperte algo contra esse buraco para parar o sangramento enquanto eu pego os outros dois. -Soltou o braço do menino. -Por favor.

Eles tinham parado no meio da rua. Era um beco escuro e discreto, perto da casa onde haviam matado os caçadores, oferecendo certa proteção.

-Eu não quero te deixar s-sozinho. -Disse o menino, marrento, mas titubeando na última palavra de modo quase bêbado. O garoto tinha se feito de forte, mas a ferida ainda estava ali, e embora tentasse ignorá-la, ela começava a vencer sua consciência. -E eu não alcanço… -Disse, tentando mover o braço com o ombro machucado. Sentiu uma dor lancinante, junto com um gemido de dor. -Vá, e-eu devo acabar só te atrapalhando. Mas volte vivo! -Disse, sentando no chão e se rendendo, sem antes dar um leve abraço em Zaji com o braço bom.

O moreno saiu do abraço, sério, e rasgou parte de sua capa, amarrando toscamente no ombro de Loren.

-Sente-se apoiado na parede. Fará pressão.

Deu alguns passos na direção de onde os caçadores viriam, estacou, virando-se e sorriu:

-Não vou morrer.

-Sei que não. Eu te mato se você morrer! - brincou o outro, obedecendo, e sentou na parede. O nó estava forte, e Loren sentiu o braço formigar, o que era um bom sinal. O sangue estava estancando.

Zaji correu. Assim que avistou o primeiro homem de preto, atirou o sabre, pegando-o nas costas. "Falta um!", pensou. Mas ele estava errado. Uma força especial de quinze homens. Seus amigos perceberam a morte do primeiro e preparam suas bestas.

-Fogo! -Gritou n°2.

Quatro flechas vieram zunindo na direção de Zaji, que as desviou com sua capa. Passou correndo pelo n° 1, arrancando o sabre de suas costas.

-Fogo!

Mais uma saraivada. Zaji desviou uma com o sabre e outra não o acertou. Mas uma fincou-se em seu braço e outra cortou seu rosto.

-Desgraçados!

Correu na parede, fincando o sabre na cabeça de n°2. Aproveitou a confusão dos outros e separou n°3 na cintura. Chutou n°4 para fora do caminho e perfurou o quinto. Depois, enfiou calmamente a flecha de seu braço na barriga de 4.

-Feito!

Voltou correndo para onde o amigo estava.

Loren ouviu a batalha de Zaji do beco onde estava. E também ouviu os movimentos e vozes dos oponentes sumindo, uma a uma. Preocupou-se quando ouviu Zaji praguejar, mas relaxou os ombros ao ouvi-lo novamente, num tom mais satisfeito.

Mas quando ele voltou, achou-o sangrando no braço e no rosto.

-Eles te atingiram?! Está doendo muito? -Perguntou o garoto, exasperado, levantando-se um pouco tonto da parede aonde estava sentado.

-Ei, calma! Assim você cai! Eu estou bem. –O moreno mexeu o braço com certo esforço. -Viu?

-Vi você tremendo, isso sim. -Ralhou o outro, abaixando o braço de Zaji com a mão do lado bom. - Mas agora é nossa chance de ir embora. Teremos que ir por terra. Consegue continuar? -Perguntou o garoto, segurando o próprio braço, pronto para se colocar em caminhada.

-Mas os próximos quilômetros são só deserto! Não tem como irmos assim. –Zaji protestou.

-Não podemos ficar também. Os caçadores queimaram vários estabelecimentos atrás de nós, e depois da nossa fuga na pousada e da apresentação na praça, está mais que óbvio quem somos nós. -Justificou Loren, sacando as ataduras do cinto, para preparar um curativo rápido em Zaji. -E eu também comprei adagas novas, logo… -Admitiu, envergonhado.

-Não há problema em ter comprado as adagas. –O moreno estendeu o braço para o outro. -Não seria melhor lavarmos antes? Agora temos cinco cantis, de qualquer maneira.

-Mas aí teríamos mais chances de ficar até amanhã e comprar um mapa… Mas enfim, não dá pra consertar. -Murmurou o Loren, focando em como fariam a partir dali. -Melhor guardar os cantis para a viagem. Podemos nos lavar com o poço da cidade e dormir no deserto, próximos a alguma pedra novamente. -Sugeriu, medindo o comprimento da fita para o curativo.

-Parece bom. –Zaji disse, mais tranquilo.

Então foram até um dos vários poços da cidade, um mais afastado. A noite encobria-os perfeitamente, e os amigos passaram despercebidos pelas pessoas.

Depois de ter seu braço tratado, com certa dor, Zaji preparou as coisas para cuidar do ferimento de Loren.

-Você tem alguma outra camisa? Essa daí já era.

-Não, tinha na arena, apenas. -Respondeu o garoto. -Não quer que eu cuide? Acho que consigo passar as coisas com o braço bom. –Loren havia sugerido num tom neutro, mas tinha os músculos tensionados. Parecia desconfortável.

-Você disse a pouco tempo que não alcançava. –O moreno levantou uma sobrancelha, inquisitivo.

-É porque eu não conseguia tirar a flecha sozinho nem amarrar algo com uma mão só. -Justificou o garoto, ainda de costas para Zaji, visto que estavam prestes a lavar o ferimento dele.

-Hm. Ok. Se quiser fazer sozinho, eu vou só te passando as coisas e amarro no final. –O moreno disse, compreensivo.

-Beleza. -Respondeu o outro, sucinto. -Pode cortar apenas as ataduras ao redor do corte? -Ele pediu, tirando a camisa ensanguentada, deixando-a de molho no balde.

Após cortar as ataduras, Zaji estalou os dedos.

-Ah! Já sei! Loren, você poderia esperar aqui uns dois minutos?

-Claro, eu me viro. -Sorriu o outro, encorajando que o parceiro se distanciasse dele.

O escuro e o sangue da ferida escondiam a pele por baixo das ataduras, transformando tudo num grande borrão. Com um pouco de água, Loren começou a lavar a ferida, molhando as ataduras antigas, mas sem se dispor a retirá-las.

Com a permissão de Loren, Zaji simplesmente saiu correndo. Virou aqui e ali no escuro, chegando até a tropeçar uma vez. Mas achou o que procurava.

-Bingo! –Comemorou consigo mesmo.

Quando voltou para o amigo, segurava uma camisa limpa, da cor do céu.

-Ta-Dam! Uma camisa para o Furacão de Lâminas! Que tal? Acha que serve?

-Tudo serve em mim, Zaji. Olha o meu tamanho! -Riu o garoto, enquanto torcia desajeitadamente um dos seus panos. -Mas aonde conseguiu isso?

Terminando de limpar o ferimento, ele alcançou um unguento que havia comprado para ferimentos, e passou o creme pelo furo da flecha.

-Ah, sim! Talvez fique grande. -Zaji riu. -Bem… Eu catei de um varal que vi antes, ali atrás. E antes da sua conversa de "roubar é errado", saiba que eu deixei dois bronzes no bolso de uma das calças penduradas.

Quando se aproximou para deixar a camisa perto de Loren, Zaji reparou que ele não havia removido grande parte das velhas ataduras.

-Não vai tirar isso? Tá escuro, mas mesmo assim dá para ver que está um estrago…

-Melhor assim, quem sabe eu ainda não cresço? –O garoto disse, mas rindo de si mesmo, sabendo que ele não cresceria. -E isso não é conversa, é verdade! -Ralhou, rindo levemente da colocação do outro.

Contudo, o ombro bom voltou a tencionar com o moreno percebendo seu corpo.

-Não, é melhor não… Troco depois… -O de olhos amarelos respondeu, virando para a camisa que Zaji havia trazido, colocando o tórax na parte mais escura do ambiente.

-Ei… Certo, faça como quiser. -Zaji bufou, aborrecido. Loren era teimoso como uma mula. Não valia a pena discutir, agora que teriam que gastar suas energias para sair daquela cidade.

-Vamos?

-Sim, só um minuto… -Pediu o outro, enquanto se retorcia tentando colocar as novas ataduras por cima das velhas, mas elas ficaram meio frouxas. -Pode apertar pra mim? -Pediu, meio a contragosto de si mesmo, mas pediu.

-Claro. -Zaji fez o trabalho com uma leveza que não combinavam com ele. Quando parou oara ver se havia ficado bom, decidiu perguntar. -Escuta, Loren, por que parece que você chupou limão toda a vez que tem que pedir ajuda? Me desculpe se a comparação foi um lixo, mas passou essa impressão.

As ataduras haviam ficado firmes, então ele se afastou, arrumando as coisas para a partida.

O guerreiro de sabre terminou o 'remendo' de modo tão leve que Loren só percebeu que o outro tinha terminado quando ele fez aquela pergunta. Ele teria rido se não estivesse tenso.

-Não, o problema não é a ajuda, eu gosto de ajudar e não vejo problema em ser ajudado. -Ele explicou, natural, enquanto vestia a camisa que o outro havia lhe 'comprado'. - São as ataduras. E o tórax. Eles… Me incomodam. -Tentou responder, sucinto. A pouca luz da lua mostrava que ele parecia mais vermelho, de nervoso.

-Entendi. Mas sabe, uma hora você vai ter que trocar isso. -Após terminar de guardar as coisas e constatar que Loren estava pronto, Zaji saiu andando sem nem chamá-lo. -Nós podíamos roubar uns camelos… Ou cavalos. Né?

-Eu sei disso. Mas primeiro, chegar numa nova cidade. -O garoto disse, decidido.

Depois de guardar seus panos e a camisa ensanguentada, ele correu para seguir caminho ao lado de Zaji.

-É mais fácil alugar. E não é nem pela parte de roubar, e sim pelo extra de ração e água para o cavalo. –Ponderou, ajeitando a camisa, que ficou um pouco grande, mas não muito; confortável.

-Nah, a gente rouba a ração também. Água eu posso ir tirando de cactos.

Zaji sorria, porque havia achado uma solução e também porque havia contornado as desculpas de Loren.

-Além do mais… -Seu sorriso sumiu. -Ninguém vai querer alugar uma casa para as pessoas que são a causa de no mínimo cinco estabelecimentos em chamas. Você viu, não viu? Quando estamos nos telhados. Aquelas casas queimando. Então… Não dá.

Loren abriu a boca para retrucar, mas acabou se calando. Zaji estava certo. Ele fez um bico e começou a socar o outro, de leve:

-Aaaah, seu malandro, você quer é roubar que eu sei! É erraaaaado! - Disse, fazendo manha. - Mas, acho que não temos escolha. Eu ajudo. Mas vamos deixar moedas no lugar! -Ele exigiu, rindo enquanto tentava irritar o outro.

-Você não vai conseguir me irritar, seu crianção. Um braço tá socando mais fraco que outro! -Zaji deu um tapa na cabeça de Loren, de leve. Depois, começou a andar mais devagar, pensando. -Não temos dinheiro suficiente para pagar por esse animais.

-Ahá! Você quer meeesmo roubar! -Exclamou o garoto, de olhos arregalados, mas sem parar de dar soquinhos no moreno. -Pelo menos deixamos algumas moedas. Ou pegamos um só. –Sugeriu, tentando tornar o roubo o mais honesto possível.

-Loren, você entende a nossa condição?! Somos fugitivos! Não podemos sair distribuindo o dinheiro, porque um mercador rico qualquer vai sair no prejuízo! Eu só botei dinheiro naquele varal porque era uma casa pobre. Nada mais. Não foi por honestidade. -Zaji fez uma cara emburrada e passou a andar mais rapidamente

-É por entender que eu não queria roubar nem nada similar. -Respondeu o moleque, parando de socar o guerreiro, estacando no lugar. -Imagine se nos reconhecem e começam a espalhar nossos retratos pelas cidades no caminho. Seríamos impedidos de nos reabastecer e dormir numa pousada propriamente. E com os dois feridos, quanto mais descanso, melhor. -Justificou, calmo. - Eu também queria um cavalo ou um camelo ao invés de ir andando, mas o método é mais seguro.

-Ninguém vai nos ver roubando. E a atividade dos caçadores é ilegal. Eles não podem espalhar retratos. Não tem brecha, Loren. Você sabe que é melhor assim.

-Mas eles podem nos acusar, já devem estar com raiva de nós! E eles tem dinheiro para sair perguntando por aí! E… -Loren não parava de dar motivos para culpar o roubo, como uma mãe faria.

Talvez fosse melhor apenas agir. Ou roubar algo dele. Algo que o fizesse andar e parar de protestar tanto.

O moreno não conseguia entender para que tanto receio em roubar. Um animal ou dois não fariam nenhuma diferença para um mercador importante. E eles já estavam sendo caçados de qualquer maneira.

-Se você não quiser ir comigo, tudo bem. A decisão não depende de mim. Eu vou roubar e eu vou embora. -Disse, simplesmente.

-Não! - o garoto exclamou, a voz dando um falsete enquanto ele andava um passo para a frente. Depois, endireitou-se, decidido. -Eu vou com você, custe o que custar. -Os olhos amarelos faiscaram e ele marchou ao lado do outro, acompanhando seus passos.

-Acho ótimo. -Por dentro, Zaji ria da sua chantagem.

Depois de "concordarem" com alguma coisa, andaram até um dos vários estábulos nos portões da cidade.

-Camelos armazenam água… -Zaji pesava alto. -E aguentam o calor… Mas não são tão rápidos quanto cavalos… Mas eles não aguentam tanto o calor e precisam de mais água… O deserto não vai ter poucos cactos por aqui, estamos muito ao norte… Han… Bom, isso é uma fuga afinal. Cavalos.

Virou-se para Loren, contente com a sua decisão.

-Que cor você vai querer?

Chegando aos estábulos, Loren começou a observar os animais, de cores e tamanhos diferentes. Fez carinho na cabeça de um grande, negro, enquanto procurava um para si.

No canto, havia uma égua branca com uma enorme cicatriz rosa, vertical, que seguia a coluna dela. Loren chegou até ela, calmamente, e estendeu a mão para a égua. O animal encostou a cabeça na sua palma e o de olhos amarelos começou a fazer carinho.

-Posso pegar essa aqui? - perguntou, abraçando a cabeça da égua.

-Nós vamos roubá-los, Loren. Você pode pegar qual você quiser.

-Não precisa jogar a palavra na cara! -Reclamou o outro, enquanto tirava a égua da baia. Ela era mansa e respondia aos comandos do moleque facilmente.

Zaji andou até o negro que Loren havia afagado, ignorando os protestos do garoto. O cavalo relinchou e afastou-se da portinhola de sua coxia.

-Vem cá. –O moreno chamou, baixinho.

O cavalo não reagiu. O menino abaixou-se e pegou um pouco de feno que havia no chão, esticando o ramo pela portinhola.

-Vem cá. -Disse novamente.

Dessa vez, o cavalo se aproximou e aceitou a mão de Zaji enquanto comia.

-Eu vou levar esse.

Selaram os animais, penduraram sacos de ração nas selas e também a bolsa. E partiram, sem deixar nenhuma moeda para o mercador.

Loren foi o último a sair do estábulo. Sendo assim, ele remexeu os bolsos, revelando algumas moedas de prata que tinham sido o troco da compra das adagas e jogou-as no chão do estábulo, saindo em trote atrás de Zaji.