Prólogo – O Assalto

Semanas atrás...

Um rato perambulava sob a discreta lua nova, suas patas quase inaudíveis contra o chão calçado com pedras. Ele procurava por comida, o que não era uma tarefa muito difícil. Nas ruas de Lut Gholein, muitos comerciantes digladiavam-se diariamente por um bom lugar para expor seus produtos, e restos sempre permaneciam após suas partidas.

Era impressionante como a praga dos roedores acompanhava a humanidade. Aquela cidade fora construída sobre resquícios de templos Kehjistani em um pequeno oásis à beira mar... rodeada apenas por ruínas, água salgada e quentes areias do Deserto de Aranoch. Eram raros os ratos pelo lugar quando a cidade era pequena. Mas logo que se tornou uma grande cidade portuária, importante para todo o ocidente dos Mares Gêmeos¹, os navios trouxeram aquela e outras pragas urbanas.

O céu estava limpo e as estrelas brilhavam forte acima. Além da iluminação natural, várias lamparinas espalhadas ao longo das vielas permitiam ver a grandeza da cidade: grandes casas de madeira e pedra, algumas de vários andares, enfileiravam-se no terreno plano de ambos os lados até onde os olhos podiam ver. Não que o rato se importasse com isso, é claro, afinal ele buscava apenas migalhas de pão ou alguns grãos para saciar a fome.

O pequeno animal correu para debaixo de alguns panos, rastreando alguma comida. Os pêlos de suas costas se roçavam contra o tecido enquanto ele penetrava cada vez mais na bagunça de panos, certo de que seu faro não o enganaria dessa vez. Poucas farejadas depois, ele finalmente conseguiu. Exalando um cheio forte, um pedaço de bolo de milho surgiu a sua frente. Era muito grande, entretanto. Comê-lo ali poderia ser arriscado, já que outro animal poderia chegar durante o ato. Seria melhor arrastá-lo para sua toca, que ficava há alguns metros dali, e dividir com seus filhotes.

Mordendo e agarrando o pedaço de bolo com suas patas dianteiras, o roedor arrastava lentamente a comida para fora do amontoado de panos. O caminho era tortuoso, mas uma ligeira corrente de ar guiava o animal para o lugar certo. Com esforço, ele finalmente conseguiu alcançar a liberdade...

Mas algo o tirou do chão. Agarrara-lhe pela cauda, e o levantava cada vez mais alto. Debatendo-se, o animal soltara o bolo e tentava morder o que havia lhe pegado, mas no final não obteve sucesso. O pequeno roedor sentiu, certamente, que aquela seria a sua última noite: algo o apertou forte, cravando dentes afiados em seu corpo, arrebentando sua pele e rasgando sua carne, e logo em seguida o tragando para dentro de sua garganta.

— Deixe disso, idiota! – disse uma voz feminina — E fique quieto!

A voz saíra da boca de uma figura totalmente trajada em negro, com mantos e capuzes ocultando todo o corpo. Outras duas figuras acompanhavam a primeira, uma sendo aparentemente uma mulher e a outra um homem, diziam os seus portes físicos.

— Rrrqui! Desssculpaa... – grunhiu o ser que havia devorado o rato. Ele era pequeno, cerca de um metro e vinte, e tinha uma pele vermelho-escura. Duas orelhas pontudas projetavam de uma cabeça desfigurada, e pequenos, porém musculosos, braços e pernas saíam de um corpo esbelto e torto. Com os afiados dentes agora avermelhados com o sangue do roedor, a criatura passou uma língua grossa para lamber os respingos nos lábios.

Estava muito frio, mas eles não pareciam se preocupar com o fato. Movendo-se sorrateiramente, as quatro figuras foram em direção a uma rua perpendicular a que estavam, virando a direita assim que a alcançaram. Apenas mais algumas curvas e, logo, o local que eles buscavam se tornou estonteantemente visível.

Um imenso palácio, totalmente construído com tijolos coloridos, estava logo à frente. Era uma visão arrebatadora, que os paralisou por alguns momentos. Uma grande abóbada dourada, como um pingo de ouro fundido, permanecia no topo da construção, tornando-a certamente o maior e mais bonito monumento da cidade.

— Aqui estamos... – murmurou a voz feminina de antes — Agora, todos ao trabalho!

Os três humanos se dividiram, deixando o pequeno demônio oculto nas sombras da rua. Uma das figuras, a outra mulher, escalou e subiu em uma casa do lado oposto ao palácio, habilmente passando de telhado em telhado, descendo apenas quando já estava longe. A líder, que dera a ordem inicial, subiu em uma casa do mesmo lado do palácio, enquanto sua companheira fazia o mesmo, a dezenas de metros dali. Então, foi a vez do homem agir.

Caminhando normalmente, a figura encapuzada foi em direção à monumental construção, avançando sobre a larga rua, bem diferente das outras vielas pelas quais haviam passado. Com passos leves, ele chegou e parou em frente à entrada principal. Sem desocultar seu rosto, ele direcionou a cabeça para o palácio.

Era realmente maravilhoso. O portal era muito largo e de um formato peculiar, que se estreitava à medida que chegava ao topo. Detalhes em ouro eram visíveis, e até algumas pedras preciosas podiam ser percebidas do lado de dentro do saguão de entrada. Muito rico e bem-trabalhado, sem dúvida, mas isso não era importante. Eram os dois guardas que lhe interessavam. Dois homens, bem preparados com lanças afiadas e grossas armaduras reluzentes. Eles logo notaram a presença do homem de negro, parado à porta do edifício que deviam proteger.

— Ei, o que quer? – gritou um deles, ambos com as lanças cruzadas, barrando a entrada.

A figura apenas abriu os braços depressa, colocando-os na altura de seus ombros; os guardas logo se puseram em alerta máxima. Lentamente, o homem foi abaixando seus membros, seguido por um olhar atendo dos guardas. Quando os braços encontraram-se com o corpo novamente, a atenção dos soldados deveria estar voltada para outro lugar.

Com um tilintar, dois pequenos objetos caíram exatamente ao mesmo tempo sobre os elmos dos vigias. Antes que pudessem ter qualquer reação, eles caíram ao chão, tremendo, suas línguas para fora como se em convulsão. Sem hesitação, duas sombras negras caíram sobre eles, e um único som limpo de lâmina contra osso foi ouvido.

Colocando-se ereta, a líder apontou para dentro do palácio, dando os primeiros passos através da entrada. Seguindo a ordem silenciosa, sua companheira entrou como um raio no saguão de entrada, iluminado por várias lamparinas e decorados com plantas e alguns bancos brilhantes. O homem encapuzado, caminhando devagar, tomava cuidado para não pisar no sangue que escorria das gargantas dos homens caídos. Ele avançou até o portal. Uma vez sob o arco, voltou-se novamente para fora.

Com um suspiro profundo, ele estendeu os braços para frente, tremendo um pouco. Após algumas palavras quase inaudíveis, ele cambaleou para trás, observado com aprovação pela líder trajada em negro. Ela sorriu por debaixo do capuz, e então levou a mão ao ombro do companheiro, que logo se juntou às mulheres. Segundos depois, o pequeno demônio alcançou a entrada do palácio... sendo seguido por dezenas de outras criaturas da sua espécie.

— Vocês sabem o que fazer. – disse a chefe, olhando severamente para os outros — Sigam diretamente para onde devem ir. Não façam desvios... e matem todos que encontrarem. Aguardarei ansiosamente.

Com um aceno de cabeça, a outra mulher se dirigiu para frente da porta, seguida dos demônios e do companheiro. Enquanto a líder saía do local, a outra figura feminina forçava a fechadura da enorme porta, enquanto o homem balançava suas mãos para o alto, murmurando estranhas palavras. Em apenas alguns segundos a porta já estava aberta.

— Falhem, e não precisam voltar vivos – murmurou a outra para si mesma, já sobre uma casa próxima ao palácio.

Ela abaixou a cabeça por alguns instantes, refletindo sobre o que dependia dessa missão. Era muito. O que estava em jogo que mais a preocupava, claro, era a sua própria cabeça.

Mas ela nem teve muito tempo para pensar a respeito. Minutos depois, saíam pela porta da frente o casal. Observou também que a maioria das criaturas também havia conseguido sair com vida, mas a importância desse detalhe era mínima: logo eles seriam desconjurados de qualquer maneira. Notou, finalmente, que o feitiço lançado por seu subordinado obteve sucesso. Ela não ouvira som algum, com exceção de algumas aves no prédio ao lado.

Com alguns saltos e acrobacias, a mulher que havia saído do palácio ajudou o companheiro e logo eles alcançaram o telhado da casa sobre a qual a líder estava sentada. O coração desta disparou quando viu as mãos dos cúmplices vazias, mas o homem puxou algo de dentro de sua manta negra.

E com um sorriso oculto, ela se manifestou. Estava lá, diante de seus olhos. Estava lá. Olhando para o objeto, ela via a si mesma. Via seu próprio rosto escondido. E esperava logo ver outros... rostos muito mais poderosos.


¹ Nota: "Mares Gêmeos"; no original, "Twin Seas".