Prólogo
A tempestade caía lá fora. As grossas gotas de chuva batiam na janela de vidro da casa dos Chers com uma fúria desconhecida, com a qual Celina parecia não se importar.
- Se você sair por aquela porta, esqueça que tem família, me entendeu?
- Não me importo, ouviu? Eu não me importo!
- Tudo bem. Responda-me uma pequena perguntinha: como você pensa em ir para Londres, garota?
- Não lhe interessa!
- Não fale assim comigo! Sou sua mãe e você me deve respeito!
- Pois continue se gabando de ser uma mãe tão boa. Nem para dizer a sua filha que é bruxa? Nem para contar que eu poderia estar em Londres, numa das melhores escolas de Magia? Nem para dizer que eu, eu aqui, tenho sangue puro? Tratando-me como trouxa por 14 anos? Que espécie de mãe você é?
- Você não sabe os motivos que me levaram a fazer isso! Não tem nenhum direito de me julgar assim!
- Não me interessa sabe-los. Você sabe que eu desejo estudar no Reino Unido desde meus nove anos, e não, nem se deu ao trabalho de me contar que eu já poderia ter ido!
- Não vamos discutir nada! Você não põe os pés fora desta casa!
Celina bufou, mas não respondeu, continuando a atirar suas roupas para dentro da enorme mala de rodinhas. Rebecca, sua mãe, morava há 18 anos no Brasil, e nunca se dera ao trabalho de contar à sua única filha mulher, o porquê de seu sotaque inglês. Rebecca era inglesa de nascença, assim como Paul, seu marido. Eram bruxos de sangue puro, mas viviam como trouxas em uma pequena cidadezinha de interior. Celina tinha dois irmãos menores: Anna, onze anos; Herbert, oito; Há tempos colocara na cabeça a idéia fixa de estudar em Londres através de um intercâmbio, mesmo não sabendo muita coisa do inglês. Soubera da verdade por um descuido de seu pai, que chegou em casa um dia reclamando e gritando a plenos pulmões: "Ah, se eu tivesse minha varinha! Querida – falou, não percebendo os olhos arregalados dos filhos - o que fizemos com elas?".
Rebecca soltou um muxoxo, repreendendo o marido com o olhar. Mas o estrago já estava feito, e a única saída foi contar aos filhos o passado.
A partir daquele dia a garota mudara de 'mal humorada' para 'detestavelmente respondona'. Celina era o que poderíamos chamar de normal, nos padrões dos trouxas, claro.
Perdida em seus pensamentos, Celina sentou-se na borda de sua cama de casal. A mãe já havia saído. Sentiria falta de seu quarto. As coisas que ela pôde carregar ela enfiou na mala de rodinhas junto com praticamente todas as roupas de seu guarda roupas, inclusive as de verão. Pegou todos os cds que encontrou e seu lapotop. Tirou do armário uma malinha, onde as coisas mais urgentes poderiam ficar.
Olhou tristemente para estante, e rodou os olhos por todo o seu quarto. De repente, lembrou-se: não tinha pego seus tênis! Apressou-se em encontrar os pares de tênis, colocando-os na mochila. Puxou seu travesseiro da cama e resolveu deixa-lo ali. Fechou a mala de rodinhas, passou a mão na malinha e colocou a mochila nas costas.
Saiu sorrateiramente pelo corredor, e desceu cada coisa de uma vez, o mais depressa que conseguiu. Escondeu as malas sob a escada, e seguiu para a cozinha como quem não quer nada, mas, ao invés de virar à direita, entrou no primeiro quarto à esquerda, torcendo para ninguém pegá-la ali. Olhou todo o quarto, estudando-o. Uma cama de casal ao centro, um armário encostado na parede, um espelho, uma porta que levava ao banheiro e, um quadro anormalmente grande de dois cavalos. Andou até ele e moveu-o com cuidado. Atrás do que parecia ser uma parede de tijolos pintada de branco, Celina olhou mais para o chão, para o rodapé de madeira. Abaixou-se o suficiente para bater em toda a extensão do rodapé, até encontrar uma parte oca. Delicadamente retirou o pedaço de madeira solto, colocando a mão dentro de um pequeno buraco. Removeu o conteúdo envolto em um pano roxo escuro, colocando-o no bolso. Recolocou o quadro no lugar, saindo do quarto rapidamente. Desta vez, seguiu para a cozinha, dirigindo-se à garagem. Analisou o jardim, olhando as flores, semidestruídas pela tempestade, resumida agora em uma leve garoa. Seguiu para perto do canil, onde Billy, um poodle branco, saltitava.
- Psiu! – Disse Celina ao cachorro.
Abriu a portinhola da casinha, recolhendo rapidamente os potes de comida e água, passando a mão em um pacote de ração. Pegou também a guia, e uma pequena almofada. Guardou tudo no tanque, em um lugar escuro, onde certamente ninguém notaria.
Entrou novamente na cozinha, indo para o corredor que dava direção às escadas para o segundo piso da casa, mas algo (ou alguém) a fez parar:
- Aonde pensa que vai mocinha? – Disse Rebecca, cruzando os braços.
- Ao meu quarto, porque? – Retrucou Celina, cerrando os olhos.
- Nem pense em sair por aquela porta, ouviu? – Desafiou.
- Não, é claro que não! Eu vou dormir, em meu quarto.- Respondeu Ceci, fazendo cara de inocente, e seguindo às escadas, após olhar discretamente em direção às bagagens.
Subiu-as, passando pelos quartos dos irmãos, e entrando no seu, trancando a porta com a chave. Deitou-se na cama de roupa, agora só restava esperar.
Matutou mais uma vez seu plano:
"Assim que o relógio apitar três horas, eu abro a porta do quarto e desço até as escadas, pego as malas e passo-as pela porta da frente. Subo novamente, tranco a porta por dentro e desço pela janela. Corro até a garagem, pego as coisas de Billy e soco-as na mochila. Pego Billy e coloco-o dentro da maleta, abro o portão eletrônico e, então, oh, sim, o táxi estará me esperando".
Celina não contava que fosse adormecer. Ela estava em um campo, mas um barulhinho muito incomodo retirava sua atenção, diabos de barulho! Abriu os olhos lentamente procurando acostumar-se com a escuridão. Levantou-se. Abriu a janela o mais cuidadosamente possível. Mirou o céu negro e a lua a brilhar. Pensou em algo que a deixaria realmente furiosa, sorrindo satisfeita ao perceber as densas nuvens e os grossos pingos de chuva. Um raio cortou o céu, logo após, um trovão encheu a madrugada com estrondoso escândalo. Celina torceu seus lábios no que pareceu ser um sorriso desdenhoso. Como é bom fazer chover a hora que quer não? Tirou a cabeça da janela, voltando toda a sua atenção à porta do quarto. Abriu-a, não se preocupando com os ruídos, abafados pelos trovões. Caminhou pela escuridão do corredor encontrou a porta que dava à sala de televisão. Chegou à escada, desceu-a rapidamente. Passou a mão na enorme mala de rodinhas, conduzindo-a a porta da frente, encontrada logo ali. Virou a chave e abriu-a. Colocou a mala do lado de fora, voltou-se para pegar a mochila e a maleta. Entrou novamente, dessa vez, trancando a porta e subindo as escadas muito depressa. Entrou em seu quarto ofegante e por fim trancou a porta do mesmo. Agora vinha a parte difícil. Chegou em frente à janela tentando evitar a vertigem. Colocou os pés para o lado de fora, equilibrando-se no parapeito. Engoliu o vômito preso em sua garganta e pulou. Caiu com um baque surdo, abafado apenas pelos trovões que ainda ecoavam. Levantou-se, contornou a casa e seguiu para a garagem onde rapidamente catou as coisas de seu cachorro. Voltou correndo e meteu-as na mochila. Correu até o canil e pegou o cãozinho amedrontado pela chuva. Colocou-o na maleta, deixando uma fresta aberta, para ele poder respirar. Abriu o portão eletrônico e começou a arrastar a mala para fora, com a mochila nas costas e carregando a maleta. Sorriu assim que avistou o táxi parado em frente. O motorista correu para ajuda-la, guardando a mala no bagageiro. Celina abriu a porta e sentou-se no banco traseiro pensando no problema de sua mãe: ela era incrivelmente ingênua. Deu uma olhada rápida para a casa e mandou o motorista pisar fundo.
Ela só não percebeu sua mãe parada na janela da sala de televisão, olhando o carro partir.
A chuva havia parado misteriosamente tornando o céu limpo.
