Fora apenas um vez. Uma única vez. Da qual me envergonho tão amargamente que as vezes desejo não ser imortal. Lembro-me como se fosse ontem. Era primavera. O vento sacudia as flores e as folhas das árvores de manhã. Sentia os meus pés dançando sobre a s folhas no chão, e ouvia as risadas das ninfas, e o barulho de uma cachoeira que alí perto ficava.

Minhas caçadoras estavam longe. Ainda repousavam em sono profundo quando saí para dar uma volta na floresta. As estrelas desapareciam lentamente, sendo substituídas pelos primeiros raios de sol do amanhecer. Pensei em meu irmão. Era ele quem conduzia o sol naquele terno momento. Virei-me em direção ao vento, deixando meus cabelos esvoaçarem,e fechei os olhos. Esta era mais uma manhã dentre todas que eu vivi e viveria no futuro. Esta era uma das desvantagens da imortalidade. Você não aproveita o tempo, sabendo que o terá para toda a eternidade.

Abri os olhos imediatamente. Algo se aproximava. Peguei meu arco prateado e apontei para a direção da onde o som parecia vir.

Depois de alguns segundos eu o vi.

Minha expressão suavizou.

Todo o meu corpo fez questão de que eu abaixasse o arco.

E até hoje, eu não sei porque.

Meu coração bateu, acelerado, mais rápido do que nunca havia ficado.

Vi seus cabelos pretos e desarrumados, seus olhos brilhantes e esperançosos, pela primeira vez.

Vi o seu abdôme definido e os músculos saltando para fora da pele.

Normalmente, em um caso desses, eu sentiria repugnância ao encontrar um homem, mas dessa vez, foi diferente.

Todo o meu corpo tremeu, minha cabeça deu voltas, como nunca havia dado antes.

Quando ele me viu, apontando o meu arco para ele, ele parou.

Me encarou com aqueles olhos brilhantes e ficou parado, no mesmo lugar.

Até que reuni coragem para falar-lhe:

- Que fazes aqui, homem, na floresta em plena madrugada?

- Estou perdido - respondeu ele em tom calmo, a voz sedosa deliciando os meus ouvidos.

- Como chama-te? - perguntei.

- Eu sou Órion. - respondeu - Vim de Mecênia. Estava indo para Esparta para buscar a minha noiva prometida.

- Já a vistes? - perguntei.

- Não. - disse ele - Mas é o desejo de meu pai.

-És tão jovem… - disse, aproximando-me por impulso.

Não percebi, mas já havia baixado o arco.

- Se eu não me casasse agora - disse ele - Minha noiva não estaria mais disponível quando eu tivesse a idade certa.

Eu fiquei em silêncio, encarando de súbito,o rapaz em minha frente.

- E você, bela donzela - disse ele, se aproximando também - Como chamas?

Me afastei .

Não sabia se contava-lhe a verdade. Se eu contasse, ele provavelmente não seria o mesmo ao falar comigo.

- A… - disse eu - Adromáce. - Eu escolhi o nome sabendo que ele significa "a que combate com homens" , para não dar nenhuma pista.

- Lindo nome. - disse ele - Então Adromáce, da onde vens?

- Venho… - disse eu - … de Mégara.

- Mégara. - disse ele - E o que fazes aqui tão longe?

- Eu… também estou perdida.-disse eu.

Ele olhou para as minhas mãos.

- E este arco preteado? - perguntou, curioso - Onde arranjou-o?

- Foi presente de uma deusa.- disse eu -Já que estou perdida na floresta, ela deu-me o arco para eu me defender.

Seus olhos brilharam.

- Verdade? A deusa deve gostar mesmo de você. É Ártemis?

Senti arrepios ao ouví-lo pronunciar o meu nome.

- Sim - disse levantando a cabeça, orgulhosamente - Ártemis me deu esse arco.

- Excelente. -disse ele, sorrindo - Então, Adromáce, está com fome?

- Bem… sim. - disse eu.

- Nós podemos ir pegar umas frutas, para comer como desjejum. - disse ele.

Eu não devia aceitar. Ele era um homem. E eu tenho voto de castidade, devia voltar agora mesmo para as minhas caçadoras. Mas eu precisava desfrutar cada segundo que eu tinha com ele. Simplesmente eu precisava. Ele parecia uma obseção.

Fora por isso, talvez, que eu aceitei o seu convite.

Caminhamos e colhemos algumas frutas, e eu, fazendo o máximo para ignorar as curiosas ninfas que as vezes saiam de sua árvores, e tentando deixar claro que, se elas contassem o que viram para alguém, eu iria usar todo o meu poder de deusa para destruí-las.

Colhemos algumas frutas e sentamos na borda de um riacho.

Ele pegou uma faca e descascou uma fruta, dando-a para mim.

Eu lhe agradeci e dei uma mordida. Estava deliciosa.

Ele olhou para os meus olhos e disse:

- Quão lindos são os seus olhos de lua.

-Obrigada - agradeci, compenetrada no seu olhar.

Ele pegou uma fruta e mordeu.

Botei a ponta do meu pé na água. Não estava muito gelada.

- Sabe… - disse ele - Eu não queria ir para Esparta para me casar com essa mulher que eu nem conheço. Eu preferiria ficar aqui, comendo frutas com você…

Eu sorri.

- Você vai fazer isso só por que é o desejo de seu pai?

-É… - disse ele - Ele me deserdaria se eu não o fizesse. Mas acho que nem a família da noiva gosta muito de mim. Não acham que um rapaz de dezoito anos possa cuidar bem da sua filha. Mas o meu pai é o mais rico das opções…

-Mas para que você precisaria de dinheiro se fosse ficar a vida toda na floresta, comendo frutas? - perguntei.

Ele sorriu.

- Essa é a grande pergunta. - disse ele.

- Sabe, - disse ele, depois de alguns segundos.- eu nunca conheci alguém como você. Para ti, é tudo tão simples…

- Mas quem disse que as coisas não são simples? - perguntei.

Ele deu um risinho.

- Os deuses, eu acho.

- Ártemis concordaria comigo. - disse eu.

-Ah, é? - sorriu ele. - E como você sabe?

Levantei-me e olhei para trás.

- Eu acho. - disse, antes de erguer as mãos e pular no riacho.

Senti a água envolvendo o meu corpo.

Nadei até a superfície e vi Orion de pé.

Ele tirou as sandálias e mergulhou também.

- A temperatura da água está agradável. - disse ele.

- Sim…-disse eu.

Submergi novamente e vi peixes coloridos nadando. Olhei para o lado e vi Órion submergido também.

Ele sorriu, fazendo bolhas de ar.

Olhei para o fundo do riacho e vi uma coisa brilhando.

Peguei a mão de Órion e nadei até a coisa.

Era um anel.

Peguei-o, e nadamos até a superfície.

-É um anel? - perguntou Órion.

-É o que parece. - disse eu, olhando o objeto com curiosidade.

Vi que tinha alguma coisa escrita na parte de dentro dele:

"Onde quer que seja, estarei ao seu lado".

- Há algo escrito - disse eu - "Onde quer que seja, estarei ao seu lado".

Ele franziu as sobrancelhas.

- Deve ser um anel de casamento. - disse ele.

Nadei até uma pedra e o coloquei lá.

- Então…-disse Órion, desviando o assunto - Como você foi parar nessa floresta?

-É…- disse eu, tentando desesperadamente pensar em algo - Eu fugi. Meus pais queriam que eu me casasse com um bruto de trinta e nove anos…

Ele pareceu surpreso.

- Você fugiu? Mesmo? - perguntou.

-Sim. - disse eu - Agora eu posso viver a minha vida.

Ele riu.

- E como você pretende fazer isso, minha bela? Sem dinheiro e nem nada.

- Não é preciso dinheiro para viver. - disse eu, torcendo o cabelo molhado.

Ele riu.

-Simples…- disse ele, boiando de costas.

- Como você teve tanta coragem? - perguntou, depois de alguns segundos.

- Como?- perguntei.

- Deve precisar de muita coragem para deixar a família e tudo o que você ama.- disse ele.

- Isso é o que eu amo - disse eu - a floresta. E afinal de contas, minha família nunca foi muito boa para mim.

- Não? - perguntou ele de sobrancelhas erguidas.

- Não - disse eu - Cheia de traições e inimizades… - e eu não estava mentindo.

- Oh… eu sinto muito… - disse ele.

- Tudo bem. - disse eu - É melhor assim.

Ele juntou as sobrancelhas e deu um risinho.

- E você e a sua família são muito unidos? - perguntei.

- Sim. - disse ele - Eu tenho três irmãs. Sou o único filho homem. Adoro a minha família.

-Que bom - disse eu.- É muita sorte.

-É… - disse ele, olhando para o céu. Nuvens escuras já começavam a vir.

- Como chamam-se as suas irmãs? - perguntei.

- A mais nova chama-se Adara, a do meio Helene e a mais velha Kalliope. - disse ele.

- Belos nomes - disse eu.

No segundo seguinte um trovão ribombou nos céus, fazendo com que o olhássemos espantados.

- Acho melhor sairmos da água - disse Órion.

Saímos da água e corremos para baixo das árvores antes que a chuva começasse a cair.

Logo depois que chegamos lá a chuva despencou.

-Acho que vamos ter que ficar aqui até a chuva parar.- disse ele.

Eu assenti.

Sentei-me encostada em uma pedra.

Órion sentou ao meu lado.

Suspirei e me abracei, tremendo de frio.

- Está com frio?- perguntou ele.

- Nã…não…- disse eu batendo os dentes.

Mas ele já tinha posto os braços em volta de mim, para fazer calor corporal.

E que calor!

Era a primeira vez que eu esperimentava essa sensação.

Ter o corpo de um homem abraçando o seu, você se sentindo tão segura que nada nesse mundo te faria ter medo. E olhando aqueles músculos e aquele abdôme definido.

Parece que nada no mundo te deixaria com medo.

" Oh, pare com isso, Ártemis! Não caía nessa tentação" - disse para mim mesma, na mente - " Esquecestes que és a deusa mais casta e pura?"

Mas eu não conseguia nem pensar em sair daqueles braços fortes.

- Melhor ?- perguntou ele.

- Simmm…-disse eu, fechando os olhos e me deliciando em seu abraço.

Ele sorriu.

Não sei quantos minutos se passaram depois disso, mas sei que depois de um tempo ele perguntou:

- Já passou o frio?

Abri os olhos.

Eu queria dizer que não mas em vez disso eu disse:

- Sim, obrigada. - e me desvencilhei de seu abraço.

- Não há de quê - disse ele.

- Você vai passar a vida toda nessa floresta? - perguntou ele.

- Eu… eu não sei - disse eu. Eu já estava a tempo demais com ele. Se minhas caçadoras já tivessem acordado, estariam me procurando agora. Mas partiríamos apenas no fim da tarde… - Acho que vou para outros lugares.

-Ah…

Outro trovão ribombou.

- Parece que Zeus está zangado - disse ele.

Eu ri.

-É…

- Sabe - disse ele- Quando eu era pequeno eu queria ser um grande guerreiro.

- E agora não quer mais? - perguntei.

- Não. - disse ele - Essas guerras são a coisa mais estúpida.

- Até que enfim um homem com bom senso. - disse eu.

Ele sorriu.

- Eu queria ser uma criança para sempre. - disse eu - Uma eterna donzela.

- Já sei porque Ártemis gosta tanto de você. - disse ele, com um sorriso.

Eu sorri de volta.

- Mas atualmente não tenho conseguido…

Ele riu.

- Claro. - disse ele -Todos crescemos, não importa se queremos ou não.

Mas não era disso que eu estava falando.

- É… - disse eu - Talvez…

Olhei para ele.

Mas o que Afrodite pensava que estava fazendo? Eu era imune ao seu poder. Pensei, talvez, que então não era Afrodite quem estava fazendo aquilo.

Desviei o olhar de seu rosto para a chuva.

De repente, deu-me vontade de dançar sobre ela.

Me levantei.

- Onde você vai? - perguntou Órion.

- Tomar um banho de chuva - disse eu.

Ele ficou me olhando enquanto eu caminhava até um ponto sem árvores.

Deixei a água da chuva molhar-me por completo.

Levantei a cabeça para a chuva.

Estiquei o meu pé como uma bailarina e levantei os braços graciosamente.

E então comecei a dançar o que hoje em dia chamariam de dança lírica.

Olhei para Órion uma vez e vi que ele me olhava atentamente.

Continuei dançando até que Órion se levantou e veio até mim.

Ele parou na minha frente e começou a dançar também.

Sorri para ele.

Ele sorriu de volta.

- Você dança muito bem - disse ele, após alguns segundos dançando comigo.

- Obrigada - sorri.

Estava tudo tão perfeito. A chuva caía em nossos corpos que se movimentavam em sintonia.

Eu sorria, com o cabelo molhado no rosto, olhando nos lindos olhos de Órion.

Até que, depois de dançarmos por alguns minutos parou, olhando para mim.

Levantei a cabeça, e vi o quanto estávamos próximos.

Meu coração ficou a mil por hora.

Ele afastou uma mecha de cabelo do meu rosto, colocando-a atrás da orelha. E ele estava olhando em meus olhos.

Era uma tentação não me esticar e beijá-lo nos lábios.

Mas felizmente eu nem precisei, pois ele o fez primeiro.

Foi uma sensação nova, maravilhosa, a melhor coisa do mundo.

Me deliciei em seus lábios e botei as mãos no seu pescoço.

Ele botou as suas em minha cintura.

Era tão bom… Mas o que eu estava fazendo? Imagine se as minha caçadoras me pegassem beijando Órion? Eu as proíbia da companhia dos homens mas eu mesma a desfrutava, sem nem mesmo elas saberem. Isso não era justo.

Parei o beijo.

- O que foi, minha bela? - perguntou ele naquela voz sedosa, parecendo um pouco magoado. - Você não…

- Não é isso. - disse eu - Vamos voltar para debaixo das árvores.

Peguei a sua mão e caminhamos juntos até as árvores. Nós nos sentamos, encostados na mesma pedra de antes.

- Eu preciso… te dizer uma coisa - disse eu, nervosa.

- Claro - sorriu ele - Qualquer coisa.

Respirei fundo.

- Olha, eu não devia estar aqui. Não devia estar com você. Não fora Ártemis que me deu o meu arco. Quer dizer… Eu sou Ártemis. A deusa da caça da lua e das donzelas. Ou seja, tenho voto de castidade.

Ele me olhou boquiaberto, e tudo o que conseguiu dizer foi:

- Ma… ahn..ssá?

- Eu sei, mas por favor, peço que me perdoe, querido Órion. Eu sempre evitei os homens, mas com você… foi diferente. Eu me apaixonei no primeiro segundo em que vi você. E sou imune ao poder de Afrodite. Eu sinto muito por…

- Não, eu é que me desculpo. Desculpe senhorita Ártemis, eu não devia ter…

- Não foi sua culpa. - disse eu, já com os olhos cheios d´água. - Você não sabia.

- Eu peço perdão, senhorita. Mas eu não te incomodarei mais.

Aquilo me deixou em pânico. Eu não queria perdê-lo. E então, eu tomei uma decisão.

Ele já ia se levantar quando botei minha mão em seu braço e disse:

- Espere.

Ele virou para mim, cheio de esperança.

- Eu tenho voto de castidade. - disse eu - Mas eu o deixarei por você.

Seus olhos se arregalaram.

-É sério???- perguntou, a voz falhando com a felicidade anormal.

Olhei em seus olhos e disse, ternamente:

- Sim.

Ele pulou em cima de mim, dando-me um abraço de urso.

- Eu te amo, Ártemis - susurrou em meu ouvido.

- Eu também. - disse eu.

Então nossos lábios se encostaram e o mundo pareceu girar mais rápido.

Botei as mãos em seu pescoço, acariciando-lhe a nuca.

Ele puxou a minha perna para mais perto de si.

E aí foi quando eu, Ártemis, deusa da castidade, da lua e da caça, me apaixonei.