Sinopse: Conta a lenda que nas verdejantes planícies de Imitos existe um lugar sagrado, invisível a pessoas comuns. Um lugar protegido e de culto a Atena, deusa grega da sabedoria. Lugar que reúne os melhores guerreiros, com a finalidade de proteger a Terra e onde a cada ciclo de 300 anos é posta em marcha "o ciclo das existências".

Disclaimer: As personagens de Saint Seiya não me pertencem, mas sim Masami Kurumada e TOEI.

N/A: Esta fiction visa uma releitura pessoal da história original de Saint Seiya, na qual vão ser inseridos alguns personagens originais para o coerente desenrolar dos acontecimentos. Boa leitura...


SAMSÂRA


Tibete, região de Gartokh, 1959

Vento… frio… neve…

A desolação completa… nunca nada visto como tal. A única coisa que restava eram ruínas para contar, para relembrar que outrora ali existia uma pequena aldeia que se mantinha firme, sobrevivendo aos Invernos mais íngremes.

Imagens de um passado ainda não muito distante pairavam como um murmúrio longínquo tentado sobreviver à desolação.

Um rebanho… algumas poucas cabras saltitavam de volta de um pequeno grupo de crianças. Gargalhadas infantis eram levadas pelo vento ecoando pelos vales mais próximos. Os dias corriam serenos. Uma voz chamava por uma das miniaturas que brincava com os companheiros.

A criança prosseguiu brincando mais uns segundos antes de ser chamada de novo. Vendo que o caso era sério e que não iria escapar, parou a correria afoita e afastou-se do resto do grupo batendo o pé de forma pueril, demonstrando aborrecimento por ter sido tirado do local certo à hora errada. De vara na mão, juntou as poucas ovelhas que tinha para cuidar, assim como um pequeno cordeiro e seguiu caminho despedindo-se dos restantes.

Era o final do dia e consequentemente a hora da ceia. Os poucos raios de sol que ainda restavam caíam sobre algum lençóis brancos que secavam estendidos.

Uma lareira era acesa na pequena casa que se erguia em pedra e madeira; o pequeno correu na direcção onde o esperava um copo de leite de iaque assim como pão e tsampa. Para completar o todo, no centro da mesa, um prato cheio de pedaços de palev modelados de forma a parecerem pequenos cordeiros. Exactamente o que ele mais gostava.

A mãe visivelmente arrependida de o ter tirado a tamanha alegria de brincar com os seus, decidira por oferecer um mimo ao pequeno. Um sorriso de criança iluminava qualquer lugar, por mais obscuro que ele parecesse. As fases rosadas pelo frio avermelharam ainda mais por causa da alegria; os olhos verdes brilhavam como as mais belas estrelas da via láctea.

O último dia de vida daquela aldeia tinha passado como todos os outros… nada pareceu indicar nem avisar a tragedia que estava por vir.

A imponência chinesa não se satisfez com o muito que tinha. Tal um monstro levando pelo pecado da avareza, decidiu por roubar territórios alheios expandindo o país para as mais altas montanhas do Tibete. Nada os parava. Saqueavam todas as localidades menos importantes, acabando com todas as raças chamadas de 'inferiores'. A aldeia de Bamei foi uma das muitas infortunadas que teve o azar de estar na linha de rota das tropas chinesas. Em poucas horas, o local ao qual chamava de casa tinha desaparecido do mapa.

Erradicado por completo.

- Mais uma…

Dois comerciantes que passavam sempre por aquelas terras originários de Lhasa, depararam-se com mais uma aldeia desolada. Não entendiam como podiam ser capazes de tamanha barbaridade.

Desceram lentamente dos cavalos olhando o horror que se erguia diante dos seus olhos. O vento soprava calmamente levantando pequenas aragens de terra… o silencio era ensurdecedor… nem uma alma viva naquelas terras.

- Não é possível… já é a quarta que encontramos neste estado…

Avançaram com cautela pelas ruínas, tentando encontrar algo que os ajudasse a descobrir o que acontecera. Nada… apenas cadáveres, sangue e alguns pertences jaziam sobre a terra. Ambos os homens sentiram os olhos humedecerem com o quadro que se lhes era pintado.

- Temos de seguir caminho! – comentou o mais pratico dos dois. – Não tarda anoitece e temos de chegar à próxima aldeia o mais rapidamente possível… e pedir que essa ainda não tenha tido o mesmo fim.

- Sim… vamos.

Ambos regressaram aos respectivos cavalos, montando. Prontos para partir em direcção ao horizonte. Mas algo impediu um deles de avançar…

- O que foi?

- Há algo de errado… não me sinto em paz deixando este lugar assim…

Não querendo deixar o companheiro para trás, Lobsang permaneceu parado, esperando algum sinal do outro.

- Não ouve algo?

Lobsang permaneceu quieto durante alguns segundos, procurando ouvir o som citado por Mingyar. Um sussurro… algo que lhe parecia ser palavras murmuradas chegou aos seus ouvidos pelo sopro do vento. Assentiu para o companheiro, descendo novamente do cavalo.

Ambos seguiram a pequena voz que falava extremamente baixo. Apenas ouviam algumas palavras e sons.

"OM TA..E T…E … MAMA SARVA … RAKSHA … KURU S…"

À medida que pareciam se aproximar da voz, começavam a distinguir os sons proferidos. Ambos se entreolharam admirados com a voz pueril que citava uma Tara daquela forma continua… uma criança…

"OM TARE TUTARE TURE MAMA SARVA DIK DIK DIKSHENA RAKSHA RAKSHA KURU SOHA"

Lombsang engoliu seco esforçando-se a não deixar correr as lágrimas com o que via… uma pequena criança, não mais velho que oito primaveras, permanecia sentado no meio dos escombros. As pernas encolhidas, os braços abraçavam-nas protectoramente. As roupas rasgadas, algumas feridas eram visíveis na sua face, braços e pernas. A respiração acelerada. Tremia descontroladamente, os curtos cabelos de cor lavanda encontravam-se revoltos, as íris verdes mostravam um olhar ausente. Mirava o chão parecendo em transe…

- OM TARE TUTARE TURE MAMA SARVA DIK DIK DIKSHENA RAKSHA RAKSHA KURU SOHA… OM TARE TUTARE TURE MAMA SARVA DIK DIK DIKSHENA RAKSHA RAKSHA KURU SOHA…

As mesmas palavras eram repetidas vezes sem fim, como que para espantar as más lembranças.

Lombsang aproximou-se calmamente da pequena criança assustada, tentando não fazer movimentos demasiado bruscos. Sentou-se tranquilamente ao seu lado, revelando a sua presença para a pequena criatura.

- OM TARE TUTARE TURE MAMA SARVA DIK DIK DIKSHENA RAKSHA RAKSHA KURU SOHA… OM TARE TUTARE TURE MAMA SARVA DIK DIK DIKSHENA RAKSHA RAKSHA KURU SOHA…

Sentiu o coração apertar ao verificar o estado de choque em que a criança se encontrava… parecia que tudo tinha parado à sua volta. O olhar ausente mostrava que estava completamente desligado do mundo que o rodeava. Lombsang elevou a mão direita à altura do cimo da cabeça lavanda, pousando-a sobre ela delicadamente. Sempre atento às reacções do pequeno, tentou chamar a sua atenção para ele.

- Calma pequeno… ninguém lhe vai fazer mal…

À medida que falava, acariciava de leve os cabelos à altura da nuca. A criança não dava sinais de resposta.

- Como se chama?

Tentou mais uma vez, em vão. O choque traumático devia ter sido enorme. As únicas palavras que se ouviam da boca da criança mantinham-se as mesmas.

- OM TARE TUTARE TURE MAMA SARVA DIK DIK DIKSHENA RAKSHA RAKSHA KURU SOHA… OM TARE TUTARE TURE MAMA SARVA DIK DIK DIKSHENA RAKSHA RAKSHA KURU SOHA…

Olhou para o companheiro em tom interrogativo. Não sabia como lidar com aquele tipo de situações delicadas… sabia que qualquer passo em falso seria fatal para a saúde mental da criança.

Mingyar aproximou-se de ambos, olhando ternamente para o pequeno. Ali estava um exemplo de que a guerra não causava apenas morte física… mas também psicológica. Retirou a capa que o protegia do frio, pousando-a sobre a criança trémula. Assentiu para o companheiro.

Lobsang pegou na criança ao colo com todo o cuidado, enrolando-o com o longo manto de modo a que sentisse o menos frio possível.

Ambos subiram para o cavalo que os esperava, Lobsang agarrando firmemente mas carinhosamente na criança em seu colo, tentando passar a maior confiança possível.

Levariam a criança daquela sepultura colectiva. Levariam-na para um local seguro… longe daquela cordilheira montanhosa devastada pelo mal.

Os cavalos avançavam, afastando os dois homens da outrora aldeia Bamei. Apenas o barulho do trote dos cavalos era levado pelo vento… e um leve sussurro que recitava um mantra contra o mal que devorara aquela localidade…

OM TARE TUTARE TURE MAMA SARVA DIK DIK DIKSHENA RAKSHA

RAKSHA KURU SOHA…

-oOo-

Índia, região de Uttar Pradesh, Manikamika Ghat

O templo de Lakshmana era um dos lugares mais calmos dos arredores. Como todos os templos indianos, Lakshamana erguia-se num eixo este-oeste, alinhado com o sol nascente e poente, o que lhe proporcionava uma perfeita harmonia com o universo e transmitia ordem à comunidade.

Do longo caminho de terra batida que tinha de ser percorrido até ao pórtico que marcava a entrada da região sagrada, eram visíveis as duas torres principais, ricamente ornamentadas e esculpidas na pedra. Essas duas torres eram as coberturas da zona mais sagrada do templo. A garbhagriha, pequena sala escura onde se encontrava a estátua da divindade e a mandapa, sala onde se reuniam os fieis.

O enorme templo descansava no meio de um pequeno descampado, a sua presença era escondida por uma extensa vegetação assim com uma grande quantidade de árvores.

Apesar das inúmeras vezes que eram recolhidos naquele templo, Lobsang e Mingyar nunca deixaram de ficar impressionados a cada vez que chegavam. O lugar era possuidor de uma aura mística que fazia qualquer pessoa se sentir protegido.

Chegando ao pórtico, desceram dos cavalos com a criança, sendo prontamente recebidos por dois monges que os convidavam a entrar.

Lobsang elevava a criança adormecida nos seus braços, avançando calmamente pelo caminho que tão bem conhecia. Ao entrar no templo, uma enorme lufada de incenso queimado assolou-o. Inspirou fundo, sentindo a sua alma ser purificada. Fechou os olhos por alguns segundos, atento ao som grave das vozes que rezavam na mandapa. O som ecoava por todo o templo, elevando todos os presentes a um patamar espiritual alto.

Sentiu uma mão se poisar sobre o seu ombro amavelmente, tirando-o do transe. O monge que o guiava apercebera-se da sua ausência, e chamara-o à realidade. Ambos seguiram até um pequeno compartimento, sentando-se e esperando por alguém.

Uma grande concentração de monges enchia o local. Os saris laranjas e vermelhos iluminavam a sala. No meio de todos, uma pequena criatura se destacava dos restantes. A sua pele era clara, destacava-se ainda mais com o sari de cores tão vivas. Os cabelos de um loiro dourado chegavam aos seus ombros, uma pequena marca representando o chakra do terceiro olho pintada na sua testa era escondida pela farta franja. De olhos cerrados, recitava as preces como os adultos, as suas mãos agarrando firmemente um mala. (1)

Entreabriu um olho, observando o local que conhecia de cor. Assustou-se quando recebeu um leve tapa reprovador do monge à sua esquerda, voltando a fecha-lo instantaneamente.

Alguns tempos se passaram na mesma posição. Era penoso para uma criança permanecer sentada naquele estado recitando sempre a mesma coisa. O pequeno suspirou longamente antes de iniciar pela enésima vez o mesmo mantra. O monge do seu lado direito sentia o pequeno remexer-se já inquieto. Parou com a citação por uns momentos, abrindo os olhos e pousando a mão no ombro do pequeno.

- Pode parar Shakya… é demasiado para uma criança… vábrincar um pouco para o exterior!

A criança abriu os olhos, desvendando duas magnificas íris azuis de uma pureza desconcertante. Sorriu docemente para o mais velho, assentindo. Levantou-se calmamente, tentando fazer o mínimo barulho possível, evitando desconcentrar os restantes. Mal acabara de sair da mandapa, olhou em volta curioso, vendo se alguém estava presente. Silencio. Sorriu para si mesmo, começando uma correria louca pelos corredores, só parando diante da porta de madeira.

Fechada. Achou estranho, levantando uma sobrancelha.

Passou o mala pelo pescoço, fazendo dele um colar. Aproximou-se devagar da porta novamente, os olhos bem abertos, a língua de fora num gesto pueril que quem ia fazer uma travessura.

Encostou o ouvido à porta, tentando ouvir algo do que acontecia no interior do cómodo. Conseguia distinguir duas vozes diferentes. Fechou os olhos intuitivamente, tentando ouvir melhor o que diziam.

Reconheceu a voz de quem esperava chegar. Lobsang explicava algo ao monge Jathara, o guia espiritual do templo e o mais antigo também.

Falavam algo sobre uma aldeia. Shaka não conseguia ouvir tudo, mas entendia as palavras principais. Uma aldeia destruída. Uma criança sobrevivente nos escombros. De repente, ambos pararam de falar…

Espalmou-se mais na porta, tentando ouvir melhor. Nada. O que estariam a fazer no interior?

Levado pela curiosidade, baixou-se na beira da porta, olhando pelo buraco da fechadura. Conseguia ver um pouco das almofadas que permaneciam largadas no chão. Reconheceu Lobsang de costas. Sorriu.

Cada chegada de Lobsang era uma festa para o pequeno Shaka. Sempre lhe trazia uma ou outra prenda das aldeias por onde passava. As diversas viagens pelo Tibet faziam o pequeno loiro viajar por terras desconhecidas. Por isso gostava tanto da chegada dos dois comerciantes. Sempre ficavam uma noite ou duas no templo. Contava historias das diversas aldeias, cidades, as únicas noites em que Shaka adormecia e sonhava com o mundo exterior aos muros daquele lugar.

Sabia que Lobsang estava chegando… por isso a sua empolgação toda daquele dia.

Olhou melhor, conseguindo distinguir um corpo deitado ao lado do comerciante. Era pequeno… uma criança… não se mexia. Provavelmente estaria adormecido. Deslocou-se para o lado, olhando pelo buraco por um outro ângulo, numa tentativa de ver melhor quem era.

Sentiu o equilíbrio faltar-lhe, caindo de joelhos no chão. A porta tinha acabado de ser aberta. Shaka olhou surpreso o interior da salinha, fixando-se em Lobsang. Este ria calmamente da cena proporcionada pelo pequeno.

- Entre Shakya! Se queria tanto ter entrado podia ter batido… - O monge Jathara agarrava na maçaneta da porta, olhando-o inquisidor.

Shaka olhou trémulo nos olhos castanhos de Jathara, levantando-se e avançando lentamente para o interior. Suspirou fundo quando sentiu a mão do monge veterano acariciar o cimo da sua cabeça, num gesto que demonstrava que não estava zangado. Mostrou o seu enorme sorriso de criança para os dois homens, antes de avançar até às almofadas e abraçar com força o comerciante. Sentiu os seus cabelos serem acariciados pelo mesmo, num gesto carinhoso. Ao se afastar do mais velho, Shaka deparou-se com a figura adormecida de outra criança sobre as almofadas. Começou a aproximar-se, mas logo parou ao ouvir uma voz impedindo-o de continuar.

- Não Shakya! Você pode acordá-lo…

Shaka olhou interrogativo para Lobsang antes de falar baixo.

- É o meu presente?

Ambos os adultos calaram-se por uns instantes, chocados com a pergunta. Fora o monge quem quebrara o silencio, olhando-o ternamente. Sabia que era inocentemente que Shaka fizera a pergunta… a ingenuidade infantil levava a considerar um ser humano como algo a ser oferecido. Tomou a mão da pequena criança loira na sua, lavando-o ao corpo adormecido. Pousou-a no coração da criança. Shaka olhou interrogativo o veterano.

- Sente algo Shakya?

Shaka assentiu curioso.

- O que sente?

- O coração dele a bater…

O monge sorriu docemente, agachando-se à altura do pequeno.

- Essa criança é um ser vivo como você, como eu e como Lobsang. O que lhe ensinámos neste templo pequeno?

Shaka pareceu pensar durante uns segundos.

- Os seres vivos são livres e iguais. Não são objectos propriedades de ninguém. Não são vendidos ou trocados.

A voz saia calma, como se recitasse uma lição escolar. Jathara sorriu assentindo para a criança. Ambos afastaram as mãos, sentindo o pequeno adormecido se remexer.

- Acho melhor levá-lo para um lugar mais calmo… é essencial que descanse!

Lobsang pegou na criança ao colo, seguindo o monge pelos corredores. A pedido do veterano, Shaka instalou-se na pequena sala. Olhou em volta, as almofadas tão convidativas. Deitou-se onde minutos antes a criança de cabelos lavanda estivera adormecida. Cerrou os olhos, respirando fundo… Até aquele momento, ele era a criança mais nova no templo… será que o outro ficaria ali também? Ou simplesmente estava de passagem? Logo logo aquelas perguntas teriam uma resposta… o jeito era esperar que o veterano chegasse para explicar tudo…

...


"Tsampa e Palev": pratos de resistência do Tibete, feitos à base de farinha de cevada torada e endurecida, a que se junta chá quente com manteiga derretida, sal, bórax e manteiga de iaque, formando uma massa que pode ser modelada à vontade do consumidor.

"Jathara": Nome que significa 'Firme' em sânscrito.

1) "mala": rosário budista de 108 pérolas, usado para a recitação de mantras.


Agradecimentos: Primeiramente, a Deneb, minha beta do coração dessa fic, professora online de tibetano e sobretudo grande amiga que não deixou que a fic fosse abandonada.
A Athenas de Áries e Kamui, que acompanharam o inicio da fic, os surtos, as incertezas, e que sempre me incentivaram a continuar… obrigada lindas.
E por ultimo… mas não menos… Litha, desta vez pelos SEUS surtos, pelo comentário de incentivo pelo inicio da fic, e sobretudo por quase me esfolar viva se eu não a escrevesse.