CAPÍTULO 1
Sawyer estava de bom humor essa manhã.
Havia acordado com um súbito aroma de bacon frito com ovos no ar, o que o fez pensar nos primeiros segundos de consciência, qual mulher com quem ele passara a noite estava sendo caridosa o bastante pra lhe fazer o café da manhã. Nossa, ele deve ter sido ótimo...
Depois de alguns segundos mais, se lembrou, nenhuma garota.
O gordo, era ele, sem dúvida.
Estava demorando pra se acostumar com a idéia de estar dividindo o apartamento com Hurley.
Ele nunca fora um tipo muito sociável, pelo menos não depois da infância miserável que suportara depois que o pai matara a mãe e se suicidara bem diante de seus olhos, aos 8 anos. A partir de então passara a infância correndo de lar adotivo a lar adotivo, raivoso, silencioso e solitário.
Sua vida adulta não fora muito diferente, só que passara de lugar em lugar, de tentativa de emprego normal em tentativa, de golpes em golpes, de vigarices em vigarices. De apuros em apuros pela vida a fora.
Sem muita oportunidade de criar raízes ou laços firmes.
Mas o gordinho realmente entrara em sua vida, e ele estava numa fase mais desacelerada.
O trabalho de Tampa o deixara escaldado e ele resolveu dar um tempo. Que pesadelo aquilo tudo!
Esse último golpe tinha sido desastroso: perdera a grana, quase fora morto e a mulher também correra risco, o que era uma coisa que ele sempre fazia questão de evitar. Seus trambiques eram cuidadosamente planejados para se assegurar que nada de violento ocorresse.
Cara, tinha dado tudo errado!
Sawyer resolveu portanto, dar um tempo no Tennessee, nos parceiros, nos golpes, em Hibbs e na corja toda.
Quanto mais longe, melhor.
Decidiu viajar um pouco e passar um tempo na California, tirar umas férias.
Trambiqueiros também precisam de férias, relaxar, se reciclar...
Bem, sua vida dera uma guinada durante essa inocente viagem de férias e ele se sentira agradavelmente surpreendido.
O problema é que ele não acreditava em presentes que a vida dava.
Mas tudo bem, quando voltasse o pior de sua raiva e o desassosego habitual, aquela amizade toda iria fracassar, como tudo mais em sua vida.
Todo aquele castelinho de areia ia desabar e ele ia levantar acampamento.
Pelo menos era o que dizia a si mesmo.
Afinal, quanto tempo mais ia se aguentar em um emprego fixo? Trabalhando como todo mundo, assumindo responsabilidades, pagando contas e impostos e dividindo apê com amigo, se enturmando com vizinhos, feito gente normal?
Ah, ele nunca tinha sido normal. Incrível que esse interlúdio de normalidade já estivesse durando tantos meses.
Mas, enquanto ele mesmo não estragasse tudo, até que estava legal conviver com Hurley;
Hurley era sociável e tinha se enturmando rápido com os outros moradores do condomínio.
Especialmente o inglês baixinho, candidato a roqueiro.
"Alguém devia dizer a esse cara que não se faz carreira de músico enfiado em casa o dia todo." pensou Sawyer, desdenhosamente. "Tapado!"
- Ei, dude, o bacon tá pronto! - gritou Hurley da cozinha.
- Já estou indo, mamãe. - berrou Sawyer do banheiro.
- Ah, Sawyer, será que você podia levar o aluguel pro síndico essa quinzena? Ele me dá arrepios com o papo dele.
Hurley pensou nervosamente em Locke, o síndico que morava na cobertura.
O homem era muito estranho! Simpático, mas com aquela aura de guru no nirvana que intimidava Hurley. O pior é que Locke parecia saber coisas. Tocara em alguns pontos complicados da vida de Hurley e o pior, sabia de uma coisa de sua vida na qual ele não gostava de pensar.
Sawyer veio para cozinha e falou:
- Você não devia levar Mr. Clean tão a sério, ele só deve estar usando muito do que tá plantando lá em cima.
- Mesmo assim - olha, tá aqui a minha parte, leva lá pra mim, ok? - Hurley esticou sua parte do aluguel em direção de Sawyer.
Subitamente irritado, ele concordou a contra-gosto.
Seu mau humor diminuiu, entretanto, ao atacar o bacon.
Verdade seja dita, Hurley sabia cozinhar.
Sawyer subiu as escadas pra entregar o aluguel, enquanto Hurley se aprontava para o trabalho.
Charlie foi entrando sem bater na porta.
- Oi, tudo bem, Hurley. Cadê o caipirão? - gritou da porta. Depois se arrependeu de ter gritado, e se ele estivesse ali? Sawyer às vezes parecia uma fera.
Hurley veio pra sala. - Ele tá aí? - sussurrou Charlie temeroso.
- Não, foi entregar o aluguel pro Locke.
- Ufa, ainda bem, não quero ter que fazer plástica na cara.
- Ele não é tão mau quanto você pensa, Charlie. Sawyer é legal. Você vai ver quando o conhecer melhor.
- Ele é doido.
- Eu sou doido...
Era uma meia verdade.
Hurley tivera problemas emocionais uns anos antes. Mas nada abalara seu otimismo inato.
Fora em uma de suas crises recentes que conhecera Sawyer.
Tivera um surto e quebrara uma loja de conveniência. A polícia chegou e o levou preso.
Não queria avisar a mãe para não preocupá-la, assim contratou uma firma de fianças. Só que depois de um tempo simplesmente se esquecera de pagar a firma.
Sawyer era o caçador de recompensa e coletor de fiança.
Hurley se lembrava muito bem de quando começou a notar que um homem alto, de jaqueta de couro marrom e com uma cara terrível o seguia.
Primeiro pensou que era um de seus delírios, até que o sujeito o agarrou na porta da lanchonete do Frango Frito.
Brutal mesmo, o homem alto de cabelos louros, escorridos, torcera seus pulsos e o algemara com um prendedor de plástico.
Hurley praticamente se derreteu de pavor: o rosto do homem era pétreo e implacável.
Os olhos azuis ferozes e o cenho franzido aumentavam o aspecto violento.
Talvez o jeito indefeso de Hurley tenha impressionado Sawyer - ou talvez tenha sido o fato dele ter, literalmente, vomitado nos próprios tênis de susto. Sawyer se assustou, achou que seu preso ia cair morto ali mesmo.
A verdade era que apesar da hostilidade inicial, Sawyer acabara sendo muito legal com ele.
Não fora amável tipo 'vamos ser bonzinhos com o maluco' como todos na sua família e amigos tinham começado a tratá-lo agora.
Ao contrário, tinha sido até ríspido, mas Hurley notara que ele era ríspido com todos, e essa atitude lhe passara uma sensação de intimidade e companheirismo que encantou Hugo.
Virou amigo de Sawyer, mesmo que Sawyer não soubesse disso.
Sentado numa das mesas do Frango Frito, (depois de Hurley ir ao banheiro se limpar) contou a Sawyer que trabalhava ali e não queria preocupar a mãe mais do que necessário.
Que desde que o pai fora embora ele tinha ficado meio no ar, tendo entrado em clínicas de doenças nervosas algumas vezes e que apenas esquecera de pagar a fiança, não pretendia fugir para lugar algum.
Hurley teve a impressão que ao citar o abandono do pai e a mãe sozinha, Sawyer amolecera. Ele o olhara de forma diferente então. Um tipo de elo se formara entre os dois, de maneira sutil, mas palpável.
Hurley calculou que Sawyer também deveria ter sido abandonado pelo pai.
Depois disso, a amizade se estreitara.
Sawyer ajeitara as coisas com a fiança (surpreendentemente até oferecera um empréstimo pra pagar a fiança de Hurley - como se ele precisasse!) e os dois se viam as vezes para jogar sinuca. Hurley levava frango frito e eles dividiam umas cervejas e as coxinhas empanadas, de frente para o mar, nas avenidas oceânicas de LA.
Um dia Hurley apareceu com novidades: seu amigo Charlie, que tinha trabalhado com ele no Frango Frito e agora estava montando uma banda de rock, tinha achado um apartamento para alugar num bom condomínio. Hurley estava cansado de viver como criança sob as asas da mãe, aturando o pai que resolvera voltar de repente, como se nada tivesse acontecido todos aqueles anos em que tinha sumido.
Ele estava decidido a morar sozinho! Quer dizer, dividir o apartamento com o Sawyer.
Sawyer o olhou como se ele estivesse doido.
- O quê? Vamos morar os três ursos juntos? Você, Charlie e eu?
- Não, dude, Charlie tem medo de você. Além do mais ele mora com o irmão e o resto da banda. Seria só você e eu.
Notando o olhar de resistência de Sawyer, Hurley o interrompeu antes mesmo dele falar:
- Qualé, até parece que você mora muito bem. Aquela saleta que você vive é um pardeeiro! Minúsculo e abafado. Nem tem lugar pra você empilhar seus livros direito...
Era um bom argumento, Sawyer raciocinou.
- Me ajuda, cara, não aguento mais ficar ouvindo meus pais à noite. Você sabe como é duro saber que seu pai e sua mãe tem mais vida sexual que você? É humilhante!
Sawyer engoliu uma risada.
- Tô falando sério, Sawyer! Eu vou pirar se continuar lá.
Sawyer olhou preocupado para Hurley. Já o tinha visto pirado uma vez e não era bonito de se ver.
- Então? Vai ser legal! Pensa só: condomínio, perto da praia, tem até piscina! Deve ter garotas lá. Garotas solteiras, garotas gostosas!
- A gente não vai dividir o quarto, né?
Hurley deu um abraço que quase sufocou Sawyer. E ele quase se arrependeu, enquanto tirava os cachos de Hurley da boca. Pelo menos foi o que ele disse a si mesmo, enquanto sorria a contragosto.
- Tudo bem, Jarrão, mas lembre que não sei quanto tempo mais vou ficar por aqui. Nada de lágrimas quando eu resolver ir embora.
Claro que Sawyer colocou uns defeitos no lugar, como de costume, afinal ele não podia perder a reputação de implicante, mas gostara do lugar.
- Ora, ora, não é que nos mudamos pra Melrose place?
Mentira, o condomínio era bem menor e menos glamuroso que a famosa série dos anos 80. E Heather Locklear não parecia que morava ali...
A piscina mais parecia piscininha de criança e não tinha mulheres gostosas ali.
Até tinha, mas não estavam disponíveis.
A australiana, Claire, era bem bonita, mas estava grávida de 8 meses e o pai do bebê tinha sumido. Mulheres grávidas de oito meses saíam automaticamente da lista de gostosas, pelo menos na opinião de Sawyer. E as duas mulheres jovens e bonitas (e realmente gostosas) - a oriental e a inglesa - eram casadas.
Ser casada não era empecilho para Sawyer, mas elas não davam a impressão de que queriam jogo com ele ou com qualquer outro.
Aliás, os dois casais, tanto o oriental, como o inglês, eram meio esquisitos. Pareciam que estavam se escondendo de alguma coisa.
Eram os olhares deles, sempre meio acuados, meio de esguelha. Como se esperassem alguma surpresa desagradável a qualquer momento.
Sawyer notava esses detalhes...
Apesar de tudo, a verdade é que os dois estavam se dando admiravelmente bem ali e Hurley e Sawyer estavam sentindo uma paz que ambos desconheciam há muito tempo.
Embora Sawyer não confessasse isso nem para si mesmo.
Perdido nessas reflexões de um passado não muito distante, Hurley não notou Charlie abrindo a geladeira e comendo tudo o que a mão alcançava ali mesmo, com a porta do refrigerador aberta.
Hurley conhecera Charlie numa época notavelmente boa de sua vida, quando arrumara emprego incógnito no Frango Frito. Ele se sentia tão livre ali...
Conhecera Charlie num momento favorável de sua vida e encontrara Sawyer num momento de desespero. Os dois representavam os dois pólos de sua existência e haviam mudando sua vida complicada!
Ambos eram tão importantes para ele e Hurley se divertia ao ver como eles achavam que se detestavam! Grandes caras!
Olhando afetusamente para Charlie, Hurley lhe serviu uma xícara de café.
- Ei, você não vai se atrasar pro Frango Frito?
- Hã, não! Entro meia hora mais tarde.
- Desde quando Smith é legal com o horário? - Perguntou Charlie se lembrando do sacana do gerente da lanchonete. Smith fora um miserável com ele, implicando quando ele chegava um pouco atrasado pela manhã.
Pôxa, ele dormia tarde, os shows em bares terminavam quase pela manhã. Como Smith esperava que ele tivesse algumas horas de sono? Tudo bem que ele chegava uma hora atrasado, mas custava ele ter paciência? Quando ele fosse famoso, tinha certeza que o safado ia ficar contando por aí que o grande Charlie Pace tinha trabalhado ali!
Cretino!
- Deixa pra lá Vamos tomar café direito.
- Ah, Claire disse que vai dividir o apartamento com uma garota. Ela vai se mudar pra cá esses dias. A obstetra de Claire a recomendou. Parece que ela é da polícia!
Se Sawyer tinha colocado Claire na lista de inelegíveis para um namoro, Charlie nem pensara nessa hipótese.
Ele se apaixonara à primeira vista pela linda e solitária lourinha e seu barrigão! Costumava passar toda hora em seu apartamento, para lhe fazer compras, ajudá-la nos afazeres da casa ou levá-la em qualquer lugar que ela quisesse, na van da banda.
Por isso sabia de todas as novidades sobre ela, desde a última vez que o bebê mexera em sua barriga até a nova foto da ultrassonografia.
- Dude! - percebendo Sawyer voltando do apartamento de Locke, ele lhe informou - Sawyer, Charlie disse que Claire vai rachar o apartamento com uma tira!
- Que bom pra ela, né? Ninguém vai roubar as fraldas do bebê!
- Foi tudo bem lá com Locke?
- Tudo em ordem. Charlie, não faça cerimônia, coma o queijo todo... come tudo!
Charlie parou a mão com várias fatias de queijo no ar, no meio do caminho para a boca;
- Se quiser ponho de volta na geladeira... - respondeu Charlie com ressentimento para Sawyer.
- Vai fundo, já vou pro trabalho mesmo.- retrucou ele saindo.
- Hã, Charlie, a Claire disse se a garota é bonita?
- Deve ser, é namorada de um médico, colega da médica de Claire...
- Comprometida! Não chega as outras mulheres daqui serem casadas?
Esse foi o ultimo comentário que Sawyer ouviu antes de sair para o trabalho.
