Flores da Liberdade


Capítulo I

Foi no último dia de Julho que Hannah deixou a casa de sua família em Okinawa para se mudar para Tóquio. De acordo com o que fora combinado entre sua mãe e sua tia, ela viveria no Templo Higurashi e faria trabalhos de sacerdotisa para recompensar sua estadia nos quatro anos seguintes, até obter sua licenciatura em História.

Aquele acordo era mais uma piada do que qualquer outra coisa. O que sua tia chamava de trabalho de sacerdotisa consistia em trabalhos domésticos, como garantir a limpeza do templo sagrado e ajudar nas festividades.

A garota de dezoito anos ficaria mais feliz se a sua mãe tivesse permitido que ela se tornasse uma universitária normal, habitando uma república e tendo um emprego de meio período em qualquer comércio na cidade. Tóquio era a Capital do Japão e tinha tantas promessas para Hannah e, no entanto ela estaria presa a uma parte de sua família que ela nunca conhecera.

Não sabia como era a fisionomia do seu avô e nem de sua tia. Na verdade nunca se dera ao trabalho de pesquisar sobre eles, o que era uma incoerência já que ela se dizia apaixonada por História. Não da minha família, rebateu de imediato. Detestava tudo em relação aos Higurashi. A família cuja qual ela pertencia era tão tediosa quanto qualquer outra família. Não havia graça alguma ter uma linhagem sacerdotal. Hannah se interessava mais em cavaleiros e rainhas e acima de tudo em guerra, ainda que só conseguisse pensar no momento na Primeira e na Segunda Guerra Mundial.

— E também gosto de músicas e danças – Acrescentou em voz alta mais dois de seus interesses enquanto trocava a música de seu celular.

Estava há mais de uma hora esperando alguém buscá-la na rodoviária e até agora ninguém viera ao seu encalço.

Sabia que nesta parte de sua família ela tinha um avô, uma tia e um primo. Também teria uma prima a esperar por ela, contudo a moça pelo o que ouvira havia se casado há seis anos e partira de Tóquio depois de se formar no Ensino Médio, tendo cortado todo o contato com a sua família.

Esta informação que recebera fez com que Hannah se tornasse apreensiva sobre o que a esperava. Para a própria filha ter contato relações com a família, era bem provável que fosse um bando de loucos. Ainda mais ter se casado logo depois de se formar, a jovem sentiu o corpo se arrepiar. Era contra a ideia de casamento. Qualquer relação estabelecida com um parceiro amoroso a privaria de sua tão sonhada liberdade. Ela sonhava em se formar e conseguir logo um emprego para sair do teto de seus parentes. Queria viver a sua própria vida com toda a independência que um adulto teria, mesmo que isso significasse pagar as próprias contas, fazer a própria comida e lavar as próprias roupas. Não havia nada de mal nisso, principalmente por ela já estar acostumada a fazer isto para os outros. Era difícil ser filha única de uma mãe solteira que passava a maior parte do dia fora de casa.

— Hannah? Hannah Higurashi? – Uma voz masculina chamou o seu nome do outro lado da praça alimentícia da rodoviária.

Hannah virou-se para aquela direção e viu um desconhecido de não mais do que vinte anos de idade olhando atordoado para diversos lados, procurando um rosto na multidão que ele nem sabia como era.

— Aqui! – Ergueu a mão para sinalizar sua presença.

O rapaz abriu um sorriso de orelha a orelha em seu rosto avermelhado e apressou-se até ela.

— Prazer em conhecê-la, prima! Eu sou Souta Higurashi – Se apresentou - Minha mãe pediu para buscá-la, ela tentou vir mais cedo, mas o meu avô... quer dizer, o nosso avô passou mal – O rapaz a informou.

— Tudo bem – Deu de ombros, apesar daquilo estar longe de bem. Detestava esperar, mas não podia soar rabugenta logo no primeiro encontro, ainda mais quando o motivo do atraso era a saúde de um parente.

O rapaz que se apresentara como Souta a ajudara a carregar sua bagagem até o carro para conduzi-la até o seu novo lar.

— O que o nosso avô tem? – Hannah questionou, tentando puxar assunto e quebrar aquele clima denso que estava se formando.

— Os pulmões dele não estão funcionando muito bem – Confessou – O médico disse que tem relação com a idade dele.

— Quantos anos ele tem? – A jovem se empertigou.

— Oitenta e oito anos.

Hannah soltou um assovio baixo. O seu avô realmente era um ancião.

— Quantos anos você tem? – Perguntou, na intenção de não deixar o silêncio voltar entre eles.

— Dezenove – O rapaz disse com um leve sorriso no rosto – E eu estou no segundo ano da faculdade de Letras.

— Você quer ser um professor também? – As perguntas não paravam de sair de sua boca.

— Não, eu quero escrever livros. Desde o que aconteceu com a minha irmã eu me sinto inclinado à literatura – Percebendo que havia dito algo mais do que deveria, Souta imediatamente continuou a conversa – E você quer ser professora? Minha mãe me disse que você vai fazer História.

Hannah encarou o seu primo por um tempo, procurando entender se era seguro perguntar algo em relação a irmã dele ou seguir a linha que ele traçara. Dando-se por vencida, o respondeu.

— Sim, eu quero ser professora. O salário não é tão ruim como dizem e nunca falta emprego – Este havia sido o seu plano desde o princípio. Hannah sabia que quando se formasse de fome ela não morreria.

— E também há respeito pela profissão aqui no Japão – O rapaz concordou.

Hannah entendeu aquele silêncio que se formou após a frase dele como uma oportunidade para sanar sua curiosidade.

— A respeito de sua irmã... O que você... – Foi interrompida pela freada brusca do carro.

— Chegamos! – Seu primo anunciou em um tom que podia ser assemelhado ao desespero – Desculpe pela forma que eu estacionei, é que faz pouco tempo que eu tirei minha carta.

Hannah revirou os olhos. Souta não iria respondê-la pelo o que pôde observar.

— Não tem importância – Deu novamente de ombros. Seu primo tinha carta, o que era algo a mais que ela não tinha. Assim que eu receber um dinheiro qualquer vou investir na minha autoescola, decidiu.

O rapaz novamente se encarregou das bagagens de Hannah e a conduziu pelas escadas do templo que a levaria até a propriedade localizada aos fundos do mesmo.

— O lugar é bem antigo, então tome cuidado onde pisa, estas pedras são bem lisas – Souta aconselhou.

As sapatilhas da jovem não necessitaram daquela dica. Ela tinha os pés firmes e quase nunca era desastrada o suficiente a ponto de cair. Graças as minhas aulas de balé, ressaltou.

Hannah prestou atenção no percurso que fizera desde que saíra do carro, dando uma analisada rápida nas coisas ao seu redor.

A estrada do templo dava direto para um templo não muito grande com arquitetura antiga, ao lado esquerdo da construção principal havia uma pequena casa e entre os dois uma enorme árvore centenária. Foi inevitável admirar aquela criação da natureza com as folhas verdes farfalhando ao vento. A jovem fechou os olhos e inalou aquela suave brisa repleta de fragrância. Sua mãe lhe dissera que desde em que estava no útero a moça estava ligada as flores e por isso a nomeara de Hannah, que significa flores. Depois de adquirir mais idade, Hannah sentiu que também havia ligação com o vento, pois aonde quer que fosse, sempre havia uma brisa com aroma floral a circulando. Este pensamento brotou um sorriso nos lábios dela.

— Está tudo bem? – Souta perguntou ao ver que a prima parara de frente à árvore e estava com os olhos fechados olhando para a copa da mesma.

— Hm? Ah, sim, está tudo bem! – Deu um sorriso de ternura ao rapaz fazendo-o corar e tornou a segui-lo.

Eles seguiram por um caminho cheio de cascalho no chão que levava até uma casa modesta com os padrões modernos. Hannah percebeu que seria difícil ter um cachorro ali visto que não havia uma cerca para separar a casa do restante da propriedade.

— Você vai ficar no antigo quarto da Kagome. Eu tenho que voltar para o hospital agora, então sinta-se em casa – Seu primo a informou, colocando sua mala ao lado da porta de entrada e despedindo-se dela com uma pequena reverência formal.

Hannah o imitou com insegurança. Eles eram primos, o que significava que aquele cumprimento era desnecessário e riu para si mesma quando a porta tornou a se fechar e ela se viu sozinha naquela casa.

Estava tão cansada daquela longa viagem que fizera que desejava poder tomar um banho e dormir, mas tinha tanta vontade de explorar o lugar que não se permitiu fazê-lo. Com pressa, pegou seus pertences e subiu correndo a escada que levava ao segundo andar e foi de cômodo em cômodo procurando o quarto que pertenceu a esta tal Kagome.

O aposento destinado à ela era maior do que do antigo apartamento que vivera com a mãe, mas diferente do seu quarto, este possuía temas florais em tonalidade pastel, o que a forçou a enrugar o nariz em desgosto. Hannah podia adorar as flores, contudo era uma verdadeira rockeira e nada a agradava mais do que cores escuras e estampas lisas ou listradas. Até um animal print era melhor do que aquelas rendas todas de uma garota fútil. Isto explica porque a Kagome logo se casou, revirou os olhos mediante a realidade. Aquele era o quarto de uma garota que gostava de ler mangas e assistir animes e de todo o romance contido naquelas historinhas bobas para adolescentes.

Jogando a mala ao lado da cama, observou uma foto que estava sobre a mesa de estudo do quarto de frente para o leito. Era a foto de uma moça sorridente utilizando a beca de formatura e segurando um canudo.

— Então, esta é a minha prima... – Hannah observou.

A moça na foto tinha longos cabelos negros ondulados com uma franja tampando a testa. Ela era bonita e se parecia com o irmão. Hannah inclinou a cabeça para o lado e observou o seu reflexo no espelho procurando alguma semelhança entre as duas e só encontrou traços em seus olhos castanhos e em seus cabelos da mesma cor, porém as ondas de seus cabelos eram mais definidas e sua franja mais lisa. Seu rosto tinha o formato de coração em contraste com o rosto redondo da garota da foto e a sua pele era menos bronzeada do que a de Kagome.

— Eu sou mais bonita – Decretou em um ato de vaidade.

Desistindo daquela análise dada por finalizada, foi para os outros cômodos da casa para se familiarizar com o ambiente.

No segundo andar havia mais dois quartos, um pertencente à Souta pelo tema masculino neutro e o outro de sua tia pelo ar sóbrio do ambiente. Também tinha um banheiro com tapetes próprios para o cômodo com peixes pintados neles. No andar de baixo havia uma sala ampla bem iluminada e ao lado dela uma cozinha. De frente para a sala tinha um banheiro de visitas e do outro lado da entrada tinha mais um quarto que pertencia provavelmente ao seu avô. Hannah sentiu-se curiosa e abriu a porta do quarto, sendo surpreendida pela quantidade de caixas ali contidas.

Deixando-se levar pelo sentimento que a dominada, ousou abrir uma delas apenas para encontrar o que parecia uma coleção de patas de macaco secas. Em um ato de repulsa jogou o artefato de volta ao seu lugar e fechou a caixa enojada. Os pelos de seus braços estavam arrepiados pelo o que aquele idoso colecionava. Não era atoa que ele estava doente do pulmão. Provavelmente algum fungo invadira aquele órgão e fizera dele o seu ninho de proliferação. Decidida a nunca mais entrar naquele quarto, fechou a porta como se estivesse selando um portal.

Sem mais nada para xeretar dentro da casa, foi até o quintal e parou de frente com a árvore centenária mais uma vez.

De um lado dela havia o templo e do outro aquela casinha estranha.

Hannah podia muito bem passar todo o resto da tarde de frente com aquela perfeição da natureza aspirando o perfume que exalava, mas podia também descobrir o que havia no templo, já que seria responsabilidade dela preservar pela limpeza do local. Pelo o que pôde constatar em uma rápida olhada, o lugar era bem grande. A jovem revirou os olhos e decidiu que não iria se torturar no momento com o terror que a vida reservara para ela e se direcionou até a casinha simplória que provavelmente estava relacionada ao templo.

Quando havia chego à entrada daquela construção, ela sentiu o coração disparar conforme um vento mais forte passou por ela levantando os seus cabelos.

Será isso um sinal?, se questionou. Havia três selos colados na porta com dizeres que ela não conhecia e por mais decidida que fosse, hesitou um momento antes de abri-la. Respirou fundo algumas vezes antes de enfim adentrar o lugar.

O interior daquela casinha era feito de madeira e o chão exibia a terra de sua construção. Havia um cheiro muito peculiar vindo lá de dentro e com um sentimento de insegurança deu dois passos vacilantes para dentro do local mal iluminado.

No centro daquela construção havia uma escada de madeira de meia dúzia de degraus que levavam até um poço, a provável fonte do cheiro que ela sentia.

Como uma criança lambeta sem ninguém para repreendê-la, desceu aquela escada escutando o coração bater em sua orelha, sempre olhando para trás para garantir que a porta estava aberta caso quisesse e precisasse sair correndo dali.

Apesar do chão ser feito de terra, não havia nenhuma planta ou erva crescendo ali. Será que eu também terei de limpar este lugar?, se ela tivesse, ela convenceria Souta a fazê-lo por ela. Aquela casinha despertava todos os seus sentidos. Sua audição havia melhorado tanto que ela podia jurar que estava ouvindo passarinhos piando em algum lugar bem distante e seu olfato não a estava traindo enquanto sentia aquele cheiro de... de... era difícil definir, o que parecia era cheiro de umidade, mas a terra estava bem seca e sendo verão, não chovia já tinha quase um mês.

Hannah deu mais um passo próximo ao poço e por um instante jurou que o barulho de pássaros vinha ali de dentro. Não pode ser!, exclamou internamente por sua ingenuidade. Ela já tinha dezoito anos, não tinha mais idade para ser tão infantil a ponto de temer um ambiente escuro. Mostrando-se corajosa, completou o percurso até o poço e esticou-se na beirada para olhar o que havia lá dentro e no instante que o fez, uma rajada forte de vento a tragou para dentro do buraco no chão justamente quando pensou ter visto um céu de tempestade refletido no solo.