Pretérito Imperfeito: Eu

Naquela noite eu não voltei para casa. Talvez fosse a irritação por tudo aquilo que estava acontecendo. Talvez fosse vontade de não ver você. Talvez fosse a frustração por não saber ao certo o que dizer ou como agir. Ou talvez fosse simplesmente orgulho. O fato é que aquela noite eu não voltei para você. E, num piscar de olhos, o mundo inteiro pareceu desabar.

Fogem-me à memória quantas vezes me repreendi desde então, mas naquele momento pareceu-me a única coisa certa a se fazer. Não queria ter que encarar as palavras não ditas, os olhares gritantes ou os suspiros silenciosos que suplicavam dolorosamente para serem ouvidos. Por isso parei no farol vermelho e encarei a bifurcação logo à frente, tendo a voz de Kyu Sakamoto como única companhia.

Olho para cima enquanto caminho, contando as estrelas com lágrimas nos olhos — eu o ouvi dizer para mim. — Lembro-me daqueles dias felizes de verão, mas esta noite estou completamente só.

— Completamente só — murmurei, apertando o volante um pouco mais que o necessário. Olhei rapidamente para o retrovisor e vislumbrei um letreiro em neon, um pouco vermelho demais para a rua que enegrecia sob o crepúsculo. Pelo espelho não pude decifrar com certeza o que as palavras diziam, invertidas que estavam. Suspirei. De inversões bastavam as da minha vida.

Fechei os olhos por um instante. Vi seu rosto se desenhar em minha mente, mas não pude contemplar seu sorriso. Seus lábios crispados oscilavam entre a raiva e a melancolia e seu olhar de jade lapidado deixava transparecer uma súplica muda como se perguntassem:

— Por que?

Não tive tempo de responder. Uma buzina insistente me despertou. O farol abrira e sua luz verde opaca me lembrou seus olhos em uma noite de luar. Logo à frente, a bifurcação continuava a me encarar, como se pesasse diante de mim as iminências do momento e do destino.

A buzina soou de novo, como uma voz que ecoasse no limiar de minha consciência. Ouvi uma voz aguda gritar um palavrão e o ronco surdo de um motor. Por fim, os pés mecânicos afundaram nos pedais. Engatei a primeira e pus o carro em movimento. Mas, por algum motivo, não tomei o caminho da direita como fizera durante tantos anos. Ao invés disso, passei a rodar sem rumo pelas ruas nuas, um tanto nebulosas pela noite sem lua.

Eu gostava daquela cidade. Tomoeda era pequena sem ser desajeitada. As casas eram de um requinte simples e as árvores pareciam crescer na medida certa. As pessoas eram simples, educadas e simpáticas umas com as outras — não a simpatia mecânica das secretárias executivas, com seus gestos ensaiados e seus discursos pré-prontos, minuciosamente decorados; nem a educação forçada do trabalhador que diz bom dia na fila do trem sem ao menos lhe dirigir o olhar, mas uma genuína e cativante simpatia. Sem que eu sequer houvesse me dado conta, aquela cidadezinha de modos calmos e pessoas gentis havia se tornado meu lar, muito mais do que Hong Kong jamais fora.

E então lá estava eu, sem saber ao certo para onde ir ou o que fazer; perdido nas ruas que os mais de dez anos passados haviam se encarregado de gravar em minha memória.

Naquela profusão de ruas e avenidas, não prestei muita atenção nos caminhos que tomei. Fui dar num portão alto, lanceado, cujo ferro retorcido se encarregava de proteger o belo jardim, que se estendia à minha frente, das mazelas do mundo. Estacionei.

Caminhei até o portão que se elevava muito acima da minha cabeça e apertei o botão do interfone. Esperei. Um segundo a mais e eu teria dado meia volta e partido. Mas uma voz suave respondeu à campainha, fazendo com que eu me voltasse ao aparelho:

— Eriol? — indaguei incerto.

— Shaoran — ele disse em um tom solene. Não era uma pergunta. — Vou abrir o portão. Entre, vai começar a nevar.

Olhei para o céu coberto de nuvens. Era dezembro, mas a primeira neve ainda não havia caído. As densas formações leitosas acima da minha cabeça se confundiam com o negrume da noite sem luar. Havia um quê de sombrio naquela visão, pensei.

Cruzei a grade de ferro e caminhei até a soleira da porta, onde Eriol já me esperava. Sua expressão faustosa não deixava transparecer preocupação, mas eu sabia pelos anos de convivência que ele estava agitado por dentro.

— Entre. — Sua voz era gentil, mas havia um peso nela que só Eriol conseguia dar, como se o ato fosse de uma importância ímpar.

Fui guiado até a sala de estar. A lareira estava acesa e um aparelho de som tocava Rachmaninov num volume quase inaudível. Sentamo-nos no sofá e Eriol me serviu chá. Sorvi o primeiro gole com gosto, como se naquela voracidade depositasse na bebida a responsabilidade de aquecer um espírito que esfriava. Lancei um olhar rápido pela janela. De fato, havia começado a nevar.

— Muito bem, o que aconteceu? — Eriol indagou-me com um tom um pouco mais exaltado que o normal. — Sakura me ligou dizendo que você não havia voltado para casa. Perguntou se você estava aqui.

Balancei a cabeça.

— Não sei ao certo. Para dizer a verdade, eu mal entendo o que aconteceu; como tudo isso começou. Só sei que, de uma hora para outra, não estávamos mais nos falando.

Eriol suspirou e pela primeira vez um fiapo de preocupação fez transparecer em seu rosto. O semblante sério e os olhos profundos me lançaram um tom de reprovação. Eu sabia por quê. Mais cedo, naquele dia, ele me vira no escritório com a expressão anuviada demais. Não era do meu feitio me distrair no meio do trabalho.

— Está tudo bem? — ele perguntou, franzindo o cenho. Eu apenas assenti.

— Claro — falei abanando as mãos. — Desculpe, acho que voei um pouco.

— É melhor controlar suas asas. Tem ligação para você na linha dois.

Mas ele sabia. Sabia que havia uma peça fora do lugar. Não poderia ser diferente. Ele sempre tivera um bom faro para esse tipo de coisa. E lá estava eu, com uma xícara de chá em uma das mãos, encarando aquele olhar de censura. Suspirei. Sabia que Eriol esperava uma resposta, mas eu próprio não a conhecia.

— Desculpe — sussurrei, buscando as palavras certas. — Não me sinto bem para falar sobre isso agora. Posso ficar aqui?

— Por que faz perguntas para as quais já sabe a resposta? É perigoso dirigir com essa nevasca.

Balancei a cabeça.

— Quero saber se posso passar um tempo aqui. — Baixei o olhar, ligeiramente envergonhado. — Não posso voltar ainda. Não quero falar com ela.

— Continua perguntando algo que já sabe. — Eriol se levantou e mexeu no fogo com as tenazes. Caminhou até o canto da sala e apertou um botão no aparelho de som, fazendo o disco pular fora com um zunido mecânico. — Pode ficar o tempo que quiser. Preparei o quarto de hóspedes para você.

Pisquei algumas vezes até entender o significado daquelas palavras. Perguntei a mim mesmo como ele sabia que eu viria — uma pergunta tola, é verdade, mas naquele momento, imerso em pensamentos, a tolice me pareceu o único modo de fugir do meu próprio eu.

— Um pássaro me contou. — Pela primeira vez naquele dia Eriol pareceu dar um tom de diversão à sua voz, mas logo em seguida voltou a ficar sério. — Sabe que terá que falar com ela, mais cedo ou mais tarde, não sabe?

Assenti. É claro que eu sabia. Eu simplesmente não conseguia pensar em nada para lhe dizer. Quando acordei naquele dia, você já tinha saído, mas deixara o café-da-manhã pronto sobre a mesa da cozinha. Mesmo brigados você continuava a se preocupar comigo e isso despertou em mim um misto de admiração e raiva. Admiração por sua bondade e doçura. Raiva por não querer que você se preocupasse e por saber que eu jamais seria igual a você.

Levantei-me no momento em que Eriol acabara de trocar o disco e colocara Stravinsky para tocar. Meneei a cabeça. Aquela devia ser a noite dos russos, pensei. Entre uma palavra e outra pedi licença. Estava cansado e precisava de um tempo sozinho. Eriol me disse para tomar um banho e descansar. Concordei. Aquilo certamente me acalmaria.

Passava da meia noite quando finalmente me deitei. O teto de um branco pálido adornado pelo lustre de prata e cristal me pareceu surreal demais. Estava tão acostumado ao meu teto simples com uma única lâmpada fluorescente que a idéia de tamanha ostentação fez com que eu me revirasse algumas vezes na cama. Alguns passos adiante uma estatueta de ébano e marfim se apoiava sobre uma cômoda de mogno, onde eu havia colocado minha pasta e as roupas que usara naquele dia.

Corri os olhos pelo quarto por alguns breves segundos sem poder esconder minha inquietação. Era um aposento de muito bom gosto, tinha que reconhecer. Todavia, os pequenos detalhes se avultavam em uma pintura que eu bem conhecia e fizera de tudo para escapar. Aquela mobília do século XIX era terrivelmente parecida com a que minha mãe fazia questão de manter em Hong Kong, carregando-me para uma vida que eu deixara para trás havia mais de uma década.

Balancei a cabeça quando o cuco da sala cantou uma hora. Inspirei. Suspirei. E foi como se a brisa gelada da madrugada houvesse passado pelas janelas fechadas e aberto caminho até meus pulmões. E mesmo com a aparente contradição, todo ar do mundo me pareceu pouco, como se, em sua ausência, residisse a absoluta inópia dos significados; dos sentidos de eu, tu e nós.

Revirei-me na cama ao percebê-la vazia demais. Ao aperto no peito sobreveio a constatação de que, pela primeira vez em dez anos, você não estaria ao meu lado. Fingi que não me importava. Era teimoso e quis acreditar em uma auto-suficiência que os anos haviam banido de mim.

Por fim, quando não havia mais nada a ser feito; quando os muitos revirares sob os lençóis e os muitos afofares do travesseiro se tornaram não mais que gestos regulares a intervalos mecânicos, meus olhos se fecharam, rendidos pelo cansaço. Chegava-me aos ouvidos uma melodia suave ao piano, mas ali, no limiar entre sono e despertar, não soube dizer se aquilo era real ou se eram as portas do sonhar que se abriam para mim. Só sei que adormeci. E por gracejo do destino, sonhei com você.

Finalizado: São Paulo, 26 de Outubro de 2008.

Revisado: São Paulo, 18 de Novembro de 2008.

Passou pelas mãos da Yoru no dia 23/05/2009.


N/A: Alô, pessoas!!! =D

Não, eu não morri! /o/

Pois é, depois de um looongo período fora do ar, finalmente estou de volta com meu mais novo projeto. Para variar um pouco e sair da aventura e da ação de Chrono (que por sinal voltará em breve), resolvi retornar às minhas raízes e escrever algo com drama e romance. O resultado está aqui. Esta é uma mini-série em três capítulos. Todos eles já estão escritos e serão postados semanalmente. Espero sinceramente que gostem da história, ela foi escrita de coração.

Esta fic é dedicada à Yoruki e à Miaka, ou melhor, à Bruna e à Stella, meus eternos anjos da guarda e fontes inesgotáveis de amizade, cumplicidade e compreensão. Obrigado por cada pequeno momento que ao lado de vocês se tornou grande e inesquecível. Amo vocês.

Aproveito para deixar um agradecimento mais que merecido à Yoru, que se dispôs tão gentilmente a betar a fic. Obrigado, anjinho. =D

Ah, sim! E antes que eu me esqueça, o trecho que Shaoran menciona brevemente no carro é uma música de Kyu Sakamoto, chamada Sukiyaki.

Até a próxima semana, quando chega o próximo capítulo.

Peace, Love and Hope to all and each one of you. Now and Forever.

N/R: ele fala como se betar uma fic dele fosse a coisa mais difícil do mundo... falando sério, Fê! Você acha mesmo que precisa me agradecer por isso? EU é que agradeço pela confiança e por me permitir meter o dedão aí no meio arriscando estragar tudo... Quero dizer que foi um prazer dar um polimento no texto, porque é tudo o que seus textos precisam: uma lustradinha e TCHANS!...

Espero que tenham aproveitado a leitura tanto quanto eu, que sempre me perco em uma miríade de emoções em meio às palavras e sentimentos... Os fics do Fê sempre me fazem voar, flutuar... Deixem seus comentários.

Beijinhos.

Yoru.