TREINA COMIGO

Carlos Abraham Duarte

PRÓLOGO

O entardecer nos arredores da Academia Youkai era, a um só tempo, um espetáculo bonito e deprimente.

Em razão de a kekkai, a abóbada gigante de energia mística que camufla e isola a sinistra localidade deixar tudo em seu interior fora de fase com o continuum espaço-tempo habitado pelos seres humanos, o céu ao cair da noite tingia-se de vermelho-escuro, purpúreo, como se o mundo estivesse a ser submerso em sangue – e sem uma única estrela.

Uma figura solitária caminhava apressadamente pelas ruas que uniam a academia à área comercial adjacente conhecida como os "Arcos Mononoke", uma mulher alta e magra na faixa dos trinta anos, praticamente sem bunda, seios médios e aparência masculinizada. Pele branca como giz. Vestia calças jeans boca de sino pretas com tênis all star azul-marinho, e um sobretudo cinza-escuro canelado por cima de uma blusa baby look preta com decote em V e barriga (branquela) de fora, com o umbigo exibindo piercing. O rosto oval de feições finas era dominado por um par de óculos wayfarer branco com lentes pretas que dissimulava os estreitos olhos amarelados, frios e penetrantes. Seus cabelos cor de bronze com reflexos verde-metálicos amarrados em inúmeras trancinhas no estilo rastafari, na realidade um novelo retorcente de serpentes entrelaçadas, estavam cuidadosamente ocultos sob um lenço/turbante xadrez.

No pescoço de alabastro a mulher-demônio trazia duas correntes de prata de Bali.

Hitomi Ishigami, ex-professora de artes da Academia Youkai. Uma das górgonas, descendente da terrífica Medusa e uma criminosa foragida com a cabeça a prêmio!

O fato de um mandado de prisão haver sido expedido contra ela não a preocupava em hipótese alguma, convencida que estava de poder ludibriar os "cães de caça" do astuto Diretor Mikogami valendo-se dos poderes de ilusão adquiridos a peso de ouro – de um negociante drakon notório por suas ligações com o mercado negro pandimensional. Como resultado de seu uso da Máscara das Mil Faces, a górgona fugitiva se apresentava aos olhos de todos quantos a viam ora como uma mulher belíssima e sexy de dezesseis anos, cabelos azeviche, olhos grandes e amendoados e feições bem mongólicas, de vestido verde-claro leve e translúcido, ora como um homem sudanês bastante idoso, de pele negra, trajando túnica e turbante brancos com adornos dourados; igualmente, o recurso adicional da Máscara da Alma lhe permitia esconder sua verdadeira aura, sua youki, ostentando falsas cores aureolares, próprias de um ser inocente, a fim de ofuscar os clarividentes mais dotados de percepção de aura. "Paguei pelo pacote completo", ela sorriu mentalmente.

É certo, porém, que ainda poderia ser rastreada por algum investigador youkai dotado de faculdades telepáticas, um satori, por exemplo. Felizmente, eles são muito raros.

Enquanto percorria, célere, o caminho pavimentado com pedras antigas, por entre a atmosfera pseudo-oriental com as lanternas de papel vermelhas dependuradas e os letreiros escritos em kanji, katakana, hiragana, hanzi e romaji na fachada de lojas, restaurantes e casas de chá, Ishigami chegou a lamentar que não possuísse o olhar petrificante de sua ilustre ancestral, a Medusa original filha dos deuses marítimos Fórcis e Ceto, cujo assassinato nas mãos do bastardo semidivino Perseu, filho de Zeus, fora imortalizado pela mitologia greco-romana. Infelizmente, porém, apenas as Medusas com o mais alto nível de magia possuíam o dom de petrificar com o olhar, e Ishigami era das mais fracas de sua raça; tão só tinha a capacidade de transformar em pedra quem fosse picado por suas serpentes capilares que se esticavam por 5,15m em toda a sua extensão.

Retribuiu o cumprimento de cabeça de um homem baixo e troncudo, de tez amarela e olhos oblíquos, que parecia ter mais pressa do que ela. Um demônio na forma humana. Todas as pessoas que enxameavam as lojas de departamentos, salões de cabeleireiros, videolocadoras, cinemas, teatros e shopping centers da área comercial àquela hora, conquanto indistinguíveis de pessoas comuns, não passavam de demônios, residentes da Academia Youkai ou outros, que o regulamento obrigava a permanecer na forma humana. Porque a área comercial dos Arcos Mononoke funcionava como uma espécie de espelho da sociedade humana, a fim de ensinar aos demônios como conviver em paz com os homens sem o conhecimento deles, assimilando-se a eles e reprimindo seus instintos sanguinários.

"Paz!", pensou a mulher-demônio com desdém. "Paz! Youkais e seres humanos são inimigos figadais desde que o mundo é mundo, não podem coexistir. São raças destinadas a guerrear per omnia saecula saeculorum,até que apenas uma emerja como vitoriosa".

Ela adentrou no Restaurante Kotobuki, que, apesar da fachada nada atraente, vangloriava-se de oferecer uma comida japonesa genuína e um excelente atendimento. Sentou-se numa mesa vaga e pediu o cardápio. "Ele está para chegar", refletiu.

Um Peugeot 206 cinza-prata, saído de um dos túneis dimensionais da Barreira, veio percorrendo a rua principal ladeada por duas fileiras de lojas, cafés, bares e restaurantes, indo estacionar na calçada em frente ao Restaurante Kotobuki. Desceu um homem alto – media 1,81m de altura -, de pele morena escura e físico atlético invejável, que aparentava ter seus trinta e cinco anos. Envergava blazer branco, camisa cinza-chumbo, calças pretas e sapatos mocassim pretos. Tinha uma fisionomia vigorosa e sensual, da tonalidade do cobre. Seus olhos castanho-escuros, quase negros, brilhavam com selvageria incontrolável. Tinha uma vasta cabeleira penteada para trás que, assim como o cavanhaque desenhado desde as costeletas, era negra como carvão. Usava no dedo indicador direito um anel de rubi e ouro tão faiscante que chegava a doer na vista.

Trancou as portas do carro com trava elétrica e entrou no restaurante. Deu uma breve olhada ao redor, observando as pessoas, os aquários de carpas nas paredes vermelhas, os quadros feitos com origami, as pinturas retratando artistas de kabuki, gatos e gueixas, e por fim se dirigiu para uma pequena mesa mais afastada, na extremidade da sala, desocupada exceto por uma figura solitária de mulher que brincava distraidamente com um copo quase vazio de suco de pêssego. Seus olhares se encontraram.

- Khwaja Khurshid Shersorkh – disse ela, acenando com a cabeça envolta em lenço xadrez, levantando os óculos wayfarer para revelar o par de olhos estreitos e amarelos. Sabia que ele podia ver sua verdadeira aparência escondida atrás das camadas de ofuscação. – Pontual como sempre. Fico feliz que tenha atendido ao meu chamado.

- Ishigami Hitomi-san – disse ele, retornando-lhe o aceno. – Para que servem os amigos? Quer dizer que andou tendo aborrecimentos com "alunas-problema"? - Seus lábios espessos repuxaram-se num sorriso malicioso, quase pervertido.

- Mais especificamente, com uma aluna-problema e com o namoradinho dela – retrucou calmamente a mulher-medusa. – Mas, sente-se, por favor. Além dos preços módicos, o Kotobuki é famoso por sua boa cozinha. Aconselho-o a experimentar.

- Boa cozinha iraniana, talvez?

- Receio que não. Mas tenho certeza de que você vai apreciar a culinária japonesa.

- Muito bem. Com sua licença. – Shersorkh avançou e se sentou diante dela.