Olhos
apertados, corações batendo em compasso. Posso ouvir
meu coração batendo ritmicamente, tentando
desesperadamente pular do meu peito. Não quero pensar, mas não
atrevo um movimento. Cada segundo parece uma eternidade, mas não
sei quanto tempo mais eu agüento ficar parada olhando fixamente
para os olhos absurdamente azuis à minha frente. Não
consigo prestar atenção em nada à minha volta,
sou alheia ao barulho, que chega como uma música suave em meus
ouvidos. Lembro vagamente de alguém falando de fogos de
artifício. Agir por impulso, agir por impulso. Tento procurar
por qualquer comando em meu cérebro que ative alguma parte do
meu corpo, mas estou paralisada. Sinto o vento batendo nos meus
ombros e instintivamente envolvo meus braços, mas ele é
mais rápido e em um segundo sinto os lábios dele nos
meus. Isso não pode estar acontecendo.
Verão de 1993
Eu
estava encolhida no canto do armário, ao lado dos cobertores.
Em vão, pois sabia que mamãe logo me acharia, era meu
lugar nada-secreto de esconder. Não demorou muito, e as portas
se abriram, permitindo que a forte luz solar me deixasse cega por
alguns instantes. Mamãe se ajoelhou à minha frente, e
eu pude examinar seu rosto. Era jovem e bonita. Lembro-me que queria
ser igual a ela quando crescesse. Mas o tempo invariavelmente foi lhe
dando as rugas da experiência, e eu fui deixando de desejar
aquilo.
- Ele é estranho, mamãe. – eu murmurei,
ainda com a cabeça entre os joelhos, juntados por meus
braços.
- Ele é seu irmão agora, minha
querida.
Sacudi a cabeça levemente, levantando-a e
recostando-me na pilha de cobertores.
- Não, mamãe.
Eu não tenho irmãos.
- Mas a partir de hoje, terá.
- Porque?
- Porque sim.
- Porque sim não é
resposta.
Diante da minha afirmação, mamãe
me tirou do armário e sentou-me em seu colo. Acariciou meus
cabelos e me olhou como se eu fosse uma recém nascida. Mas eu
não era um bebê, e me irritava o fato de ela me tratar
como um.
- Querida, você precisa de um pai, e no caso, seu
novo pai vai vir acompanhado de um irmão.
- Eu já
tenho um pai. Ele está no céu, mas ele ainda é
meu pai, mamãe! Quero dizer, ele vai voltar, a vovó
disse que eles sempre voltam.
- Sua avó não sabe o
que fala. – Seu sorriso doce se apagou e ela me pôs sentada
na cama. Ela sempre ficava assim quando eu mencionava minha avó.
Ainda que com a idade de sete anos, eu sabia que havia algo de errado
entre elas. Mamãe se levantou. Ela ficava terrivelmente
assustadora e imponente quando ela se levantava daquela maneira. Não
me surpreende que eu tivesse um pouco de medo dela. Mas, convenhamos,
qualquer desconhecido a temia. Realmente não sei como ela
tinha conseguido aquele namorado dela.
-
Que seja, mamãe.
- Não fale assim, Alicia.
-
Desculpe, mamãe.
Juro que se olhar matasse, eu estaria
morta naquele momento. Minha mãe praticamente me queimou com
os olhos. Eu disse que a pose dela dava medo? Não me atrevo a
falar os olhares malignos que ela me dava. Resolvi que era hora de
pôr o amor à minha avó de lado e cooperar com a
situação. Apesar de sentir muita falta de meu pai, eu
amava minha mãe e queria que ela fosse feliz.
- Mãe?
Se eu aceitar que ele seja meu irmão... Você ficará
feliz de novo?
- Muito, querida.
Naquele momento eu fiz a
promessa da qual eu ainda me arrependeria por muito tempo.
- Então
ele vai ser meu irmão.
Ela sorriu e me pegou pela mão.
Eu apertava sua mão, tentando dissipar o nervosismo, mas
sentia que ela também estava nervosa. Descemos as escadas, e
fomos parar na sala, a qual revistei com um olhar, mas não
pude ver nada além de um homem no mínimo três
vezes maior que eu.
- Olá pequena Alicia. – mesmo
ajoelhado, ele tinha duas vezes o meu tamanho. Certo, nem tanto, mas
ele era grande, me entendem?
Soltei um oi tímido com um
aceno de cabeça, ainda tentando descobrir onde aquele garoto
que seria meu irmão de agora em diante estava.
- Você
está melhor? – o coitado ainda tentava manter qualquer tipo
de comunicação comigo, embora minha relutância.
Acenei com a cabeça de novo, mas antes que pudesse responder
qualquer coisa, vi o meu suposto meio-irmão saindo da cozinha
com minha boneca favorita nas mãos.
- EI, O QUE VOCÊ
ESTÁ FAZENDO COM A BUBS?
- Você dá nome pra
esse lixo aqui? – ele apontou para a boneca, fazendo uma careta. Eu
me sentia brava demais para fazer qualquer observação,
então fui direto pra cima dele e arranquei a boneca de pano
das suas mãos. Pensei em dar um murro na cara dele ou qualquer
outra coisa que crianças fazem quando estão bravas, mas
achei que isso não seria uma atitude muito de irmã.
-
Nunca mais toque na Brunella de novo, fedorento. – eu falei entre
dentes. Sinceramente, eu esperava que ele realmente não a
pegasse novamente. Mal sabia eu que aquele era apenas o começo.
Estranhos
conhecidos.
A
noite estava estrelada, a lua estava cheia e eu podia sentir o vento
batendo nos cabelos e insistindo em desarrumá-los. Eu me
deitei sobre o telhado e fechei os olhos por algum tempo. Passos.
Dougie.
- Boa noite, cabeçuda.
- Olá, fedorento.
– abri os olhos e constatei que ele sorria para mim. Momento raro,
muito raro, ou algum alien tinha raptado meu meio-irmão e
implantado um desconhecido ali dentro. Mas quando percebeu o sorriso
bobo que tinha nos lábios, o desfez e mostrou a língua
pra mim. Sem dúvidas, era Dougie. Ele chutou-me levemente,
sinalizando que eu fosse mais pro lado.
- Por que você está
aqui, Poynter?
- Você não deve me chamar de Poynter.
Você é praticamente uma Poynter.
- Eu te chamo do que
eu quiser, Poynter. Porque você está aqui? – repeti.
-
Eles estão brigando. – o garoto me soltou um sorriso
infeliz, e eu sentei e dei espaço para que ele se sentasse ao
meu lado, mas acabamos ficando de frente um para o outro.
- Você
é estranho, Dougie. – eu disse, olhando fixamente para a Lua
cheia no céu.
- Você é estranha, Alicia.
-
Eu sei. – Sorri para ele, que me sorriu de volta e voltei a olhar
para a Lua. – Hoje a Tracy disse que gostava de você.
Desculpe.
-
Porque você está se desculpando? Não é sua
culpa.
- Eu falei coisas ruins de você pra ela. Eu só
queria que ela parasse de ficar "Ah,
o Dougie é isso, o Dougie é aquilo...".
A Tracy é chata, não gosto dela.
- Mas ela não
é sua melhor amiga?
- Não.
Paramos de falar. Eu
não gostava de Dougie, ele não gostava de mim.
Brigávamos a maior parte do tempo, e os momentos de trégua
eram poucos. Geralmente, quando nossos pais brigavam.
- Sabe
Alicia. Eu gosto de você. Você só é um
pouco... boba.
- EI! Eu não sou boba.
- É sim.
-
E você é um, um grosso, Poynter!
Levantei-me
instantaneamente, mas ele segurou meu braço e eu tropecei nos
pés dele, caindo de novo no telhado.
- EI, ISSO DÓI!
-
Era pra doer. Se não fosse, eu não tinha feito. – ele
retrucou. Sentei-me novamente ao lado dele, passando as mãos
compulsivamente no meu joelho, que doía. – Desculpe. Tá
doendo muito? – ele apontou minha perna. Eu apenas acenei com a
cabeça, e ele se aproximou, tirando meu braço do
caminho e dando um leve beijo no meu joelho. Eu o olhava surpresa,
com cara de interrogação, mas ele continuava com o
rosto impassível, como se nada houvesse acontecido.
- O que
foi isso? – perguntei pro nada.
- Um pedido de desculpas.
-
Desculpas aceitas.
Eu podia não demonstrar, mas por
dentro, eu sorria.
Não quebre o despertador, Poynter.
-
Bom dia, flor do dia! – eu disse quando uma cabeça
desarrumada apareceu pela porta da cozinha.
- Só se for pra
você, belezinha.
- Poynter! Não é emocionante
estar no colegial?! – eu perguntei, com um sorriso imenso no rosto.
-
Uau, super! – ele me voltou um sorriso tremendamente falso. Eu o
conhecia há tempo bastante para dizer que era falso, mas se
alguém que não o conhecia bem, podia julgá-lo
como verdadeiro. Dougie podia não ser lá tão
bonito e era bem estúpido quando queria, mas ele sabia fingir
um belo sorriso.
- Você me deprime, Dougie Boy.
- Não
me chame de Dougie Boy. – Deus, esqueci de comentar que ele também
sabe fazer um olhar maligno do cacete. Com todo respeito. Tenho
minhas suspeitas que minha mãe deu aulas particulares de
olhares malignos pra ele.
- Senão você vai fazer o
que? Arrancar o pescoço de mais uma boneca? Eu não
tenho mais bonecas, irmãozinho.
- Você não vai
mesmo calar a boca, Alicia? Pelo amor de todos os santos, já
não basta ter que madrugar, as férias acabarem, a
porcaria da água não esquentar de jeito nenhum e ter
que ir pra uma porra de escola nova bem quando eu já estava me
acostumando com a outra, além de tudo isso, tenho que ouvir
sua voz super irritante logo de manhã cedo?
- Dougie!
Primeiro – fui contando nos dedos – não invoque os santos
sem motivos, segundo: você não está madrugando,
são sete horas da manhã. Terceiro, a água estava
ótima, você que é um fresco e quarto, ahn. Não
tenho quarto. Exceto pelo fato de nós termos ficado na outra
escola tempo o bastante para nos acostumarmos. Ou seja, você é
mesmo fresco.
- Você realmente me irrita. – ele grunhiu.
-
A recíproca é verdadeira, mas hoje eu estou de bom
humor, e nem você vai conseguir me tirar dele. – levantei e
dei a volta na mesa, deixando meu prato dentro da pia e me dirigindo
à porta da cozinha. Antes que chegasse lá, parei atrás
da cadeira de Dougie.
- Sabe, irmãozinho – abracei os
ombros dele e encostei minha cabeça em um deles. – apesar de
tudo, eu gosto de você. Nem que seja lá bem no fundo. Eu
só acho você um pouco... bobo. – E saí. Mas
podia jurar que ele deu um sorrisinho.
Com
quem será que a Alicia vai casar?!
-
FELIZ ANIVERSÁRIO, QUERIDA! – ouvi a voz de minha mãe
ao longe e tudo que pude ouvir em seguida foi um dos meus ossos se
quebrando. Ou algo do tipo. Provavelmente o presente de aniversário
de Dougie pra mim.
- AI! – tive que recuperar o ar pra poder
gritar de dor.
- Bom dia, maniiiinha! – ele gritou em resposta,
ainda em cima de mim. – PARABÉNS A VOCÊ, NESTA DATA
QUERIDA, MUITAS FELICIDADES, MUITOS ANOS DE...
- SAI DE CIMA DE
MIM CARALHO!!!
- Jesus, alguém aqui está de mau
humor hoje... – ele murmurou, me deixando livre daquele pesinho a
mais. É, vou te contar sobre aquele pesinho,
viu...
- Será que vocês não podem nem me
deixar ACORDAR?! Se hoje é MEU aniversário acho que eu
MEREÇO pelo menos isso.
- Ok, ok, meu bem, não se
estresse, faz mal pra pele. Vamos Dougie, vamos.
Finalmente um
momento de paz.
Uau. 17 anos. Sério, não dá
pra acreditar que eu tenha 17 anos. Mentira, dá sim. Credo,
pareci um daqueles tios velhos "OH,
MAS VOCÊ JÁ TEM ISSO TUDO? EU TE PEGUEI NO COLO QUANDO
VOCÊ ERA DESSE TAMANHOZINHO!".
Pois é, bom pra você camarada. Mas eu vivi bastante
dias, e de alguns me lembro claramente. Como o primeiro dia de aula,
o dia em que meu pai morreu, quando vovó morreu, quando eu
conheci o Dougie... E quando eu tive minha primeira espinha, e mamãe
disse que eu estava crescendo. Eu não entendi bem como uma
espinha se tornara índice de crescimento, mas hoje acho que
sei o que ela queria dizer.
- Espera um minutinho! – respondi a
quem batia na porta do meu quarto, terminando de colocar uma blusa. –
O que é?
Abri a porta e a última pessoa que eu
esperava estava plantada em frente à minha porta. Com um
embrulho nas mãos. Haha, aposto que é algum trote
estúpido.
- Posso entrar? – acenei a cabeça, e
abri a porta um pouco mais para que ele pudesse entrar. Ele se sentou
no meio da minha cama (ele adora fazer isso), bagunçando toda
a arrumação que eu tinha feito. Fechei a porta, me
encostei nela e fiquei olhando pra ele, esperando que ele começasse
logo o que tinha a dizer ou fazer. – Bem, querida irmãzinha,
fui incubido dentre os outros membros da família para vir te
comunicar que estamos saindo.
Fiquei olhando pra ele com cara de
interrogação.
- E?
- E o que?
- Pra onde nós
vamos, pra que o embrulho, o que faremos, esse "E".
- Não
sei, sua mãe quer que você vista isso – ele jogou o
embrulho pra mim. - e não sei também. Mas mesmo que
soubesse não te diria, porque hoje é seu aniversário,
então é pra ser tudo surpresa, e por incrível
que pareça, não estou a fim de estragar tudo.
-
Estou tocada. Vou me trocar.
- Ok. – ele se deitou e cobriu os
olhos com meu travesseiro. – Vá em frente. – a voz dele
saiu abafada.
- Isso siginifica que é pra você se
mandar daqui, animal. – bati com uma almofada na barriga dele, até
ele sair, à almofadadas, do quarto.
Abri o embrulho e
estiquei na minha frente o conteúdo. Era o
sobre-perfeito-lindo-maravilhoso-tudo
azul-celeste de lã Gucci, que eu namorava há semanas na
frente da Harvey Nichols. Eu sabia que era o olho da cara e mamãe
devia ter se matado e ao seu cheque especial com a compra, então
totalmente entendo que ela queira ver seu presente aproveitado. AH,
EU TENHO UM SOBRETUDO GUCCI. Joguei o sobretudo por cima da blusa
branca, jeans azul escuro Chloé e botas de camurça, que
eu já estava usando antes, e me olhei no espelho de corpo
inteiro. Ok, eu tinha que admitir que estava bonita. O azul do
sobretudo combinava perfeitamente com o azul dos meus olhos e a calça
me fazia parecer alta. Claro que o salto das botas ajudava, de
qualquer jeito.
- Vamos logo, Alicia, tá pior que noi... –
Dougie abriu a porta, pondo a cabeça pra dentro do quarto. –
...va.
Me virei pra ele e sorri de leve, colocando as mãos
nos bolsos do casaco.
- Eu estou pronta.
- Eu não vou
desgrudar de você nem um segundo hoje. – ele sacudiu a cabeça
e passou um dos braços pelos meus ombros.
- Resolveu dar
uma de super-protetor, é?
- Bem, tenho que proteger o que
pertence à minha família, né.
- Você
realmente é uma piada, Dougie Boy. – eu já estava
esperando seu olhar maligno, mas quando ele se virou pra mim, estava
sorrindo.
- Só porque hoje é seu aniversário,
gatinha.
Ele piscou pra mim e nós rimos.
xx
-
PARABÉNS PRA VOCÊ, NESTA DATA QUERIDA, MUITAS
FELICIDADES, MUITOS ANOS DE VIDA!
- Musiquinha desatualizada,
hein... – murmurei para Tracy, minha melhor amiga.
- Ei! É
seu aniversário, pelo menos hoje você tem que gostar
dela. – ela sussurrou de volta. Minha vontade era de explodir de
rir na cara daquelas pessoas quase totalmente desconhecidas, que
supostamente faziam parte da minha família (a parte distante,
tios, primos e tal), entre meus amigos. Dougie provavelmente entendia
um pouco do meu pensamento, porque parecia segurar o riso também.
Quando nossos olhares se encontraram, não deu muito certo, e
acabamos os dois começando a rir. Eu atrás do bolo,
Dougie na frente dele, tirando fotos. Ele entregou a câmera
para um de nossos primos, e se contorcia de tanto rir. Mas as pessoas
pareciam não notar, pois continuavam com o irritante hino de
parabéns pra mim. Alguém deu um tapa no pobre coitado,
e ele veio parar do meu lado alguns segundos depois, para o tal primo
bater uma foto ou outra.
- Não esquece de me incluir no seu
pedido, hein. – ele sussurrou ao pé do meu ouvido, me
abraçando pela cintura para um flash espocar na frente de meus
olhos.
- FAZ UM PEDIDO! – alguém gritou no meio da
multidão, e só então eu percebi que já
tinham acabado de cantar, e olhavam todos ansiosos pra mim. Olhei
para Dougie, e vi que ele era o único que mantinha, agora, uma
expressão uma expressão séria, mas ao mesmo
tempo, de bom humor, dentre todos.
Fechei os olhos por um
instante, para logo depois abri-los e soprar as dezessete velas.
Todos bateram palmas, e eu virei novamente para meu meio-irmão.
-
Hoje deve ser seu dia de sorte. – disse baixo o suficiente para que
somente ele ouvisse.
xx
Quando finalmente consegui me
ver sozinha, livre de qualquer parente ou amigo inoportuno, subi em
direção ao meu quarto, mas acabei indo até a
varanda e escalando a escada que subia até o telhado. Sentei
na laje plana que havia em meio às telhas e apoiei a cabeça
em uma delas. Ouvi passos e não me surpreendi quando a cabeça
de Dougie apareceu na frente dos meus pés.
- Olá,
moça do telhado. – ele subiu até onde eu estava e
sentou-se do meu lado. O vento bagunçava seus cabelos e fazia,
de tempos em tempos, o capuz de seu casaco flutuar e voltar a seu
lugar. – Você não devia estar aqui, está
frio.
- Eu gosto do vento. Nos faz sentir mais... vivos.
Ele
virou a cabeça para trás e sorriu para mim. E não
era um sorriso falso.
- Vamos, se levanta. – ele fez menção
de se deitar também, e eu dei espaço para ele,
afastando minha cabeça. Mas ele me empurrou de novo e me puxou
para baixo, de maneira que eu ficasse com a cabeça em seu
peito, de lado. – Como você se sente com um ano a mais? –
ele fez cara de sério.
- Exatamente igual à ontem.
-
Sua sem graça.
Nós rimos e eu apertei o sobretudo
em volta do corpo. Dougie passou o braço esquerdo por baixo de
mim, e me apertou mais de encontro a ele. Nada como calor humano.
-
Diga alguma coisa. – eu cutuquei a costela dele.
- Eu não
preciso dizer nada. – ele olhava fixamente para mim, e eu retribuía
seu olhar.
- Você é estranho, Dougie. – eu disse,
sem desviar o olhar, mas me lembrando de um verão a muitos
anos atrás.
- Você não é estranha,
sabe. Você é forte, adorável e de algum jeito,
mesmo que secretamente, sempre me faz sorrir. Eu te amo, Ally.
Desviei os olhos finalmente e fechei-os, para abri-los. Por um
segundo, fiquei sem entender, mas algo aconteceu, e meu coração
bateu mais forte. Embora eu não entendesse, algo dentro de mim
entendia. Pude ouvir meu coração batendo ritmicamente,
tentando desesperadamente pular do meu peito. Não pensava, mas
não atrevia um movimento. Cada segundo pareceu uma eternidade,
não sei quanto tempo agüentei ficar parada olhando
fixamente para os olhos absurdamente azuis à minha frente. Não
conseguia prestar atenção em nada à minha volta,
alheia ao barulho, que chega como uma música suave em meus
ouvidos. Lembro vagamente de alguém falando de fogos de
artifício. Agir por impulso, agir por impulso. Procuro por
qualquer comando em meu cérebro que ative alguma parte do meu
corpo, mas estou paralisada. Sinto o vento batendo nos meus ombros e
baguçando meus cabelos, e instintivamente envolvo meus braços,
mas ele é mais rápido e em um segundo sinto os lábios
dele nos meus. Seus lábios são macios e procuram os
meus com certa urgência. Demoro pra ver que os meus retribuem,
e a sensação é tão boa que o calor se
espalha pelo meu corpo, fazendo com que eu afrouxe meu braços.
Eu poderia ficar assim por um bom tempo, mas alguma coisa na minha
mente faz eu puxar minha cabeça pra trás e me sentar.
Isso não pode estar acontecendo. Meus olhos se enchem de
lágrimas e tudo que vejo são borrões.
- Você
não tinha esse direito. Isso não é justo, você
não tem o mínimo direito.
- Ally...
- Me deixa em
paz, Dougie!
Levanto, tropeçando em meus próprios
pés e Deus sabe lá como, consigo descer as escadas sem
cair, correndo pro meu quarto, para poder passar a noite inteira
chorando. É, realmente não era justo.
É um crime ou estou só exagerando?Durante um ano, Dougie não olhou para mim. Se nos falávamos, era por obrigação, e dificilmente compartilhávamos o mesmo ambiente sozinhos. Nenhum de nós ia mais para o telhado e evitávamos de até mesmo pronunciar os nomes um do outro. Mas se eu pudesse ver o que Dougie pensava e ele pudesse fazer o mesmo com relação a mim, perceberíamos que o que nós chamávamos de raiva era confusão, de não ter idéia do que estava acontecendo. Mas nós não podíamos, e ambos fomos embora de casa para cantos diferentes do mundo sem trocar palavras carinhosas ou odiosas de despedida.
Feliz
aniversário, Dougie.Respirei
fundo três vezes e toquei a campainha. Era um apartamento no
sétimo andar de um prédio não muito grande,
porém claro e limpo. Ouvi barulho de chaves pro trás da
porta. Ainda não sabia de onde tinha tirado coragem para ir
até lá, mas agora era tarde demais pra desistir. A
porta se abriu um pouco e um rosto levemente conhecido apareceu pela
fresta aberta.
- O que você está fazendo aqui? – a
porta se abriu totalmente, revelando Dougie, meu meio-irmão de
muitos anos atrás. Que não era mais meu meio-irmão,
considerando que nossos pais haviam se separado há vários
anos.
- Olha, eu só preciso falar algumas coisas e já
te deixo em paz.
- Você tem dez minutos.
Ele saiu da
frente da porta para eu passar por ela, fechando-a em seguida e
sentando-se num espaçoso sofá. Eu andei até a
varanda do outro lado da sala e olhei para o Rio Tâmisa que se
estendia pela paisagem que era possível ver pelo vidro. Que
vista. Meu devaneio foi interrompido por Dougie, que limpou a
garganta nada discretamente, esperando que eu falasse algo.
- O
negócio é que... – eu vacilei. Não fazia idéia
de como falar tudo aquilo. – Durante esses últimos cinco
anos, eu me senti sozinha como nunca. Tentei me distrair com tudo que
era possível, me concentrando nos estudos e na minha carreira,
escondendo, camuflando algum e todo tipo de dor. Eu tentei voltar pra
casa, mas não sentia como se estivesse em casa, e todas as
lembranças boas desapareceram. Então eu tentei fugir de
tudo que lembrasse aquele lugar, e procurei por um que eu pudesse
chamar de lar, mas tudo que eu fazia era fugir, fugir de tudo e
todos. Perdi a conta de quantas vezes eu peguei o telefone para te
ligar, porque o vazio era insuportável, mas de alguma forma,
eu sempre desistia. Tentava sim achar motivos, quaisquer que fossem
para falar com você, mas nada me convencia. Tudo só
parecia desmoronar, comigo no meio de tudo aquilo, e eu nem sequer
soube recomeçar. Era um turbilhão de lembranças
perdidas, oportunidades que eu deixei passar, e, por Deus, eu me
senti como lixo. Eu precisava de alguém para me abraçar
e me apoiar, eu sentia o vento daquele dia de setembro e me sentia
velha, como se tivesse perdido todas as esperanças e não
tinha nem um ombro pra chorar. Chorar por aquele ano antes de irmos
embora, Dougie. Eu não sei o que aconteceu no dia do meu
aniversário, mas nada foi pior que aquilo. Era tudo tão
cheio de mentirinhas pessoais, por acaso era meu castigo? Porque eu
não acredito que eu vou conseguir enterrar o passado e ficar
bem, porque eu não consigo entender como você
simplesmente me jogou fora! Você mentiu pra mim e eu te culpo
por cada uma das mentiras, porque você nem tentou me explicar o
que aconteceu naquela noite. E eu, inocente ou idiota, fiquei
esperando por uma explicação. Eu não sei o que
você queria, mas seja lá o que tenha sido, você
conseguiu. Mas infelizmente você ainda é o único
pra quem eu possa correr, como eu corria pro telhado quando nossos
pais brigavam e você ia me consolar.
Parei de falar
bruscamente, ofegante. Eu chorava como se fosse a última coisa
que pudesse fazer, mas Dougie simplesmente me olhava calmamente, como
se eu estivesse rindo ali na frente dele. Algum tempo se passou, e
acho que a água do meu reservatório de lágrimas
secou e afetou a parte depressiva do meu cérebro, porque tudo
pareceu bem. Simples assim, como se um peso tivesse sido tirado de
mim. Estava tentando decidir se eu tinha morrido ou se tudo não
tinha passado de um sonho. Mas Dougie continuava ali com sua
expressão impassível. Sem olhares malignos. Sem
sorrisos falsos. Sem pedidos de desculpas. Talvez simplesmente não
fosse minha hora.
- Bem, acho que meus dez minutos se passaram. –
fui até a porta e comecei a girar a maçaneta. Mas algo
me impediu e virei para trás novamente. – Me diga uma coisa,
Dougie. Você é feliz? Você se sente plenamente
realizado? Completo, sem peso na consciência pelo passado?
Esperei que ele se manifestasse, mas ele nem se moveu.
- Foi
o que eu pensei.
Abri
a porta e passei para o corredor. Sentia-me aliviada. Porém
assim que saí pelas portas duplas do prédio, senti meu
braço sendo agarrado e Dougie puxou me junto à ele.
-
Olha, eu sei que posso não ter terminado o que comecei. E você
não faz idéia do quanto isso acabou comigo. Mas como
você mesmo disse, eu não tinha o mínimo direito
de fazer aquilo com você. E todos os dias da minha vida, as
suas lágrimas me assombraram, fazendo meu arrependimento
persistir durante tudo o que eu fazia. Então eu desisti de
tentar quebrar minha cabeça e passei a fazer tudo o que podia
para esquecê-la. Mas não houve um dia em que não
sentia os seus lábios sobre os meus, como se tudo tivesse
acontecido no dia anterior. E quando eu percebia que não
passava de uma ilusão, simplesmente desejava que onde quer que
você estivesse, fosse feliz. E era o máximo que eu pude
fazer, durante todo esse tempo. – ele parou para tomar fôlego.
– Agora você me aparece do nada, e apesar de ser o que
deveria fazer, não quero pôr um ponto final nisso.
Porque não importa o quanto seja ruim sentir todos os dias a
mesma culpa, pelo menos desse jeito eu tenho um pouco de você
comigo. O pouco que esteve comigo e preencheu o vazio nas horas de
solidão. Por favor, não me deixe só agora que eu
te encontrei.
- Não sei, Dougie. Eu passei anos e anos
tentando te esquecer. E agora que tudo parece sumir, você quer
fazer com que tudo volte. Eu não sei se posso fazer isso.
Perdoar é uma coisa. Eu te perdoei, eu te perdôo. Mas
esquecer... Esquecer é outra coisa. Eu não estou pronta
pra te aceitar ou te entender. Desculpe.
Desvencilhei meu braço
da mão dele e fui embora, deixando para trás a única
pessoa que um dia consegui gostar de verdade. E a última
lembrança do que algum dia eu havia sido.
