Enquanto ele trabalhava em silêncio no canteiro ao redor da casa, eu me debrucei em meus próprios joelhos, abraçando-os com as minhas mãos enfeitadas com cicatrizes e apoiando o meu queixo em uma delas. Permiti aos meus olhos observá-lo por algum tempo – eu não sei exatamente quantos minutos ou horas se passaram no relógio, mas isso não importava – e não ousei atrapalhá-lo. A verdade é que eu era um desastre quando se tratava de jardinagem. Eu sabia um pouco sobre frutas comestíveis, sobre plantas que podiam curar e sobre quais eu deveria manter distância, mas nunca, em toda a minha vida, eu aprendera como plantar uma flor ou até mesmo como cultivá-la.
Peeta, ao contrário, levava jeito para aquilo.
Não deveria ser muito diferente de enfeitar um bolo. Pelo menos, para mim, não parecia. O jardim deveria ser como um gigantesco bolo desnudo de qualquer enfeite, só coberto pela cobertura que era a grama. As flores tão alaranjadas se encaixariam como os bonitos enfeites que deixariam o bolo chamativo, com uma aparência apetitosa... E Peeta sabia como ninguém como moldar algo desastroso e transformá-lo em algo belo.
Eu não sabia que ele havia reparado em mim, afinal, ele estava tão concentrado escavando e atirando um punhado de terra para um monte feito por ele mesmo que eu acreditava não ter chamado sua atenção. Foi somente depois de muito tempo que Peeta entortou a cabeça, de modo a encarar-me por cima do ombro e então dizer:
— Você realmente não sabe como iniciar uma conversa.
Eu dei um sorriso pequeno, um tanto quanto torto, e balancei a cabeça em sinal de que eu concordava com ele. Eu era péssima em várias coisas e Peeta parecia saber enumerar todos os tópicos em que eu era um fracasso completo, mas ele nunca utilizava aquilo contra mim. Na verdade, eu sabia que ele deveria achar uma certa graça por ser tão bom no que eu era completamente leiga.
Ser simpático, educado, carinhoso e sociável, por exemplo.
— Eu não queria distrair você. — falei com sinceridade, vendo como a testa dele enrugava e como a pá se cravava na terra arada.
— Eu não sei se você ainda não percebeu, Katniss, mas você tem o dom de me distrair. — foi a vez dele sorrir minimamente, um tanto quanto deliciado com a situação por me fazer corar levemente.
Cobri o meu rosto discretamente com as minhas mãos – não que fosse adiantar muito – e resmunguei alguma coisa qualquer em resposta. Eu provavelmente devo ter lançado alguma palavra mal educada, mas não conseguia me recordar nos segundos que se seguiram.
Peeta não disse mais nada por algum tempo. Voltou a trabalhar com concentração no canteiro e me deixou ali, absorta nos meus próprios pensamentos. Olhei para o céu em algum momento, vendo como a coloração ganhava uma tonalidade mais escura, de um vermelho-vivo misturado com um azul-celeste. Era como ver o céu pegar fogo aos poucos, enquanto deixava a noite se aproximar.
Pelo Distrito 12 ser um lugar de minas, o céu sempre ganhava uma cor estranha quando o dia nascia ou quando a noite chegava. Era como se a fumaça não permitisse que as cores fossem claras em instante algum. Era sempre um vermelho berrante, um azul meio sujo e um amarelado que doía ligeiramente os olhos. Para quem nascera ali, era algo normal de se ver, e eu agradecia por ter a oportunidade de ver um céu, depois de ter passado tantos meses debaixo da terra, vivendo no subterrâneo, ou sem ter ao menos uma chance de olhar para cima sem ver paraquedas ou bombas caindo.
Quando eu abaixei a minha cabeça novamente, deparei-me com Peeta limpando o suor na barra da camisa. Dava para notar as cicatrizes percorrendo-lhe toda a extensão da barriga, assim como havia uma quantidade considerável de cicatrizes subindo-lhe pelo braço. Algumas eu não sabia de onde haviam surgido. Outras eu era bem familiarizada. Por mais que aquelas fossem as evidentes, as que apareciam para o mundo, eu sabia como ninguém que as piores eram as cravadas no interior. Nos órgãos. Na alma. No que nós éramos e em quem nós viríamos a ser. Já haviam tirado tanto de nós que sinceramente, era até um tanto quanto suspeito nos mantermos de pé, suportando um dia após o outro. Nossa família e nossos amigos haviam sido tirados de nós de formas bruscas e a lembrança de cada pessoa querida enterrada ou perdida para uma Guerra nos perturbaria pelo resto de nossas vidas... E aquele era o principal motivo de eu admirar Peeta com todas as minhas forças: ele permanecia em pé e me ajudava a ficar também. Mesmo em seus acessos de confusão, onde a realidade esvaia pelos dedos dele, ele fincava os dedos na superfície e não se deixava mais levar para um mundo onde mentiras explodiam de todos os lados; onde o irreal era padrão.
Norteei minha cabeça em direção a casa onde ele morava, mas não para o lugar onde ele costumava passar a maior parte de seu tempo, ou suas noites. A casa não era diferente da minha, sendo um sobrado e mais bonita do que qualquer casa que já existiu no Distrito 12 – não que agora exista muitas casas por aqui -, mas o que sempre me chamou atençãoforaé a diferença absurda que existia entre elas, ainda sim. A minha casa era uma moradia. A de Peeta, era um lar. Pelo período em que nós moramos aqui, depois que voltamos da arena como vitoriosos pela primeira vez, a minha casa sempre estava afundada em um silêncio devastador, onde só os miados agudos de Buttercup provavam que a casa não estava deserta. Às vezes Prim ria e a risada dela ecoava pela casa inteira, inundando os cômodos e trazendo um pouco de uma felicidade momentânea para nós. Agora que eu não tinha mais a minha irmã, o único ruído vinha do gato.
Já na casa de Peeta, sempre havia algum barulho. Fosse os gritos da mãe dele, a risada sonora do pai dele, ou até mesmo algo que sempre prendia a minha atenção quando acontecia... Às vezes, quando o pai dele chegava da padaria, no final da tarde, ele colocava um velho disco para tocar e eu escutava a voz rouca de uma mulher soando por debaixo da janela da sala e imediatamente eu sentava na varanda, às vezes com Prim ao meu lado, para escutar diversas vezes a mesma música.
Eu nunca compartilhara aquela informação com Peeta. Sobre a música ou sobre o CD. Era algo que eu tinha medo de falar à respeito, porque pareceria que eu vivia na penumbra, procurando saber da vida dele, mas nunca perguntando diretamente. Sendo uma covarde. Sendo uma confusão. Por isso eu simplesmente apoiava a minha cabeça no corrimão da escada e deixava a cabeça de Prim descansar entre os meus joelhos. Tinha dias que, quando o CD parava de tocar, eu e Prim continuávamos do lado de fora, em silêncio, aproveitando a companhia uma da outra, até que ela cantarolava um trecho e sorria para mim no final.
My funny valentine...
Sweet, comic valentine...
You make me smile with my heart
Your looks are laughable, unphotographable
yet your my favorite work of art
Pensar em minha irmã doía. Mais do que qualquer ferida que eu já havia tido. Mas eu preferia pensar nela do que tentar afastar a sua imagem de minha cabeça. Doía, contudo, era uma dor necessária. Pensar em Prim era o principal motivo de eu levantar todos os dias e viver o novo dia com a cabeça erguida. Pensar em Prim era a razão por eu não desperdiçar todos os sacrifícios por um futuro esperançosamente melhor. E pensar nela era ter a certeza de que eu sempre a teria ali, em minha cabeça e em meu coração, e que eu nunca, nunca me permitiria esquecer o som da voz dela, a beleza de seu sorriso ou dos seus olhos azuis incrivelmente doces.
Retornei a olhar para Peeta, perguntando-me se ele plantava aquelas flores por mim ou por Prim. No fundo, eu sabia que ele fazia isso pelas duas. Eu não tinha tomado conhecimento de que Peeta realmente conhecia Prim até Haymitch me contar, logo após a nossa volta ao Distrito 12, que a minha irmã tivera uma grande participação na recuperação mental de Peeta, porque ele conhecia ela... Peeta conhecia a minha irmã e nenhum dos dois havia me contado. Eu tive muito tempo para pensar sobre isso sozinha, pois Peeta ainda não havia retornado do Distrito 13 quando a informação chegou aos meus ouvidos. Demorou um tempo para a sensação de uma leve traição sair de minha cabeça, e logo a conformação de que os dois deveriam ter sido bons amigos, algum dia que parecia ser muito distante agora, por serem tão parecidos... Ambos eram pessoas doces, carinhosas e se preocupavam com as pessoas; se preocupavam comigo. Eram bons com as palavras, bons em dar conselhos e bons em fazer companhia. Prim e Peeta, juntos, provavelmente conseguiam conversar e sorrir com naturalidade e eu me peguei pensando em um simples piscar de olhos como Peeta deveria ser uma das pessoas que deveria estar sofrendo com sinceridade em relação a morte da minha irmã, e como a cada flor que ele plantava, a cada buraco na terra que ele fazia, o meu carinho por ele crescia.
Peeta sofria comigo. Peeta sofria por mim. Peeta sofria pelo meu sofrimento.
E eu, vergonhosamente, mal sabia o que se passava na cabeça dele em relação à morte de sua família ou sobre a morte de seus amigos do Distrito 12. Eu não possuía amigos aqui, além de Gale ou Madge, mas Peeta sempre fora popular. A maioria das minhas lembranças antigas que eram dele, quase sempre eram relacionadas com um Peeta mais jovem, mais descontraído, que vivia rodeado de pessoas e que conseguia arrancar risada de todos com facilidade. Aquele Peeta mais jovem, que me intimidava mais do que qualquer outra pessoa no mundo, e que agora era órfão e não deveria saber do paradeiro da grande maioria de seus colegas.
Peeta também havia perdido muito. Muito. E eu sofria pelo sofrimento dele.
Mas eu sofria em silêncio.
— Você está precisando de ajuda? — perguntei, depois de chegar à conclusão de que ele deveria estar trabalhando a mais de quatro horas sem parar.
Trabalhar deveria surtir o mesmo efeito em Peeta do que alguma droga para esquecer. Desde que ele voltara para cá, além do jardim, ele estava reconstruindo a padaria e ajudando a fazer rascunhos de uma nova cidade. Sempre o via esboçando algum desenho durante o café da manhã... Uma escola, um hospital, uma praça... Era bom ver que Peeta estava ocupando a cabeça dele com uma coisa que ele gostava, e eu sentia um certo alívio em vê-lo desenhando e pintando como antigamente, pois eu via o meu Peeta, o garoto que havia desenhando no livro de plantas medicinais da família, ali. Não o garoto que usava o dom que tinha para pintar quadros sobre a Arena ou sobre toda a dor que sentia, não o garoto corrompido pela Capital, e sim o doce garoto que tinha uma criatividade enorme e que sabia usá-la como poucos.
— Katniss, sem querer parecer mal educado, mas dá última vez que você tentou me ajudar com o jardim, você praticamente cavou um fosso. — entortei o nariz com as palavras dele, mas dei um sorriso relembrando da cena. Eu estava tão distraída que realmente cavei mais fundo do que deveria. — E eu já estou terminando por hoje.
— Você está trabalhando há mais de quatro horas ai, Peeta. Você deve estar cansado. — falei com certa preocupação, pois conseguia ver como as veias dele saltavam por seus músculos.
Vi de relance ele sorrir mais uma vez. Não sei por que, mas todas as vezes que Peeta sorria, eu sentia as minhas bochechas queimarem um pouco. Ultimamente a minha preocupação com ele era quase maior do que nos dias de guerra, mas por razões diferentes. E ele sabia disso. Eu sei que ele sabia. E Peeta parecia se divertir ao ver que eu estava ultrapassando todas as barreiras de frieza, que me eram tão comuns antigamente, e me colocando tão exposta a ele e aos meus sentimentos por ele. Minhas bochechas arderam um pouco mais logo depois que eu finalizei esse pensamento.
— Sabe o que você poderia fazer para me ajudar?
— O que? — perguntei, já de pé e com disposição. Escutei uma risada de Peeta com a minha empolgação e cerrei as sobrancelhas.
— O jantar.
Eu devo ter feito uma carranca assustadoramente engraçada, pois Peeta nem ao menos conseguiu disfarçar a gargalhada. Ele sabia bem que poderia pedir pela minha ajuda em qualquer que fosse o trabalho manual, porque eu preferia qualquer coisa a ficar dentro de casa, organizando as minhas coisas, lavando as minhas roupas ou preparando a minha comida. De fato, desde que eu voltara para o Distrito 12, até mesmo antes disso, eu não me recordava qual fora a última vez que eu cozinhara para mim ou para outra pessoa. Greasy Sae parecia apta a não me deixar morrer de fome, pois ela e a sua netinha continuavam me trazendo comida, mesmo semanas após a minha volta. Eu tinha a comida de Sae, assim como eu tinha os quitutes saborosos que Peeta preparava e sempre me entregava aos montes. Por isso e por outras razões, a cozinha era um lugar que eu frequentava por poucos minutos e eu não sentia falta de ficar por ali. Ironicamente, quando não faltava comida nas prateleiras, eu não tinha tanta fome. Eu acredito que o fato de eu não ter mais com quem compartilhar comida acabou me pegando desprevenida na primeira semana em que pus os meus pés no meu Distrito, e a fome acabou se tornando um mero acessório do meu corpo. Raramente eu sentia vontade de comer. Comia porque tinha duas pessoas conferindo meticulosamente cada garfada que eu enfiava em minha boca, mas somente por isso...
— Não faça essa cara. Talvez você goste de preparar o jantar hoje...
— Por que eu gostaria? — entortei o nariz, levemente emburrada.
— Você não viu a caixa em cima da mesa? — a pergunta que ele fez foi ridícula e ele deve ter percebido isso, pois complementou logo em seguida: — Certo, eu deveria ter avisado você.
— O que tem nessa caixa? — questionei-o mostrando curiosidade e esperei que ele limpasse as palmas das mãos sujas de terra em um pano já encardido para me dizer:
— Foi Annie quem enviou. Ela escreveu uma carta para você, mas, além disso, ela mandou uma boa quantidade de frutos do mar do Distrito 4.
— Annie escreveu uma carta para mim?
— Está em cima da mesa. Eu só abri a caixa porque senti o cheiro do peixe e eu precisava salgá-lo e colocá-lo para refrigerar antes que apodrecesse.
Eu não escutei o que ele disse a partir da hora em que ele terminou de falar da localização da carta. Por mais que eu recebesse uma grande quantidade de cartas, sendo elas vindas desde o Dr. Aurélio, que estava incumbido de me afastar o máximo que conseguisse da loucura absoluta, e de algumas pessoas queridas, como Octavia ou até mesmo minha mãe, eu não tinha muita vontade de lê-las. Lia por obrigação. E algumas da pilha ainda se encontravam intactas. Mas Annie havia escrito para mim... E por uma fração de segundos eu vi Finnick de relance, apoiado em uma árvore, piscando um olho para mim e dando um sorriso daquela forma dele de sorrir. Tão pouco me importava se era uma rápida alucinação, porque eu já estava acostumada com a aparição dele e de outros fantasmas em meus pesadelos, mas Annie me fazia lembrar apenas do melhor de Finnick, e eu me agarrava em tudo o que ela oferecia dele.
Afastei-me de Peeta sem dizer uma palavra. Entrei correndo em minha casa e fui de imediato para a sala, pegando a carta dentro de uma das caixas esparramadas por ali e sentando no sofá com as pernas cruzadas, tremendo de uma forma absurda na hora em que abri o envelope. Meus olhos percorreram a folha do início ao fim e acabei devorando as palavras de Annie. Além de me passar o telefone da casa dela, ela mandou novidades do bebê. Disse que se sentia solitária no Distrito 4, mas que estava começando a se acomodar na antiga casa de Finnick, que por sorte não havia sido destruída por não se localizar perto da cidade, e que em breve gostaria de nos ver. Nos ver. Deduzi que a outra pessoa era Peeta, porque ela nunca havia tido um grande contato com Haymitch. Assim que as últimas palavras foram lidas por mim, comprimi a carta contra o meu peito e pude sentir o cheiro de areia escapando do papel.
Eu nunca tive a oportunidade de me desculpar diretamente com Annie pelo que aconteceu com Finnick. Poucas palavras foram trocadas por nós quando eu voltei para o Distrito 13, porque cada uma estava enfrentando o seu luto. Nos poucos dias que minha mãe permaneceu no 13, eu soube que toda a ajuda que ela pode oferecer a Annie, ela ofereceu. Eu sei que todos haviam ficado preocupados com ela, sobre ela se desligar mais uma vez do mundo depois da perda de Finnick, mas eles duvidavam da capacidade de Annie de se manter firme perante uma situação como a que nós vivemos. Mas Annie estava grávida de um bebê de Finnick, por isso eu sempre soube que ela não ousaria deixar-se apagar. Ela cuidaria daquele bebê com toda a atenção e com todo o amor que ela possuía, e eu sabia disso porque a cena de Finnick comprimindo o corpo dela contra a parede como se eles fossem um só, logo após que ela fora resgatada, nunca sairia de minha cabeça.
Annie era uma das pessoas mais fortes que eu já conhecera.
Guardei a carta com cuidado em uma gaveta da mobília da sala, onde eu colocava as cartas que havia recebido de Cinna em outrora e as cartas de minha mãe. Eu responderia mais tarde, quando conseguisse encontrar palavras suficientemente boas para dar-lhe uma resposta que soasse ao menos agradável. Palavras nunca foram o meu forte, então escrever cartas era algo que me aterrorizava.
Suspirei baixo, puxando a minha calça jeans velha para cima, impedindo das barras seguirem arrastando no chão e encardindo ainda mais e me encaminhei para a cozinha. Peeta pedira para eu ajudá-lo, e a ajuda era fazer o jantar. Anne havia enviado uma boa quantidade de frutos do mar, pelo que eu pude ver, e, felizmente, eu tinha alguma habilidade em cozinhar peixes. Pelo menos eles ficavam comestíveis. Lavei as mãos e me dediquei ao trabalho na cozinha em silêncio, esquecendo-me de pensar sobre qualquer coisa enquanto lavava as trutas e tentava temperar o melhor que eu podia. Devo ter passado um bom tempo na cozinha, pois quando Peeta entrou pela porta, ele estava de banho tomado e com uma gaze enrolada na mão direita.
— O que aconteceu com a sua mão? — perguntei ao mesmo tempo em que me afastava do balcão e me aproximava dele para tocá-lo no lugar que deveria estar machucado. Ele simplesmente deu de ombros ao responder:
— Nada demais. Fui colocar um arame no jardim e acabei me cortando, mas não é nada que precise amputar. — a simplicidade com que ele falou sobre o machucado me irritou um pouco, porque Peeta sabia que qualquer ferimento que ele tivesse ou viesse a ter acabaria por me preocupar. Nós éramos daquele jeito. Infelizmente ou felizmente, nós nos preocupávamos um com o outro. — O cheiro está delicioso.
— Você lavou isso bem?
— Katniss, não precisa se preocupar, o kit de primeiros socorros já é um amigo conhecido. — a suavidade na voz dele quase ocultou a tristeza e eu me peguei suspirando melancólica para ele.
Peeta notou e, como ele não fazia em semanas – ou seriam meses? -, ele segurou-me pelos cotovelos e me puxou facilmente para perto dele, beijando-me na testa e colocando uma mecha de meu cabelo para trás de minha orelha. Tentei ser indiferente ao contato e não fraquejar, ainda sim senti como a minha pulsação se desregulou e como a minha respiração ficou pesada. Torcendo para que ele não estivesse se importando com o que se passava comigo, virei à cabeça, olhando para o fogão e arranjando uma desculpa para sair daquela região de conforto o mais rápido que eu conseguia.
Um apito suave ecoou pelas quatro paredes da cozinha, anunciando que a comida estava pronta e assim que eu retirei o prato de trutas do fogão, pude sorrir um tanto quanto orgulhosa de mim mesma. Realmente, cheirava bem. Melhor do que a maioria das comidas que eu já havia ingerido em minha vida. E eu esperava que o gosto fosse suficientemente bom para mostrar à Peeta pelo menos um pouco do quanto eu estava agradecida a ele pelo jardim.
— Você usou as amêndoas que eu trouxe.
— Eu espero que você não se importe. — falei rapidamente, pegando os nossos pratos e talheres e distribuindo-os pela mesa. — Parecia ser uma boa combinação.
— Eu as trouxe para você comer, Katniss. Normalmente quando Gale ia a padaria trocar algum esquilo por pão, ele pedia os pães com amêndoas. Eu conclui ao longo dos anos que você deveria gostar. — Peeta sentou de frente para mim, sem olhar-me nos olhos, e eu acabei por morder o meu lábio inferior, surpresa por ele estar conseguindo encontrar lembranças cada vez mais complexas, mesmo após tudo o que ele havia passado.
E a maioria das lembranças ainda era relacionada comigo.
— Você está certo. Eu gosto de amêndoas. — ofereci um dos pães que ele havia preparado para ele mesmo e depois coloquei um em meu prato. Educado como sempre, Peeta se ofereceu para servir e eu não recusei, apenas esperei ele colocar a comida em meu prato para depois agradecer mais uma vez. — Você sempre prestou atenção nos detalhes. — eu comentei, e, logo após, não soube de onde retirei aquela frase ou como consegui proferi-la.
— Não exatamente em todos os detalhes, só os que me interessavam... — depois de terminar de falar, ele me olhou com uma certa intensidade e eu me senti inferior como eu sempre me sentia diante da grandiosidade dos olhos azuis dele. Eu quis falar qualquer coisa, mas a minha garganta estava seca. — Se eu soubesse que você cozinhava tão bem assim, Katniss, não teria roubado as suas oportunidades de ir para a cozinha...
— Acredite, você está me fazendo um favor me mantendo longe daqui. — traguei um pouco da minha truta e encarei o meu prato com veemência quando ele elogiou mais uma vez o que eu preparara. — Como estão as coisas na cidade?
— Você precisa ver como a cidade está ficando uma beleza. — Peeta ficava sempre tão empolgado quando falava sobre as novidades da cidade que eu poderia falar sobre aquele assunto pelo tempo que fosse, somente para vê-lo bem daquela maneira. — Você poderia me acompanhar até lá, qualquer dia. Você veria como a escola está quase pronta e como o mercado e o Hospital estão sendo construídos rapidamente. O Distrito 3 vai nos enviar algumas televisões e alguns aparelhos para colocarmos no Hospital e o Distrito 7 está enviando levas de madeiras diariamente. A reconstrução está sendo mais rápida do que todo mundo pensou que seria.
— Isso é ótimo. — fui sincera e sorri um pouco para ele, antes de dar mais uma garfada. — Haymitch está reclamando que o mercado ficará mais longe do que o Prego era, então ele terá que dar mais alguns passos para encontrar uma garrafa de álcool.
— Seria estranho caso Haymitch não reclamasse de alguma coisa.
— Isso é verdade. — demos risadas baixas enquanto terminávamos de digerir nossas comidas e, ao citar o nosso ex-mentor, eu percebi que havia feito mais comida do que duas bocas poderiam comer. Peeta poderia deixar uma truta para ele mais tarde.
Na hora de lavar a louça, Peeta se aconchegou ao meu lado na pia para me ajudar com as coisas. Enquanto eu passava a bucha e o sabão, ele secava as coisas e se esticava para colocá-las nas suas devidas gavetas. Era um tanto quanto divertido vê-lo se contorcendo ao meu lado e um tanto quanto ridículo. Soltei uma daquelas risadas pelo nariz e balancei a cabeça, sabendo que ele sorriria em resposta sem dizer uma palavra.
Terminamos de organizar tudo e sentamos no sofá, de frente para a televisão. Eu não costumava ligar a TV. Não me trazia boas lembranças. Então ela permaneceu desligada e Peeta não reclamou. Eu em uma ponta do sofá, abraçando os meus joelhos; ele, em outra, com a cabeça apoiada no encosto e com os olhos fechados. Aproveitei a oportunidade para observá-lo com mais atenção... Por mais que a luz do cômodo estivesse fraca e a maior parte da iluminação viesse do lado de fora, ainda sim eu conseguia enxergar com perfeição e facilidade os longos cílios loiros dele, que sempre prendiam a minha atenção por serem quase brancos e formarem um bonito conjunto com os seus olhos azuis. Peeta tinha poucas sardas espalhadas pelas bochechas, mas eram claras, não de uma pigmentação forte, por isso se misturavam com a cor de sua pele e mal apareciam. Eu me perguntava se ele possuía algumas daquelas espalhadas pelo resto do corpo, mas a oportunidade de procurar por elas nunca tinha surgido. As cicatrizes eram praticamente nulas na região de seu rosto. Havia uma pequenina na sobrancelha direita, uma logo abaixo da orelha esquerda e uma no início do pescoço, mas eram cicatrizes tão singelas que eu poderia dizer que ele havia ganhado-as quando era uma criança, e não lutando pela sua sobrevivência.
Peeta tinha uma beleza diferente da de Gale. A beleza de Gale era rude, quase assustadora. Eu entendia porque as garotas da escola costumavam olhar para ele com tanto desejo, mas me perguntava se alguma delas era realmente apaixonada por ele: por quem ele era, e não pelas fantasias que criavam dele. Mas com aqueles ombros largos e olhos quase negros, não sobrava muita duvida de que elas não se importariam com a personalidade dele. Eu conhecia Gale como ninguém, e, consequentemente, sabia de suas dores e temores. Sabia como ele poderia ser frio, calculista, e como ele poderia ser, da forma dele, sensível. Eu via a beleza dele e sabia que somente se eu fosse cega eu não conseguiria enxergá-la, mas quando eu analisava a beleza de Peeta...
Era algo diferente.
Era uma beleza frágil, quase quebrável. Às vezes Peeta parecia ser de uma pureza tão surreal que eu tinha medo de tocá-lo e descobrir que ele não passava de um delírio ou de um sonho bom. O que Gale tinha de prepotência, Peeta tinha de benevolência. Não era a aparência de Peeta que o fazia ser tão bonito, e sim o seu coração, os seus olhos calmos, o seu sorriso doce. Eu também via como as garotas olhavam para ele, quando estávamos ainda no colégio. Pelo rabo dos meus olhos eu podia ver os sorrisos apaixonados, escutar os suspiros encantados e os rabiscos de corações ao lado do nome dele. Gale era o garoto que elas queriam ter por algum tempo. Peeta era o garoto com quem elas queriam namorar. E eu demorei a entendê-las. Demorei a compreender o que se passava pelas cabeças que até então eu acreditava serem desmioladas. E notei que elas estavam certas.
Se tivesse sido Gale a ir comigo aos Jogos, nós não conseguiríamos manter o papel do casal desafortunado do Distrito 12. Éramos parecidos demais para suportar a ideia de que teríamos que fingir alguma coisa somente para agradar aos outros. Mesmo que Gale e eu tivéssemos uma história, nós fracassaríamos de uma forma vergonhosa tentando interpretar os papéis. Seria duro, frio, até poderia dizer que seria cômico. Enquanto Peeta tentou manter as coisas da forma mais cândida que ele conseguiu.
Gale e Peeta eram o oposto um do outro. E por isso eu havia ficado tão confusa quando retornei dos Jogos, pela primeira vez. Eu sabia que Gale me amava, que ele se sacrificaria por mim... Mas Gale se sacrificaria por inúmeras outras causas, como ele mesmo frisou. Gale me amava, todavia, ele conseguiria construir uma nova vida sem me ter ao lado dele. E Peeta... Peeta me amou desde que era um garotinho. Peeta me amou sem escrúpulos, sem erguer defesas. Peeta me amou e me amou ainda mais para poder me salvar. Peeta se sacrificaria por mim. Peeta se sacrificou por mim. Peeta deixou de ser ele mesmo por mim. Peeta voltou por mim. Peeta me amou como eu nunca achei que alguém poderia me amar e por isso eu não conseguia acreditar que ele era real.
— No que você está pensando? — tirando-me dos meus devaneios, ele perguntou, e eu pude ver que pela tonalidade da voz dele, o cansaço estava se apoderando do corpo dele.
— Nada muito interessante. — menti, sabendo que não teria coragem em compartilhar os meus pensamentos com ele. — E você?
— No telefonema que eu recebi hoje de manhã. — estiquei as minhas pernas no sofá, quase tocando as dele, e cruzei os meus braços abaixo dos meus seios, encarando-o diretamente. Ele não havia me contado nada sobre o tal telefonema. — O Dr. Aurélio me ligou.
— E o que ele disse? — perguntei, a minha voz por um fio.
— Ele disse que conseguiu alguns remédios que gostaria de testar em mim... — fechei os olhos com força, já sabendo o que se seguiria, mas não querendo escutar as palavras que saíram da boca dele: — Eu estou indo para a Capital na semana que vem.
N/A: Eu não sei se ficou claro, mas isso está se passando no máximo duas semanas desde que Peeta voltou. Ainda não se passou muito tempo e eu não sei se colocar um clima já de romance ficaria muito bom. Acho que eles teriam que passar por certas etapas antes de tudo, porque o relacionamento deles sempre foi supervisionado e manipulado por outras pessoas, agora que eles possuem uma chance de acolherem o futuro juntos, eu sempre achei que eles iriam com calma. Mas se alguém comentar, eu adoraria saber a opinião também :) Até logo...?
