"Em cada volta que dá a Terra, a fé deixa de existir. O temor do Senhor não mais prevalece entre os homens, a injustiça desapareceu do mundo e a violência toma conta das nações. A mentira, a traição e a perfídia pairam sobre nós. A virtude não existe mais e é algo sem valor. O mal reina em seu lugar."
Guilherme de Tiro
Condado de Forynnor, 980
Nas terras geladas do Norte, como era conhecido o reino, a princesa Aliiries de Forynnor, contando então dezessete anos, permanecia sentada diante da janela de uma das torres do castelo. Uma janela alta e estreita, tão separada das outras, e estas entre si, que dificultavam qualquer tentativa de invasão da fortaleza. Aquela janela era a única saída para o mundo lá fora. Como herdeira de um importante reino, devido à posição geográfica estratégica, pois não tinha riquezas naturais, Aliiries sabia que qualquer rei ou príncipe estaria disposto a arriscar até a vida por sua mão.
Suspirou. Os cabelos loiros estavam trançados e caíam graciosamente pelas costas esguias. A pele era pálida; os olhos, de um azul claro e fulvo que resplandeciam com os fracos raios de um sol que teimava por brilhar entre as gotículas de neve que desciam. Os flocos caíam finamente, lentamente, sobre a grama. Na imensidão ao longe, entrecortada por montanhas, ela mesma estava bem no topo de uma delas, observava a revoada dos falcões que fugiam da friagem que se aproximava.
Mesmo durante o verão, o castelo de Jurgenwall, onde morava, era um lugar assombrado pela névoa eterna. Do sítio onde estava sentada, contemplava o rio Panmon transformado em uma imensa e maciça pedra de gelo. Pensava, naquele momento, em como saber quando a noite e o dia teriam a mesma duração, para que pudessem comemorar o ano novo. Naquele ano, as tempestades de outono haviam sido muito violentas. Noite e dia, o murmúrio do vento ressoava pelo castelo. Respirou fundo, tristemente. Olhou para trás e encontrou a figura paterna.
Slade Waveharp de Forynnor era um governante bondoso e atencioso com as necessidades de seu povo. Porém, a guerra, a fome e a doença assolaram a população. Desde os mais pobres até os mais abastados. Há seis meses ficara viúvo. Precisara manter-se forte para suportar as pressões naturais de alguém que ocupava aquela determinada posição. Era o rei de Forynnor. Sua família e súditos descendiam dos druidas, o que os fazia alvo de uma perseguição religiosa. Mesmo que o reino tivesse se convertido ao Cristo século e meio antes. Eram constantemente ameaçados por uma invasão estrangeira e os saques sofridos pela população camponesa geravam mais miséria dentro do território. Via-se encurralado. Perturbado, orava com sinceridade por uma saída. Previa que o povo não suportaria mais. Talvez nem ele mesmo.
Há uma semana recebera a carta de Estêvão, rei de Valarior, um dos mais antigos e ferozes inimigos de Forynnor. Influente dentro da Igreja e junto ao sacro-imperador, Estêvão fazia-lhe uma proposta irrecusável: em troca de proteção contra invasores e inquisidores, Slade deveria preparar uma competição de armas na qual a princesa de Forynnor seria o prêmio. A mão da princesa, única herdeira do reino, seria dada aquele que vencesse os jogos, como rainha.
O rei sabia que Aliiries era um botim precioso, que atraía os guerreiros de todos os reinos conhecidos então. Não poderia trancafiá-la em um convento nem deixá-la escondida no castelo, até que envelhecesse e decompusesse. Era da natureza feminina casar-se e gerar filhos, os futuros guerreiros da linhagem de Forynnor. Mas estava ciente que, dando a única herdeira do reino em casamento, perderia a posse de todos os varões que, porventura, nascessem daquele ventre. Os filhos de Aliiries, seus netos, jamais combateriam ao seu lado; mas do pai. E isso atemorizava Slade sobremaneira. Estaria indefensável e exposto aos rivais. E quando morresse, o intruso herdaria Forynnor, como rei, através de Aliiries.
Slade pressionava o pergaminho amassado contra o peito. As mãos trêmulas. Escolhia as palavras certas para conversar com a bela e jovem filha. Deveria convencê-la a se curvar diante de tal destino. Estava de costas para ela e não percebia a curiosidade da moça em descobrir por que fora chamada até a câmara do pai com tamanha urgência.
- Papai.
A garota aproximou-se com preocupação nos olhos.
- O que deseja falar? Chamou-me aqui dizendo que precisava conversar comigo. Pois, faz exatamente meia hora que aqui estou. Tudo que consegue fazer é olhar-me de forma estranha e melancólica!
Quis sorrir inocentemente. Um jeito infantil pincelado por trejeitos de mulher.
- Aliiries...
O rei voltou-se para a filha e lhe acariciou o rosto de traços delicados e profundos olhos azuis, como os dele.
- Tu serás a salvação do nosso povo. O nosso conselheiro me disse que esse dia iria chegar. Fico feliz de ainda ter vida para ver a nossa querida Forynnor salva dos invasores!
- Como, papai?
Por um momento, ela sorriu. A possibilidade de ajudar aquele povo lhe enlevara o espírito. Porém, logo deixou que o sorriso desaparecesse de sua face pálida ao ver o pai entristecer-se.
- O que houve? Como poderei salvar o nosso reino?
- Casando-se, filha.
Ela engoliu em seco. Sentiu as pernas fraquejarem. O pai continuou:
- Eu sei que neste caminho te esperam muitas perambulações e maus entendidos. Mas, no final, todos os caminhos convergirão para a salvação desta terra adormecida sob o gelo.
- Casar? Mas entre o nosso povo, as mulheres têm liberdade de escolher a quem querem se unir!
Ela rebateu, terna e respeitosamente, mas nervosa pela notícia.
- O senhor me disse que eu teria a liberdade de escolher a quem quererei dar o meu coração!
- Neste momento não estamos para escolhas, minha pequena! Chega de sonhos e infantilidades, Aliiries! Tu te afastarás disto para sempre! Estamos na mira de estrangeiros. Não podemos sofrer uma invasão agora ou seríamos facilmente derrotados! Não quero ver a minha única filha servir de escrava para os valarianos!
- Há séculos que os condados de Mondrygg e Stonehill tentam nos invadir, mas sem êxito! Os estrangeiros não sabem como chegar até aqui, papai. Eles não conseguiriam cruzar os bosques, principalmente no rigor do inverno! Estamos muito ao Norte e...
Ela falava com ansiedade extrema. Queria, a todo custo, reverter aquela ordem.
- Filha querida, tu serias um ótimo general! Porém, infelizmente, mulheres não comandam exércitos!
Ele suspirou. Desviou-se dela e encaminhou-se para o lado oposto de sua direção. Olhou através da janela diante da qual ela mesma estivera sentada.
- Papai, eu...
- Deve seguir o teu destino, filha. Tu és uma princesa e não posso aceitar por tua mão algo menor que um príncipe! Vê-la casada com um rei seria mais do que eu poderia desejar! Irá para um convento em Togrison, a ilha dos Padres. Deverá ser educada como uma boa cristã a partir de agora para apagar a...
Engoliu em seco.
- ... a ascendência maligna que levamos no sangue!
- Eu creio no nosso Senhor Jesus Cristo!
Ela fez o sinal da cruz.
- Mas não, não, papai!
Ajoelhou-se aos pés paternos. As lágrimas brotaram de seus olhos claros.
- Não me faça isso, por favor! Não me case com um homem para quem a nossa gente não passa de feiticeiros demoníacos! Não pode me dar esse fardo!
- Embora eu seja um bom cristão, confesso que sempre os achei estranhos.
Disse o rei, pensativo, e perpassou os olhos pelo chão.
- Sempre temeram a antiga magia. Eles vêm até aqui e acham que todas as coisas são horripilantes. Tudo em nosso mundo os assusta: o belo e o feio!
Falava repreensivamente, mas não tinha qualquer tom de rancor.
- Entretanto, creio ser impossível arrefecer nesta questão, Aliiries. Temos dívidas e...
- E o que é impossível para um rei?
Ela argumentou e abraçou-lhe as pernas.
- Tu és minha única filha e eu a amo. Assim como um dia amei a tua mãe. Prometi sempre proteger esta terra do poder de Valarior. Mas vejo que as minhas forças estão morrendo. Um dia eu não estarei mais aqui. Quero partir sabendo que estarás bem e protegida.
- Mas, papai...
Ele pediu-lhe silêncio com um dedo.
- Serás educada, a partir de agora, como uma boa mulher católica romana. Sei bem que andas metida com as servas que ainda praticam a velha sabedoria. Afinal de contas, minha querida, nenhum mal a atingiria em um convento!
- E a quem serei dada em casamento?
Ela perguntou. Erguera-se entre lágrimas. Alguns fios dos cabelos claros e longos caíram-lhe pelo rosto.
- Prepararei os jogos do próximo Pentecostes.
Começou o pai e encarava a filha firmemente. Esta lhe devolvia o olhar com certo rancor.
- Todos os reis, príncipes e condes virão ou enviarão seus representantes para competirem por tua mão. Como o nosso reino é exímio no tiro ao arco, decidi que devem competir pelo arco e flecha. Haverá muitas etapas que os pretendentes terão de vencer para conquistar a minha única filha, minha única parente viva, minha única herdeira e meu reino.
Ao ouvir aquela reposta, de maneira tão ríspida e dura, rápida e fulminante, a visão da jovem embaçou, as pernas perderam as forças, os inocentes olhos azuis desfaleceram. Não foi ao chão porque uma dose de orgulho e sensatez a impediram de dar ao pai a resposta que ansiava o coração. Fechou os olhos por um instante. Um fio de lágrima escorria pela face.
- Aliiries!
Chamou-lhe o pai, com a voz suave e cheia de carinho.
- Espero que um dia possas entender de assuntos de Estado e perdoar esta minha decisão.
- Então é isso que sou, meu pai? Um meio de resolver um assunto de guerra? Uma arma para que o senhor e seus aliados possam conquistar apoios políticos? Um elo para cimentar alianças?
- Tu és uma mulher, Aliiries, tuas escolhas nunca são fáceis.
Respondeu o pai.
- Eu apenas quero criar uma terra onde os teus filhos possam crescer felizes, em paz. Tenho servido fielmente aos interesses do nosso povo e tu deves fazer o mesmo. És uma princesa e um tão nobre nascimento traz consigo uma grande responsabilidade.
Encararam-se por um instante. Por fim, ela curvou-se diante dele, em respeito à sua posição de rei e também de pai. Ergueu-se. Revirou os olhos para a face do homem que estava diante de si. Parecia séria e contrita. Caminhou na direção das portas grossas e pesadas do salão. Mas, antes de dar-lhe as costas, disse-lhe:
- Antes houvesse nascido serva!
Slade viu-a afastar-se. As portas foram fechadas. Sozinho, apertou o canto interno dos olhos por um momento. Balançou a cabeça a fim de afastar um pensamento. Caminhou a passos rápidos para o extremo oposto por onde a filha havia saído. Encontrou-se com o general e bradou-lhe as ordens:
- Reúna os homens. Depressa. Temos seis meses até o Pentecostes.
- A princesa aceitou o desafio, majestade?
Perguntou o soldado. Andava, por sua vez, atrás do monarca.
- Ela irá acostumar-se.
Respondeu o rei.
- Terá todo o inverno para isso! Terei eu a amado como filha ou apenas a usado para meus propósitos, Folkner?
Interrogou e deteve o passo no corredor ladeado por tochas. Sua figura e a de seu general trepidavam pelas sombras.
- Meu senhor, desde minha juventude tenho sacrificado tudo pelo meu rei. Ver Forynnor aliada a Valarior, salva e em paz, é mais do que posso desejar. Honra e morte digna, este sempre foi o nosso lema!
- E continuará a sê-lo, general! Um rei deve cair com o reino. As chamas de Forynnor ainda ardem. Sei que, com esta decisão, acabo de perder o meu único tesouro, a única coisa que me restou de minha rainha. A salvação de meu reino!
O.o.O Continua O.o.O
Abaixo, link da foto que me inspirou a personagem Aliiries.
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