WATER OF DEATH

CAPíTULO PRiMEiRO – LáBiOS UMEDECiDOS COM O DOCE SABOR DA MORTE

- Soldado Kurogane! – anuncia a voz do general pelos alto-falantes da base militar. – Compareça imediatamente ao ancoradouro para fazer a ronda antes de fecharmos os portões. Imediatamente.

Um jovem soldado levanta o rosto castigado pelo novo sol. Seus olhos têm uma coloração diferente da normal. São de um castanho tão vívido que chegam a parecer vermelhos em algumas ocasiões. Mas a força que exista naquele olhar não é a mesma que há dentro dele.

Foram aqueles olhos que presenciaram o mundo se definhar aos poucos… aqueles olhos presenciaram os filhos perderem as mães, ou as mães perderem seus filhos no grande cataclismo que inundou o mundo todo.

- Não se atrase! – informou o guardador das barcas militares quando entregou a chave da pequena embarcação à Kurogane. – Você tem quarenta minutos para voltar.

- Certo. – respondeu ele saltando pra dentro do veiculo e ligando o motor.

Com um ronco alto saiu navegando pelo "novo mundo". Já não existia nada além de água e pequenas construções feitas por alguns poucos sobreviventes. Com um olhar carregado Kurogane deu a volta pelo que deveria ter sido uma escola, pois junto aos destroços ele encontrou restos de brinquedos.

Ninguém poderia viver sem água, mas até esta estava condenada. O mar que invadiu as terras não trouxera consigo só destruição, mas sim morte. O liquido não era salgado ou doce, mas sim amargo e quente. Devido ao sol a água se tornara tão impura quanto ácido, que ao entrar em contato com o corpo corrói o tecido em segundos.

A única fonte de água potável estava sob o comando dos militares, mais precisamente do general Fei Wong, que só dava água para os soldados, ainda assim em pouca quantidade e para a população que tinha algo para dar em troca. Era um tirano, mas sendo ele o único que possuía a fonte da vida ninguém ousava se opor.

Kurogane desligou o motor do barco e ficou observando o sol se pôr lentamente no outro extremo do grande oceano. Como tudo pôde ficar daquele jeito?! Fora o destino, ou o castigo pelas ações negativas de tantas pessoas?! Ninguém soube responder até agora aquela questão. A única preocupação de todos era até quando sobreviveriam com aquelas condições.

Antes de ligar o motor novamente o soldado percebeu um movimento ali perto. Em meio aos destroços que boiavam ele notou um pequeno bote. Esperou até que se aproximasse um pouco mais para distinguir quem o ocupava. Um rapaz loiro segurando uma garotinha de cabelos loiros também pareciam estar passando mal.

- Vocês estão bem?! – perguntou ele ligando o motor e indo para perto do bote.

Quando parou ao lado deles Kurogane percebeu que não estava nada bem. A garota estava tremendo e seu rosto estava tão branco como um esqueleto. O rapaz estava de olhos fechados e segurava o corpo da garota com tanta força que parecia não querer soltá-la nunca mais.

- Garoto, você está bem?! – perguntou novamente.

- Me ajude… - sussurrou ele. – Minha irmã… ajuda ela, por favor…

Kurogane puxou os dois para dentro da embarcação e deitou a garota dentro da cabine. Com um pouco de esforço ela disse:

- Fay…

- Calma garota vai ficar tudo bem. – tranqüilizou-a.

O rapaz levantou-se com esforço e perguntou:

- Tem água para dar a ela? Nós estamos nadando faz dois dias e todos que passam se recusam em nos dar um gole de água… minha irmãzinha não está mais agüentando.

Os olhos dele eram azuis como duas safiras e demonstravam preocupação com a garota.

- Eu não tenho dinheiro para pagar, mas se salvar minha irmã eu lhe dou a vida.

- Não será preciso. – sentenciou Kurogane correndo até sua bolsa e tirando um cantil com sua quantidade de água da semana. – Aqui. Podem beber.

O rapaz sorriu e pegou a irmã no colo. Enquanto segurava a cabeça dela com uma das mãos ia abrindo a garrafa com a outra. Kurogane observava tudo de longe, ainda surpreso com a determinação que o rapaz demonstrava ter.

- Fay. – sussurrou a garotinha quando a água pingou nos seus lábios rachados.

- Não diga nada Chii, beba tudo… depressa…

Mas assim que o liquido entrou pela boca da garota ela soltou um espasmo e dando um sorriso vacilante ao irmão fechou os olhos. Com a mão trêmula o rapaz tocou o coração da irmã.

- Não! – gritou ele desesperado. – Não me deixa Chii! Eu não posso falhar mais uma vez! Não me deixa!

Kurogane correu até eles e soltou a garota dos braços dele. O corpo dela estava frio e rígido. A vida dela escorria de seu pequeno corpo como água que caia por sua boca. Estava morta.

- Não tira ela de mim! Chii! Acorda! – gritava o rapaz tentando puxar o corpo sem vida das mãos de Kurogane.

- Não há mais nada que se possa fazer… ela… se foi.

- Ela não se foi!

Mas quando o pescoço da garota pendeu sobre o braço de Kurogane o rapaz a soltou. O olhar corajoso e determinado abandonou seu rosto. Ele estava em estado de choque. Juntou os joelhos e os abraçou para mais perto do corpo, ficando encolhido em um canto do barco.

Segurando o corpo da garota Kurogane sentiu como se tivesse sido o responsável por sua morte. Ela morrera porque ele não tinha ido mais depressa. Então, como há muito tempo ele não havia feito chorou.

Deixou que as lágrimas de culpa caíssem sobre o semblante agora calmo da garota. Chorou em silêncio, apenas derramando as lágrimas. O rapaz mantinha os olhos azuis na mesma direção de antes e não fazia nada a não ser se balançar pra frente e pra trás.

- Isso não pode continuar… - sussurrou Kurogane abraçando o corpo da garota para mais perto do corpo.

Ele fez menção de levar o corpo da menina para longe do irmão, mas este não pareceu se importar. Continuou se balançando pra frente e pra trás com o mesmo olhar perdido de antes. Kurogane conseguiu entender o que ele sentia naquele momento. Ele deveria estar se culpando por deixar a irmã morrer. Ela morreu nos seus braços, nada poderia ser mais traumatizante para uma pessoa do que ver sua irmãzinha morrer chamando por seu nome.

O relógio digital soou. Ele tinha pouco tempo até que os portões da base militar se fechassem agora. Não poderia ficar mais tempo ali. Ele cobriu o corpo da garota com um saco plástico preto e deitou-o na superfície calma da água, que como um monstro faminto a engoliu de uma vez só. Triste, mas necessário. Pelo menos agora ela estaria junto com seus pais… onde quer que eles estivessem.

- Não vai se despedir da sua irmã?! – perguntou ele com um tom preocupado na voz.

O rapaz não respondeu.

- Certo. Existe algum lugar pra você ir?

Nada.

- Não posso te levar. Sou um soldado e meus superiores não autorizam a entrada de…

O olhar azulado de Fay vacilou por alguns instantes, mas ele não respondeu nada. Continuou em silêncio.

- Não posso te levar! – exclamou Kurogane.

Mas o coração do soldado dizia outra coisa. Em meio aquele mar destrutivo alguém tinha que agir. Ele não iria abandonar o rapaz no meio daquele caos, não. Ele acabara de perder sua irmã, talvez a única família que ele tinha atualmente.

- Certo. Vou te levar comigo, mas você tem que se esconder. – e jogou um cobertor por cima do rapaz que permaneceu imóvel.

Mordendo o lábio para se segurar Kurogane ligou o motor e navegou em direção à base militar. Seu coração estava pesado, ele não imaginava que o sonho de seu pai era esse. Ver seu filho observar a morte de uma criança por estar com… sede. Aquilo era terrível.

- Isso não seria necessário. – resmungou enquanto olhava para a base militar que crescia quanto mais se chegava perto. – Isso não seria necessário se ele estivesse no poder.

O rapaz chamado Fay se remexeu dentro das cobertas e se deitou no canto, agora não parecia nada mais do que um pano jogado em um canto. Kurogane tinha um expressão determinada quando cruzou os portões da base.

- Muito trabalho hoje soldado?! – perguntou sarcasticamente o guarda que ficava na guarita.

- Nem imagina. – resmungou em resposta. – Nem imagina…