A HERANÇA DO CÁRCERE - OS FILHOS DO INQUISIDOR

I

O inquisidor Expedito se olhava num espelho. Violante não entendia porque ele fazia tanto isso ultimamente, uma vez que homens da igreja, ao menos em teoria, deveriam deixar a vaidade de lado. Mas ele o fazia, incessantemente. E o fazia justamente porque não aceitava a idade. Já contava com cinquenta e sete anos; nos últimos tempos, os cabelos brancos tomaram conta de sua cabeça; mais da metade de seus cabelos já eram brancos. Isso sem contar as rugas: a cada dia pareciam se multiplicar ainda mais.

Ele até que não se aborreceria tanto assim com isto - se a mulher não estivesse assim tão preservada. Ora, Violante contava com cinquenta e dois anos - apenas cinco a menos que ele. E os cabelos somente agora apresentavam os primeiros fios prateados. Sem contar que a pele continuava bastante viçosa. Era certo que após cessarem as regras dela, já não tinha a mesma maciez, a mesma firmeza... mas até que para uma mulher da idade dela não tinha manchas, não tinha quase flacidez, e as rugas eram bem poucas. E ainda tinha um pescoço firme, um colo... ah, ainda havia no que um homem pudesse se deleitar ali!

Mas isso, em vez de deixá-lo com orgulho, o punha ainda mais exasperado. Por que é que o raio da mulher estava tão conservada - ela, que tivera duas gestações e dois partos; era certo que poucas gestações e poucos partos para os padrões das demais mulheres - e ele caminhando com cada vez mais rapidez para a velhice? Só podia ser explicado pelo fato de que ela ficava em casa o dia inteiro, somente a bordar e a rezar; assim era fácil! E ele, que tinha de lidar com aquele monte de hereges há tantos anos? Mais de três décadas, na verdade.

Era certo que adorava o trabalho que exercia, mas muitas vezes era um trabalho duro, árduo, longo; os hereges cada vez mais davam um jeito de mentir, de se ocultar; e as novas preposições da lei somente faziam com que os tais hereges fossem punidos com cada vez menos rigor! Pois se achavam que "apenas" açoitar, "apenas" mandar fazer uma peregrinação, já estava bom! Dali há pouco não haveriam mais execuções em praça pública, se a cousa andasse daquele jeito!

Bufou com raiva, pois perdia aos poucos as duas coisas que mais gostava: o viço e o poder de fazer o que desejava com os outros. Dava tanta importância à sua atuação no Santo Ofício, que tinha em mente que quando morresse, certamente o mesmo seria extinto. Era um dos poucos que ainda tentava cumprir os ditames da fé com rigor!

- Meu senhor, perdoe-me; não quero atrapalhá-lo, mas já se faz tarde. Não podemos mais esperar.

- Espere - disse ele à mulher, a qual já se encontrava totalmente paramentada com sua roupa de "beata" para saírem: mantilha e vestido negros, o crucifixo no pescoço. Mas ele ainda se detinha a olhar os dentes. Era certo que escureceram com o tempo, mas ainda tinha-os todos na boca, como poucos na idade dele os tinham. Pois até mesmo Violante tivera de arrancar uns três ou quatro dentes, e no lugar mandara colocar dentes de ouro; ela ainda gostava de comer doces vez por outra, os quais faziam mal à dentição e ele sabia disso. Já Expedito, detestava doces; isso lhe conservara os dentes todos na boca.

Já mais conformado, largou o espelho em cima de um móvel próximo, ao passo que quase ao mesmo tempo ouviu os passos e o "ruge-ruge" de saias de sua filha, Teodora, descendo as escadas. Na mesma hora, fechou o semblante:

- De vestido cor de rosa pro auto de fé?!

Ela baixou a vista, consternada.

- Meu pai, não se tem obrigação de vestir uma determinada cor para ir a um auto de fé...

- Mas é bom ir sóbria! Faça como sua mãe, que sempre vestiu preto, sendo o evento auto de fé ou não! Até parece que não lhe demos educação! Ande, vá a seu quarto e troque o vestido por um preto.

- Meu pai, eu-

- Sem "mas"! Vá trocar o vestido agora!

A moça voltou ao quarto e se trocou, sem discutir. Sabia que não adiantava. Seu pai só fazia o que queria, independente da vontade alheia.

Enquanto isso, Violante olhava o relógio da sala de estar, preocupada:

- Já se faz tarde, meu senhor; antes sempre éramos os primeiros a chegar!

- E eu não sei? Mas lá tenho culpa de ter uma filha desmiolada?! Parece que quanto mais se ralha com eles, mais se dão em cousa má!

- Não fale assim. Tedora não é má; apenas...

- Apenas uma mal acostumada, isso sim! Pois eu quis colocá-la no colégio interno como fiz com Timóteo, e não quis que eu enviasse! E apenas ouvi suas palavras porque... porque ela é mulher, e mulheres usualmente se criam bem em casa! Só que se tornou nisso, nessa menina voluntariosa! É boa! Mas deixe estar, que já está ela em idade de arranjar noivo; arrumarei a ela um homem que a bote na rédea e a dirija após eu não estar mais aqui para fazê-lo.

Com efeito, logo a moça descera. Estava toda de preto, mas sem a mantilha na cabeça. Expedito lhe disse, seco:

- Teodora, a mantilha.

- Ainda sequer saímos de casa-

- A mantilha!

Ela a colocou, de má vontade. Enfim o inquisidor sossegou e saiu com a mulher e a filha para tomar a diligência que os levaria ao auto de fé. Teodora odiava os dias de auto de fé; e para sua sorte, nos últimos tempos os mesmos escasseavam. Antes, os públicos eram feitos com um certo intervalo de tempo, mas os particulares eram bastante frequentes. E como Expedito gostava deles! Eram a razão de seu viver desde que se tornara inquisidor. Mas nos últimos anos, tanto os autos de fé públicos quanto os privados eram bastante raros. O último ocorrera há mais de dois anos! Devia portanto aproveitar a ocasião.

Teodora, a jovem filha do casal, ficava no fundo da diligência a matutar. Enquanto isso, os pais discutiam sobre o que encontrariam no evento - sempre, claro, a falar mal dos pecadores.

- O que teremos desta vez, meu senhor?

- Judeus. Sempre, sempre o raio dos judeus! Quanto mais se imolam judeus, mais eles aparecem! É algo que não entendo.

- Lembra, meu senhor, dos judeus que havia no Arraial?

- Pois claro que lembro. A mais velha, a tal de Joaquina, morreu de tanto deitar sangue pra fora de si. Deve ter sido castigo de Deus, certamente!

- A outra, a mocinha Graça, fugiu...

- Fugiu, e com o marido da irmã. Uma sem-vergonhice, desejar o marido da irmã! A mesma nem quente na cova e certamente ela já aos agarros com ele! É uma pouca-vergonha, logo se vê que é herege.

- Nunca quis saber que fim deram eles?

Expedito fez um gesto de desprezo com a mão, aborrecido.

- Eu, não! No mínimo se enfiaram numa aldeola qualquer, ou em São Paulo de Piratininga, que era naquele tempo terra de hereges sem fim; e lá devem ter tido uma renca de filhos, também hereges! Mas nessa ocasião já não estava mais eu no Brasil para puni-los; e se for me preocupar com cada fugitivo, minha senhora! Enlouqueço! Ganho mais cabelo branco do que já tenho!

Violante olhava a seu homem com ternura. Amava ele todo, com os cabelos brancos, assim como o amara na juventude com os cabelos pretos. Encostava-se a seu braço e gostava de senti-lo junto a si. Amava-o, apesar de todas as surras, apesar de todas as pancadas; e após vinte e quatro anos vivendo junto dele, não conseguia mais imaginar a vida sem ele.

Ia pensando assim, a cabeça recostada em seu braço, quando o ouviu falar:

- Ah, mas minha senhora, tem um fugitivo do qual não desistirei.

- Não?

- Não. Esse, nem que seja a última coisa que faço em vida, eu o pegarei. Vivo ou morto!

- E quem é?

- Um tal de "padre voador". O raio do homem me cometeu o despautério de fazer uma máquina de voar, mas depois fugiu da inquisição! Não se sabe o paradeiro dele até hoje!

Violante persignou-se, horrorizada diante de tal pecado nefando.

- Mas, meu senhor! Como um padre se propõe a isto?!

- É o fim dos tempos, minha senhora. O fim dos tempos! A fama dele ficou tão grande, que não posso deixar essa passar sem resolver. Não posso! E um dos hereges que hoje será imolado sabia - oh, ele sabia, o sem-vergonha! - onde estava o padre!

- Sabia? E não disse?

- Pois não, minha senhora. Nove anos na tortura, nove anos eu a tentar dobrar o raio do homem, e não abriu a boca. Estava já semi-morto após tanta tortura, e por isso resolvemos matá-lo hoje. Até mesmo eu me cansei dele!

- Mas meu senhor, se o entrega à fogueira hoje, como saberá do paradeiro do tal "padre voador"?

- De alguma forma, minha senhora; Deus me ajudará nisto!

Já estavam bem próximos do local onde ocorreria o auto de fé. Teodora, a qual enquanto os pais falavam mal da heresia e da "pouca vergonha" alheia, fazia com que sua mente vagueasse por qualquer outro lugar; e por isso mal ouviu quando Expedito enfim ordenou que descessem.

- Já está tudo isto cheio de gente, e nós aqui, atrasados! Quando que eu me atrasaria para um auto de fé há vinte anos atrás?! Tudo isto culpa tua, Teodora!

A jovem abaixou a cabeça e puxou a mantilha ainda mais para cima da cabeça, escondendo o rosto. Não adiantava discutir com ele, afinal de contas.

Desceram todos; e como sempre, as mulheres foram colocadas a assistir a queima dos hereges de perto, enquanto Expedito ia ao pálio dos inquisidores - o qual, apesar da perda do poder, ainda era mais alto que o da própria realeza. Com o tempo, foram a inquirir os hereges pela última vez; a maioria se arrependia e era primeiro estrangulada para depois ser queimada, mas justamente o homem que protegera a Bartolomeu de Gusmão, o assim chamado "padre voador", não se arrependera; preferira ser queimado vivo.

Expedito sorriu diante dele. Um sorrido sardônico, terrível.

- És teimoso até na hora de morrer! Pois que vá vivo mesmo ao fogo!

Assim o foi. Quando ele começou a crepitar na fogueira, ao lado dos demais hereges, a maioria judeus, o foi com muita dignidade. E não foi com espanto que tanto Violante quanto Teodora viram a uma mulher, uma de cabelos grisalhos já, aparência de pedinte de rua, a chegar repentinamente e olhar àquele homem com ternura. Com afeição. Como se procurasse algo que há muito tempo perdera. Então, sem cerimônia, ela sacou a um frasco, o abriu ali em pleno auto de fé e disse baixinho:

- Vem!

Violante estava perto, e ouviu. Teodora também. Ao passo que a mais moça nada fez, nem se intrometeu, a mais velha estranhou aquele gesto tão peculiar. Esperou que a queima dos corpos já se adiantasse mais - Teodora passara todo o tempo com um lenço no nariz, que cheiro horrível aquele de carne a queimar! - e foi falar discretamente com seu homem.

Ele, ao vê-la se postar ali ao lado dele, a repreendeu.

- Minha senhora, que é isso?! Somente os inquisidores podem vir à frente dos hereges, no máximo os guardas! Volte a seu lugar, faça-me o favor! Que dirão os demais de mim ao vê-la assim tão atrevida?

- Perdoe-me, mas eu precisava lhe avisar, meu senhor!

- De que, mulher?

- Há logo ali, ao lado de Teodora, uma mulher estranha. Parece uma bruxa!

- Bruxa?! E que diabos faz uma bruxa num auto de fé?

- Sei lá eu! Mas ela tomou de um frasco, o abriu e sussurrou: "Vem!", creio que está a fazer bruxarias aqui!

- Mas era só o que faltava! Eu não lhe digo que é o fim dos tempos?

Expedito procurou com os olhos - que apesar da idade ainda enxergavam longe, principalmente quando se tratava de hereges - e achou a tal mulher. Estava quase do lado de Teodora, a qual tampava ainda o nariz com o lenço, em gesto bastante óbvio de asco.

O inquisidor deu uma palavrinha com os demais frades e, após isso, foi na direção da mulher - pelo outro lado, sem que ela pudesse perceber. Violante foi atrás dele. E qual não foi a surpresa da tal "bruxa" ao virar-se para trás, com a finalidade de ir-se embora de tal espetáculo macabro que era o auto de fé, e encontrar quem? O inquisidor Expedito, aquele que por muitos era tido como o melhor inquisidor que Portugal tivera em todo o século dezoito!

Ele sorria, com o prazer de um gato que acuou um rato.

- Boas tardes, minha senhora. Que faz no auto de fé com um frasco aberto?

A mulher engoliu em seco. Mas então lembrou de sua sina; de sua desgraçada sina. Que tinha a perder, afinal?

- É um frasco utilizado para obter um benefício, meu senhor.

As pessoas em volta repararam que uma determinada mulher era inquirida em pleno auto de fé por um dos inquisidores. Logo se formou uma roda de curiosos que assistia a tudo, afeito às desgraças como o povo usualmente era.

- Benefício? E que raio de benefício é esse? É alguma heresia?

- Não conheço as heresias, meu senhor. Apenas sigo o que me foi indicado por... um padre.

- Um padre? Ora, eu estando no clero há tanto tempo, conheço o nome de todos os padres de Portugal. Diz, mulher, qual o nome do padre que te ensinou isto?

Ela hesitou por um tempo, mas logo em seguida respondeu:

- Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão.

Um "oh" foi ouvido de todos que já assistiam ao "espetáculo" - e não eram poucos. Os olhos de Expedito então, brilharam.

- Este padre foi condenado pela inquisição há muitos anos!

- Pois sim. Foi.

- E ainda dizes que o que ele ensina não é heresia? Pois bem! Creio que finalmente encontrei o que buscava. Guardas! Prendam-na. Acabou de dizer que conheceu o padre Bartolomeu de Gusmão, o tal de "padre voador", o herege que há tantos anos nos escapa das mãos!

Sem resistir, a mulher simplesmente se deixou aprisionar. Expedito sorriu mais uma vez a ela. Até mesmo esquecera das coisas que o aborreciam mais cedo!

- Pois, mulher... ainda hoje, a terei em minha mesa de tortura. Não perdes por esperar!

Falava aquilo com um brilho de prazer nos olhos; um prazer quase lúbrico diante da dor alheia.

Antes que a levassem, porém, ouviu uma voz de rapaz gritar:

- Espere!

Tanto o inquisidor quanto os guardas; bem como Violante, Teodora e todos os outros; viraram para trás a fim de ver quem ousava interromper a Expedito em seu serviço. Mas logo todos entenderam o porquê de tal rapaz se apresentar tão ousado: era Timóteo, o filho mais velho do inquisidor. Quem mais teria poder de dizer para que esperasse?

Expedito sorriu mais uma vez.

- Ora, senhor padre Timóteo! Pensei que vossa mercê preferisse mulheres mais bonitas e jovens para tomar como amantes! Pra que tomar esta, que tem idade pra ser sua mãe e ainda sobra?

Todos em volta riram - ao passo que Violante fez o sinal-da-cruz, horrorizada. O homem sempre tão austero, sempre tão vigilante da "moral e dos bons costumes", sempre regulando tanto as roupas que ela e Teodora usavam - pra de repente vir com um chiste baixo daqueles. Que horror! E em pleno auto de fé!

Timóteo, o qual não se dobrou diante do sarcasmo do pai, o qual obviamente fazia aquilo para desconcertá-lo e humilhá-lo em público, apenas disse:

- Não a quero para minha amante, e sim para limpar o chão da igreja. Estamos com falta de quem desempenhe tal função.

- Pois se há tantas outras que podem fazê-lo! Ainda mais jovens, mais dispostas ao trabalho e - por que não dizê-lo? - que também poderiam lhe servir de amantes?

Novas risadas. Timóteo ignorou outra vez as piadas infames do inquisidor.

- Se ela conhece um herege, pode ser melhor orientada a estar sempre na igreja. E de mais a mais, não sai ela do poder da Santa Madre Igreja ao estar sob minha responsabilidade; eu, o padre que cuida da paróquia.

- Pois é verdade. Mas... veja, posso até mesmo deixá-la lá, mas com uma condição. Aliás, algumas.

Todo o povo prendeu a respiração. Timóteo inclusive. Naqueles breves instantes, todos em volta perceberam: os olhos da "bruxa", e os olhos de Expedito, e os olhos de Timóteo, exibiam o mesmo brilho. Enxergavam longe de maneira igual. E então houve um embate terrível entre os olhos da "bruxa" e os do inquisidor, como se se pusesse um espelho na frente do outro, e assim ambos refletissem ao infinito.

Ficariam talvez eternamente naquele inferno de embate até o fim dos dias, caso Timóteo não houvesse interrompido tudo:

- Quais são as condições?

Expedito parou de olhar para a mulher, e enfim disse:

- Primeiro: ficará seis meses detida na igreja. Senhor padre Timóteo, se ela escapar, a responsabilidade será toda sua. E acredite, não deixarei de puni-lo de forma bastante rigorosa caso me decepcione.

Mais uma vez o rapaz fez que não o ouviu.

- Sim. E quais as outras?

- Segundo: ela ficará até as seis da tarde em jejum. A rezar, a cuidar do pátio da igreja. Mas em completo jejum!

A mulher se exasperou, como se o jejum fosse ser algo muito penoso a si. Não só pelo fato de ficar sem comer, mas por alguma outra razão mais séria. Expedito percebeu, mas nada disse a respeito. Então continuou:

- Terceiro: como foi conhecida do tal de padre Bartolomeu de Gusmão, receberá vinte chibatadas todos os dias. Eu mesmo me encarregarei de lhe aplicar tal penitência, uma vez que vossa mercê, senhor padre Timóteo, não tem fibra para tal, apesar de ser muito mais moço que eu.

Mais uma vez o rapaz ignorou o que ele dizia.

- Era só isso? Pode ela partir para a igreja - e sem torturas - já que precisa estar disposta ao serviço?

- A tortura, é fato, é melhor deixá-la pra depois. Pois vejo em seus olhos que de fato ela tem uma tortura já indizível... na alma.

Os olhos dele entrariam em embate com os da "bruxa" outra vez, não fosse Timóteo a interromper novamente.

- Podemos já partir?

- Ainda não. Quero que me dê o tal frasco com o qual fazia... fazia o sortilégio ensinado pelo padre herege.

Ela hesitou.

- Anda, dá logo o frasco, mulher! Ou mudo eu de ideia e te boto na tortura hoje mesmo!

A "bruxa" ainda hesitava. Parecia preferir morrer a entregar o frasco. Mas então Timóteo interveio - dessa vez com uma voz firme, a qual não era de seu feitio tomar:

- Dá logo esse frasco, mulher! Não nos faça perder tempo!

Ela sentia que o padre mais moço não tinha a maldade do inquisidor. Por isso, e somente por isso, entregou o frasco - não nas mãos de Expedito. Nas de Timóteo. Isso pareceu acalmar por hora o inquisidor.

- Guarde este frasco, pois o buscarei amanhã. É também vossa responsabilidade guardá-lo; se tanto o frasco quanto a bruxa se perderem, será vossa responsabilidade.

O jovem padre assentiu. E então os guardas escoltaram tanto a ele quanto a mulher até a igreja, e Expedito enfim se viu livre. O povaréu se dispersou, não sem começar a comentar aquele assunto da "bruxa no auto de fé".

Violante, que desde que vira ao filho mais velho sentira vontade de abraçá-lo e cumprimentá-lo, foi impedida por Expedito.

- Aqui não, minha senhora. Não é direito que um homem e uma mulher fiquem a se abraçar num auto de fé, mesmo que sejam mãe e filho.

- Pois é direito que um inquisidor conte chistes sobre amantes de padres?

Os olhos de Expedito emitiram uma fagulha intensa de ódio. Como ela ousava lhe replicar daquele modo, em público? Mas guardou o ódio para depois.

- Aquilo foi somente para ele aprender a não me interromper de maneira inapropriada. Mas deixa estar. Hoje nada vai abalar minha felicidade. Sim, estou feliz. Pois vossa mercê não ouviu? A tal da bruxa conhece o "padre voador"! Eu não vos disse que Deus me ajudaria? Pois ajudou mais rápido do que eu pensava!

Sorriu, dirigindo-se à missa e à celebração que haveriam após o auto de fé, enquanto Teodora ainda sequer por um segundo largara o lenço que pelo menos em parte a privava de sentir o cheiro horrível da carne recém-queimada dos hereges.

To be continued

OoOoOoOoOoOoO

Eeeeeee, finalmente continuei!

Apenas algumas explicações: essa parte da fic se passa dezoito anos após o final de "A mulher do inquisidor". Timóteo, o qual foi criado em colégio interno de padres, decidiu se tornar padre também e está com vinte e três anos. A segunda filha do casal acabou vindo menina, e foi chamada de Teodora, com o nome da tia do Morcego, e está com dezoito anos. O homem que conhecia o "padre voador" é Baltasar Sete-sóis, personagem do livro "Memorial do Convento" da autoria de José Saramago. E a "bruxa" que enxerga longe é a Blimunda Sete-luas, mulher dele, a qual o procurou por nove anos apenas para vê-lo morrer num auto de fé - esse é o final oficial do livro.

Resolvi puxar o gancho e colocar o Pedito pra atormentar todos eles - só pra vocês terem mais raiva dele, rs.

Blimunda no livro tem o poder de "enxergar dentro das pessoas". Na fic coloquei que tanto Timóteo quanto Expedito também o tem - só que o inquisidor usa isso pra fazer merda, obviamente. Já Blimunda usava para ver as vontades dos homens; no frasco que ela abriu, estaria a vontade de Baltasar, a qual se desprendeu do corpo dele na hora de morte. Por isso ela não quis dar de jeito nenhum.

Ainda vai ter pano pra manga esse negócio! Só adianto uma coisa pra vocês: Pedito vai apanhar! Rsssss!

Mas a boa notícia é que finalmente a fic terá um casal shippável, que será a Teodora com o noivo que o pai vai arrumar pra ela. Apesar de o casamento ser de conveniência, eles vão se unir pra superar o abuso do inquisidor.

Abraços a todos que lerem!