Parte I – Time Travel.

Família.

É esquisito que tudo tenha começado assim. Dizem que morremos sozinhos, por mais que tenhamos crescido rodeados de pessoas; o que quer que tenhamos feito ou dito morre no instante que nós próprios morremos. Porém, ao nascer estamos ali. Viemos ao mundo. E o primeiro grupo de pessoas que conhecemos é nossa família – seja ela postiça, consanguínea ou de coração. É neste círculo que construímos nossa vida; aprendemos a nos portar, a escrever, a amarrar os sapatos, a gostar de desenhos tudo a partir dali; dificilmente, nos cinco primeiros anos, olhamos para outras pessoas da mesma maneira que olhamos para quem nos coloca a sonhar.

Um dia, acontece. Você é levada para o seu primeiro dia de escola. Intimamente, você não quer ir, mas quer. Quer sair de casa num dia chuvoso para conhecer crianças da sua idade, dividir seus brinquedos e aprender a pintar com mais capricho. Não quer, porém, ter de encarar o que tem além da cerca. É disso que tem medo. O mundo parece imenso diante de você, e você é tão pequenininha!

Você vai, com seus pais conversando contigo sobre a professora e sobre a aprendizagem. Sobre o alfabeto e sobre as mesas escolares. Sobre as crianças que, muito provavelmente, estarão chorando; um deles diz que você é corajosa, porque não está chorando. Você diz que não quer chorar, e ele sorri. Ele sabe que, sim, você quer muito chorar, mas não quer fazê-lo ali, durante a sua música favorita do seu musical infantil preferido.

Quando enfim estacionam, e eles a incitam a sair do carro, você olha através da janela. Todo mundo está ali, com seus pais ou avós. Sim, alguns choram; outros parecem amedrontados demais para exprimir qualquer tipo de reação. Você levanta a cabeça e pisa no pavimento do estacionamento. Você não está com medo, embora queira chorar. O novo é espantoso.

Você está carregando a sua mochila e está com o seu tênis cor de rosa, comprado especialmente para esta data tão marcante. Você caminha pulando entre seus pais, que estão com as mãos nas suas. Você que eles a larguem, para que você possa correr até a entrada, mas se contenta com a situação, porque não está preparada para se ver totalmente livre.

A sala é extensa e colorida. Há bandeirinhas decorando tudo o que você olha, e isso a anima. Você é uma criança; você gosta do colorido.

"Quero um desenho bem bonito, hein?", um dos seus pais diz. Ele está apertando sua mão com força desnecessária, e você se afasta; ao fazê-lo, olha mais uma vez, ansiosa, para dentro da sala e para seus futuros amigos. Quer fazer parte daquele ambiente o mais rápido possível, quer se integrar para depois contar todos os detalhes na viagem de volta para casa. Você assente e diz: "Beijo, pai e papai. Eu tenho que ir". Eles, você nota, se assustam diante da sua atitude, mas se inclinam para beijar seu rosto. Depois, você dá as costas para eles e se adentra na sala. Quando anda numa trajetória torta para encontrar um lugar vago e se vira para frente, você vê seus pais ainda lá na porta. Você quer – não, você realmente tem a necessidade louca de – que eles saiam dali o mais rápido possível. Você acena para eles, rápido. Eles fazem o mesmo e, com hesitação, retrocedem seus passos para o corredor. Foram embora e, agora, você está sozinha. Sozinha, mas rodeada de gente chorona ou de gente quieta demais. Você está tão empolgada para virar para o lado e perguntar o nome do seu colega! Não consegue se aguentar de tanta energia. O dia vai ser bom, você pensa.


Naquele dia, tudo mudou.

Não foi pelo fato de eu ter ingressado num novo ambiente, em si. Foi o desligamento umbilical. Aquele segundo que desconectou as minhas mãos ansiosas de meus pais; ele foi determinante.

E, se antes eu achava que meu mundo se resumia em estar na presença dos meus pais e familiares, agora eu queria sair dali; estar o mais longe possível, vivenciar minhas próprias experiências e voltar para casa com histórias que diriam quem eu era. Foi naquela sala que meu mundo se ampliou.

Conforme os dias iam passando, percebia que nada acontecia. Eu era muito agitada, muito curiosa para meus colegas. Conversas breves se tornaram extintas, porque praticamente ninguém acompanhava meu ritmo; as minhas tagarelices impacientavam a quase todos, nem mesmo a professora suportava as minhas histórias caseiras. "Tudo bem, Rachel. Continue a pintar, ok?". E ela se afastava de mim para ir conferir os outros pupilos. Era evidente que, por mais que apreciasse a minha empolgação, não suportava o meu jeito.

Um mês depois, as coisas começaram a melhorar, porque optei por fazer aula de ballet. Gostava muito dos tutus coloridos e de saber que era a melhor da turma, mesmo que ainda todos nós fôssemos iniciantes. Havia um único menino, e isso chamou a minha atenção. Garotos não deveriam gostar de ballet, deveriam? Mas, com cinco anos, tudo me surpreendia. Desde o corte certinho dele, até a varinha improvisada que ele sempre carregava.

"Você é muito bom", uma menina um pouco mais alta que eu e loira disse a ele, enquanto os últimos minutos da aula foram destinados a freestyle. "Você também", ele respondeu, "Minha mãe gosta muito de ballet e me deu isso. Não é engraçado?", ele mostrou a varinha com uns fiozinhos coloridos na ponta à garota, que tocou nos fiozinhos e riu. "É engraçado. Minha mãe nunca me deu nada assim", a loira disse. "Minha mãe pode fazer uma para você", o garoto prometeu. Eles trocar um sorriso caloroso. Fiquei com inveja. Queria fazer parte daquilo também. Queria uma varinha e amigos.

Depois disso, eles sempre conversavam e faziam os alongamentos juntos. Até que eu percebi o que poderia me ajudar a me aproximar deles, afora o ballet – que, pelo jeito, não estava sendo uma ferramenta muito útil. Gatos. Isso mesmo, gatos. Ao entreouvir uma conversa sobre este tópico deles, me vi na obrigação de me infiltrar nela. "Eu tenho um gato", eu disse. Eles também tinham, me contaram. E de gato em gato, nossa amizade se criou de forma expressiva. Eu, Kurt e Quinn formávamos o que meu pai nomeava de 'trio inseparável'.


Aconteceu no terceiro mês. Olhei-o da mesma forma admirada com a qual olhava quem eu realmente conhecia e confiava – normalmente mais meus pais que dedicavam muitos minutos apenas para dar atenção a mim.

Naquele dia, minha atenção merecia estar direcionada para aquele garoto que, apesar de completamente integrado na turma, parecia não saber lidar com o nosso projeto de aula nem comigo. Ele mais ouvia do que falava, mais via do que olhava. E isso me deixou fascinada.

Tínhamos de formar uma família, eu e ele. Segundo as instruções, tínhamos acabado de nos casar e tínhamos de projetar nossa vida dali em diante. Casa perfeita, cachorro perfeito, filhos perfeitos, trabalhos perfeitos. Perfeição era meu lema. E, defronte mim, ele era perfeito também. Mesmo calado, mesmo não sabendo o que sugerir e mesmo parecendo desconfortável sendo minha dupla.

Quinn e Kurt não tiveram tanta sorte; não tanto quanto eu.

Infelizmente – para eles –, houve um sorteio para definir as formações das duplas, e ficamos separados; cada um de nós caiu com colegas diferentes. Kurt com Karoline. Quinn com Noah. E eu com Finn.

"É melhor você falar lá na frente", ele me disse, depois que eu expus todas as opções que poderíamos escolher. Apenas tínhamos de marcar um 'x' nas alternativas que gostaríamos de incorporar na nossa família. Quantos números de filhos, quantos cachorros, qual o emprego (percebi que não existia aquele que eu sonhava, então fingi que queria ser uma empresária; Finn escolheu jogador de futebol, típico dos meninos). "Você não vai falar nada?", perguntei, ainda que eu já soubesse a resposta. "Você parece gostar de falar. Até demais", Finn retrucou. Franzi as sobrancelhas. Ele também não apreciava a minha tagarelice. Senti-me um pouco ofendida, mas apenas disse: "Gosto". Porque falar era inevitável para mim.

Ele era engraçadinho. Uma criança distante e boba – um pouco normal demais, para muitos. Não para mim; Finn era, ainda que apenas em poucas nuances, diferente. Queria ser amiga dele também, bem mais do que quis quando, propositadamente, me juntei à conversa entre Quinn e Kurt. Conseguia sentir minha empolgação correndo nas minhas veias, meu coração batendo animado e a minha ânsia de querer me aproximar mais do mundo dele – não, de fazer parte do mundo distante dele.

Mas como?

Ele não gostava de mim – ele me disse. Se não gostava da minha forma louca de me expressar, não poderia vir a gostar de mim de jeito nenhum. Poderia se acostumar, talvez? Aos poucos, é claro. Talvez se eu calasse a boca de vez em quando... Em momentos como esse, por exemplo; se eu fizesse como ele, apenas ouvisse e visse tudo, ele poderia gostar de mim tanto quanto eu já gostava dele. De um modo, claro, idealizado e precário, tendo em vista a minha pouca idade.

Mas eu já tinha cedido meu coração a alguém além do meu mundo familiar. Quando me juntei e formei uma família imaginária com Finn, meu coração estava se ampliando, englobando maiores capacidades de receber e doar amor. Aconteceu ali, naquela aula, naquela mesa, naquele dia.

Eu tinha me apaixonado, mesmo sem saber de fato, na época, o que isso significava e quais proporções este sentimento poderia adquirir.


Parte II - The Man Who Can't Be Moved.

Minhas aptidões eram nulas. Não era capaz de fazer muita coisa além de ficar em um canto observando todos e tudo ao meu redor – era o tamanho do meu mundo. Eles lá, e eu aqui; separados como se houvesse uma enorme placa de vidro entre nós. Uma redoma de vidro, por assim dizer.

Muito embora eu fosse o que minha mãe classificava como "atípico" – não nutria nenhum interesse por esportes como a maioria dos meninos, por exemplo –, sempre sendo o peixe fora d'água, era surpreendente a facilidade com a qual as pessoas de diversas idades gostavam de mim. Idosos, no parque, diziam "Ele é tão quietinho, isso é um sonho!". Já as crianças – inclusive na escola, posteriormente – preferiam observar outra característica que eu nem sabia que carregava: "Você é engraçado". Mas minha mãe não arredava o pé, eu era o oposto do que ela imaginou que eu seria. Meu pai, por estar na maior parte do tempo em missão, pouco me via e pouco acompanhava as minhas gradativas evoluções.

"Você está maior, garoto!".

E eu sempre estava, realmente.

Ele perdeu meu primeiro dia de aulas; não brincou comigo de guerrilha com os bonequinhos da coleção do Batman; não assistiu aos meus desenhos preferidos; não pôde comparecer ao meu primeiro jogo no time de futebol júnior, quando me juntei a ele depois de alguns meses na escola.

Meu pai era ausente das mais variadas maneiras. Pouco nos ouvíamos e pouco nos falávamos. Minha mãe recebia algumas cartas dele as quais lia para mim, em alguns casos (somente os trechos remetidos a mim), mas acho que ele nunca recebeu as respostas, nem mesmo os meus desenhos que minha mãe ficava extasiada de postar no correio. Como ela nunca se adaptou inteiramente às tecnologias não havia meios de comunicação além de algumas ligações esporádicas, quando meu pai estava hospedado em alguma base para treinamento, ao invés de estar em operações militares.

Quando ele conseguia ser dispensado por uma semana – às vezes menos – do serviço, visitávamos parques e museus arqueológicos, pois eram meus preferidos. Aos poucos, nossas saídas se tornaram escassas, pouco produtivas e sem graça. Nem eu nem ele conseguíamos nos habituar àquela relação desregulada; mesmo antes de eu nascer, ele já estava envolvido no Exército e foi necessária a sua permanência, de modo que, às vezes, eu chegava a perguntar à minha mãe se eu tinha mesmo um pai. Como eu poderia ter, se não o vi praticamente nunca? Ou se ele era um completo estranho para mim? Pouco sabia sobre ele, e pouco ele sabia sobre mim.

Nossas despedidas eram constantes e, ainda assim, não efetuavam nenhum tipo de sentimento em mim; deveria querer ir com ele, deveria chorar e pedir para que ficasse, no entanto eu apenas acenava, ou o abraçava. "Vamos nos ver em breve, ok?", ele fazia questão de ressaltar, talvez com o intuito de despertar alguma esperança; como uma promessa. Então ele me abraçava, e eu dizia: "Ok". Era tudo o que eu tinha a dizer. Ele sempre acabava retornando, de qualquer maneira. Um dia, depois de muito tempo experimentando sua ausência que, dia após dia, se fazia bem menos dolorosa. No fim, houve aquele momento no qual eu entendi que não sentia sua falta, por mais que, no fundo, gostaria de tê-lo ali em casa para sempre e saber que, sim, eu tinha um pai que dedicava seu tempo a mim, não ao país.

Eu o tinha apenas na minha imaginação, de certo modo, e isso não era o bastante.


Os dias na escola eram monótonos, ainda que eu fosse uma criança atenta demais aos detalhes. Eu, como um quase observador nato, sentia cada vez menos vontade de estar ali, fosse por toda aquela energia dispersada pelos meus colegas (como eles conseguiam berrar e correr tanto?), ou por falta de novos episódios – todos eram egocêntricos e faziam questão de recontar sempre as mesmas histórias; o dia em que foram comer algodão-doce, o livro preferido que seus pais liam na hora de dormir, o nome do cachorro. Sempre igual, sempre sem emoção.

Havia aquele trio esquisito que sempre chamava a atenção de todos; as duas meninas – uma, por sinal, era tão agitada que eu quase não conseguia acompanhá-la – e o garoto da varinha colorida. Lembro que os outros meninos riam dele por isso. Ele, ao contrário dos outros que normalmente choravam quando eram ridicularizados, dava as costas a todos e ia se juntar às meninas como se o que quer que tivesse ouvido não tinha nenhuma importância relevante – ele era muito bom em ignorar os outros, exatamente como a menina dos cabelos escuros e brilhantes cuja mão era a primeira a se erguer para se disponibilizar a fazer as leituras e se exibir diante a turma. Ela era a mesma garota tão enérgica e tão incapaz de fechar a matraca que me fazia sentir um completo esquisito. Pensando bem, ela era a esquisita, porém eu gostava da esquisitice diferente dela. Porque ela, como um todo, era um pouco diferente. Talvez um pouco mais inteligente do que a média feminina dali.

E qual foi a minha surpresa, três meses depois, quando aquele maldito projeto familiar nos uniu – quer dizer, ela era somente a minha dupla, a minha esposa "de mentirinha". No entanto, não podia ser pior. Ela precisava ficar dizendo tudo o que eu deveria fazer e/ou falar (isso, antes de eu lhe comunicar que, na verdade, não estava disposto a falar em público), e quando eu apenas assentia, havia aquele momento no qual ela expressava impaciência e me perguntava se eu estava mesmo acompanhando suas solicitações. Quem a visse, não daria 5 anos àquela menina tão mandona e tão proativa. Crianças de 5 anos não têm tanta capacidade de oratória como ela o tinha. E isso era um pouco irritante, insuportável. Eu, tão acostumado a apenas concordar e a ficar quieto, não era capaz de lidar com alguém tão oposta a mim – a todos, na verdade; ninguém mais, além da menina loura e do menino da varinha, ousavam se aproximar muito dela.

"Quantos cachorros?", ela me perguntou, sem olhar para mim; estava olhando as opções na folha. "Por que tem de ser cachorros? Eu gosto de gatos", ela adicionou baixo, parecendo um pouco brava. Essa garota era impressionante; tão expressiva quanto insuportável. "Eu tenho um cachorro", eu disse para evitar que ela se levantasse e fosse reclamar com a professora. Eu sabia que, em poucos minutos, isso iria acontecer. "O meu gato é laranja, o nome dele é Peter", a garota me informou, sem perceber que estava me interpelando. "Meu pai o adotou depois que eu fui para casa", ela continuou dizendo. Confirmei que a entendi com a cabeça.

"Não quero um cachorro, vamos ter um gato. Vou falar com a professora", ela avisou e se levantou, ainda que a professora já tinha nos solicitado ficarmos sentados que ela, de bom grato, nos auxiliaria nas mesas. "Oi, Rachel. Precisa ir ao banheiro?", a professora perguntou a menina, se inclinando para ficar mais ou menos de sua altura. Rachel negou e apresentou a folha rabiscada. "Nós não queremos um cachorro", ela falou.

Fiquei um pouco com raiva. Não tínhamos, exatamente, estabelecido juntos o animal; ela não queria um cachorro. Não havia nenhum 'nós', porque ela nem me deixara falar. Quando eu lhe contei sobre meu cachorro, ela não perguntou como ele era, ou qual seu nome, saiu falando sobre seu gato estúpido. Fiquei tentado a ir até elas e explicar a situação – mas então percebi que não estava ligando o suficiente para a tarefa; tudo o que realmente queria era me livrar dessa garota.

"Aqui", Rachel retornou ao seu lugar, colocando a folha de respostas a sua frente. Vi que a professora tinha escrito algo relacionado a gatos abaixo; a garota parecia mais satisfeita. "Vamos ter dois gatos".

Ela nem me perguntou se eu gostava de gatos! E, não, eu não gostava deles. Não queria ter um gato alaranjado, nem qualquer outro tipo de gato.

"Tudo bem".

Não havia muito que discutir. Não queria discutir com ela, de qualquer jeito. Eu sabia que perderia, isso era indiscutível. Além do mais, brigar com uma menina no meio da aula seria ridículo.

"O que você quer ser quando crescer?", a menina me perguntou, olhando séria para mim. Dei de ombros. Talvez devesse ter dito que gostaria de ser como meu pai, um servidor do Exército, mas eu não queria ficar longe de casa, sem saber quando iria dormir, ou quando iria rever meu cachorro. "Você não sabe?", havia surpresa e repreensão no tom dela. E como deveria saber? Tínhamos cinco anos! Eu mal sabia o que queria almoçar, imagine que carreira seguir! "Você tem que escolher alguma dessas", ela me passou a folha e ficou me observando enquanto eu leia as opções de profissões. "O que vai escolher?", Rachel perguntou, com ansiedade; seus olhos miravam meus movimentos com minúcia, como se qualquer um deles pudesse denunciar onde eu marcaria o 'x'. "Não sei", retruquei. "De que você gosta?", ela quis saber, mas antes que eu tivesse oportunidade de proferir algo, Rachel emendou rapidamente: "Eu gosto de cantar, assisti a um monte de musicais com meus pais desde meus três anos. Eu quero cantar quando grande".

Apenas um pensamento me ocorreu naquele momento. Essa garota é louca.

Desenhei o 'x' logo na frente da sentença mais comum: Jogador de futebol. Eu achava que fosse capaz. Desde que entrara no time infantil da escola, meu interesse pelo esporte se aflorou e, embora não me visse ganhando a vida com isso, achei que fosse uma alternativa segura.

"Bem, isso é meio chato", Rachel pontuou depois que viu a minha resposta. Havia um quê de zombaria em seu tom, pude notar. "Cantar também é meio chato", retorqui de imediato, com raiva. Como se já não bastasse ela não me deixar escolher entre um gato e um cachorro, agora estava me dizendo que minha futura profissão – mesmo que de brincadeira – não era boa o suficiente?

"Mas eu gosto de cantar!", Rachel falou, ofendida. Sua expressão suave se carregou, e quase jurei que fosse me dar um pontapé por debaixo da mesa. "E eu gosto de futebol", disse com segurança. "Mas é só uma bola idiota. Você tem que ficar correndo atrás dela, isso é chato!", Rachel, ao que parecia, era ótima em rebater mesmo aos cinco anos. Era completamente surpreendente.

"É porque você é menina", respondi. "O Kurt também não gosta e ele é um menino", Rachel salientou como se dissesse: 'E o que você pode dizer disso, hein?'. Mas eu não tinha o que dizer. Nada que pudesse expor para ela, ao menos. Quer dizer, o garoto da varinha era tão esquisito quanto ela própria; e, claramente, não poderia dizer isso a ela, uma garota tão irritadinha, imponente e que se achava dona da verdade.

Dei de ombros.

"A mãe dele morreu, mas o pai dele disse que ele poderia continuar no ballet", ela me confidenciou, olhando um pouco para o amigo. "Ele faz ballet?", não consegui reprimi a minha louca vontade de rir, e isso fez com que Rachel me olhasse feio. "Ele gosta", seu tom estava tingido de raiva. "E eu gosto dele", ela complementou, sugerindo que, independentemente de qual era o hobby de Kurt não interferia na sua amizade com ele.

"Eu não gosto dele", falei.

Ela comprimiu os lábios, irritada. "E da Quinn?".

Quinn era a menina loura amiga em comum de Rachel e Kurt. Ela seria a Tinkerbell na peça infantil da escola algum dia. Eu tinha certeza disso, apenas olhando-a. Olhos bonitos, cabelo bonito, jeito bonito. "Ela é legal", respondi, sem pensar muito. Ela havia me emprestado o seu estojo de canetinhas no último trabalho artístico que tínhamos feito. Antes que Rachel pudesse controlar a ânsia, a pergunta saiu por sua boca carregada de uma notória ansiedade. "E eu?".

Dizer a verdade seria muito ruim. Ela poderia querer me chutar de verdade, ou sair chorando para a professora, ou então dar um ataque, ou então nunca mais querer falar comigo – o que, de certo modo, era uma perspectiva que eu poderia vir a encarar com alívio. Com certeza, não queria nunca mais fazer nada com ela; projetos escolares, especialmente. E, certamente, dividir uma vida com ela – e com os gatos dela – seria torturante. Ficava bastante agradecido por aquilo ser apenas uma encenação. Não seria nada agradável ter de me casar efetivamente com ela.

"Eu não sei", falei. "Você tem que assinalar a sua profissão", ao invés de pensar um pouco mais sobre o que lhe dizer, achei que era hora de mudar de enfoque. Se ela tivesse de dar atenção ao trabalho, talvez pudesse esquecer-se do meu julgamento.

Rachel o fez; marcou 'empresária' – mas duvidava muito que ela soubesse que carreira era essa. Porém, logo depois olhou para mim com determinação. "Você não me respondeu".

E nem ia. Será que ela não entendia?

"Achei que você quisesse cantar", comentei, verificando a folha preenchida. "Eu quero, mas não tem nada escrito sobre isso", Rachel apontou para nossas respostas. "Fale com a professora", sugeri. Seria ótimo se ela saísse da mesa e fosse discutir com a professora. "Não faz mal", ela disse.

"Mas você falou sobre os gatos. Eu não quero ter um gato".

"O que você quer ter?".

"Um cachorro. Nós podíamos ter um cachorro também", respondi de imediato. "Dois gato e um cachorro?", ela me perguntou para confirmar. "O casamento não é sobre você", falei. Eu entraria numa briga com ela, mas que se danasse. Melhor do que ter de dizer que, na verdade, ela não era nada legal e que eu não gostava dela nem um pouco – apesar de, antes de me juntar a ela, até gostava de seu jeito diferente. Agora, não mais. Nunca mais, também.

"Mas você não falou nada! Você me deixou ter dois gatos!", Rachel contestou, irritada. "Não quero mais, então", eu disse.

"Você não gosta de mim", Rachel afirmou. Não era uma pergunta.

"Você gosta de gatos e quer cantar quando crescer!", analisei. "E daí?", seu tom denunciava toda a sua impaciência. "E daí que você não é nada legal. Você é assustadora".

"Eu também não gosto de você".

E então Rachel pegou nossa folha de respostas e saiu da mesa, levando-a junto. Entregou à professora e, quando achei que fosse sentar-se novamente e ficar emburrada pelo resto do período, ela não voltou; ficou desenhando junto a Kurt – os dois esquecidos ali no canto, ambos esquisitos.

Fiquei com vontade de pedir desculpas a ela, mas, apesar de tudo, não queria ceder. Não queria que ela soubesse que havia ganhado a batalha. Eu sabia que, dali pra frente, ela sempre ganharia tudo.

Alguma coisa aconteceu depois disso. Não sabia o que era, com exatidão.


Oi, cherries!

Não consegui conter a minha ansiedade e minha curiosidade para saber o que vocês acham desta minha nova fic, por isso já a estou postando agora, mesmo sabendo que meu tempo é limitado para escrever. Sei que o shipper não condiz com NT, mas espero que quem for fã de Finchel a aprecie!

Como vocês puderam notar, cada "parte" será intitulada com uma canção! Pode deixar que eu disponibilizo o nome da banda/cantor/cantora para que, caso vocês se interessem, possam ouvi-las!

Parte I - Time Travel (Never Shout Never)

Parte II - The Man Who Can't Be Moved (The Script)

Anyway, apenas peço reviews! Beijos! ;)