O dia nasceu fresco e nublado. Uma brisa leve e fria fustigava a paisagem pálida e ressequida, levantando pequenas nuvens de poeira decorrente da estiagem prolongada e mostrando os indícios do início de uma nova estação. Eram os primeiros dias de inverno, mas a temperatura ainda se apresentava satisfatoriamente agradável, resultado de um outono excessivamente quente e seco: há muito tempo não chovia.
Fachos de luz da manhã entravam pelas frestas da janela da suíte principal de Grimmauld Place, 12, e revelavam a dança das minúsculas partículas de pó que se levantavam do tapete puído, enlevando-se num delicioso e alegre balé que dava as boas vindas ao novo dia. Ao centro do aposento, a larga cama de colunas ornada por cortinas rendadas se impunha e, em meio aos confortáveis e acolhedores lençóis de algodão branco, destacava-se o tom vermelho fogo da vasta cabeleira de uma jovem que ressonava.
Ginny abriu os olhos com dificuldade, protegendo-os com uma das mãos da claridade que insistia em invadir o cômodo e anunciar o despertar de uma nova manhã. O aroma de camélias do campo desprendia-se do buquê acomodado num vaso a um canto do quarto, fazendo-a inalar profundamente seu perfume e tentar retê-lo o maior tempo possível, resultando em um longo e preguiçoso suspiro.
Ela varreu o cômodo com o olhar, como que procurando se certificar de onde estava, percorrendo, sonolenta, as paredes d'A mui antiga e nobre Casa dos Black, revestidas de papel surrado e envelhecido. Parou por um instante na Firebolt, encostada a uma aresta e com as cerdas desarranjadas voltadas para cima, que tinha pendurada à guisa de colar uma bonita medalha no formato de uma Goles. Um olhar mais atento poderia ler: "Melhor Artilheira – Temporada 2004". Ao lado desta podia se admirar, dependurada em uma cadeira de espaldar, uma das vestimentas das Holyhead Harpies, com suas cores verde-escuras onde se destacava em dourado o número sete numa das laterais e uma garra de ave no peito.
As roupas de cama macias e perfumadas convidavam a ficar um pouco mais junto a elas, e a garota acomodou o rosto novamente ao acolhedor travesseiro de plumas. A porta do lavabo se abriu e de lá saiu um rapaz de físico magro e ligeiramente alto, que lembrava o cabo de sua vassoura, sendo que os cabelos espetados nada deviam às cerdas desta. Grosso modo, a única diferença é que o objeto mágico não usava óculos.
— Não queria te acordar – disse Harry ao observar a esposa entorpecida sobre a cama. – É que tenho que estar cedo no Ministério, hoje.
— Não foi você... me acostumei a acordar cedo... – disse ela se espreguiçando longamente. – Fique comigo hoje – ela pediu, demonstrando que despertara completamente ao posicionar-se de joelhos sobre a cama –, cheguei de viagem ontem e já vai me abandonar?
— Ginny, você sabe que passei os últimos quatro anos treinando intensamente para representar com dignidade o cargo de Chefe do Departamento de Aurores que Kingsley me confiou... e a hora é essa. Nós temos todo o tempo do mundo pela frente...
— Não há mais Comensais da Morte, Harry! – ela respondeu num tom de decepção, abraçando os joelhos junto ao peito.
O bruxo se aproximou dela e, acariciando seu rosto com as costas da mão, depositou-lhe um beijo na testa, em meio a um sorriso de compreensão.
— Logo eu te compensarei por este tempo que nos está sendo tomado – ele disse, despedindo-se. – Vá passear um pouco! Porque não aproveita para fazer algumas compras no Beco Diagonal? Convide uma de suas amigas!
Pouco depois ela ouviu a porta da frente se fechando à saída do esposo. Ginny não se sentia satisfeita já há algum tempo. O casamento com Harry foi tudo o que sempre sonhou, mas ela se sentia incompleta. As coisas aconteceram rápido demais, o tempo também passou muito depressa e a distância que os mantinha separados devido às profissões que escolheram a incomodava profundamente.
Afinal, seria uma aberração ela desejar que aquele a quem ela sempre amou a paparicasse um pouco e a fizesse se sentir importante? Seria pedir muito que ele abrisse mão de seus deveres por um dia que fosse para satisfazer a um capricho seu?
Ela olhou para o ramo de flores com que ele a presenteou na noite anterior, sabedor de serem as suas prediletas, e quis não mais sentir aquele aroma que significava a presença dele: as tímidas demonstrações de seu apreço por ela estavam se tornando ineficazes para os seus desejos. De que adiantavam os pequenos gestos se ela quase sempre se sentia só?
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Como se habituou a fazer todas as manhãs, Narcissa terminou seu desjejum e dirigiu-se até a varanda da Mansão dos Malfoy para ler o seu exemplar d'O Profeta Diário. Após correr os olhos pela primeira página, ela passou a procurar por algo nas folhas internas do tablóide, visivelmente perturbada pelo assunto que a interessava não ter tido o destaque desejado.
O jovem loiro que a acompanhou à mesa também saiu para apreciar os derradeiros momentos de tempo bom, antes da chegada inevitável do frio. Quando Draco se aproximou do balcão que dava para os jardins da propriedade, com um copo de suco de abóbora em umas das mãos, ela foi logo reclamando:
— Um absurdo! Um evento social tão importante como o seu casamento não mereceu mais do que uma nota na coluna social!
Ele lançou-lhe um olhar cansado e, voltando sua atenção novamente para as sebes mal tosquiadas que dominavam o quintal, respondeu, dando de ombros:
— Já se foi o tempo em que os Malfoy eram destaque na imprensa, mãe – disse o rapaz amargamente. – Hoje devemos agradecer pelo nosso nome não constar na coluna policial!
A mulher o fuzilou com o olhar, a indignação estampada em seu rosto.
— Pelo menos seu pai e eu estamos fazendo o possível para que o nosso nome volte a ter o mesmo peso e destaque que possuía antes da guerra – ela disse, procurando manter a altivez caracterizada pela mais fina aristocracia. – Talvez seja o fato desta ser a sua quarta noiva em tão pouco tempo que coloca nossa situação em total descrédito!
— As outras três não me ofereciam... aquilo que procuro – ele balbuciou mirando fixamente o líquido em seu copo: na verdade, suas palavras eram mais para si próprio do que uma justificativa ao tema abordado pela mãe. – Quem sabe agora...
— Três ruivas! Interessante isso, não? O que você procura afinal, Draco? – a bruxa levantou-se de seu assento e, deixando o jornal de lado, dirigiu-se lentamente em direção ao filho, o olhar fixo em seu semblante.
— Aquilo que anseio... não ser perseguido por sombras do meu passado... ter o controle do meu destino... – a voz dele era trêmula, não era um hábito seu expor seus sentimentos e fraquezas a ninguém que fosse, mas naquele dia ele se sentia mais vulnerável, mais propenso a se confessar e o questionamento de sua mãe fê-lo abrir seu coração mais do que desejava.
— Não se esqueça nunca de que você é um Malfoy, meu filho – foi a resposta da mãe, em tom de discurso. – Estamos acima destes sentimentos simplórios, apenas o poder e a influência devem ser nossos objetivos!
O jovem se calou, sabia que discutir com a mãe era uma batalha perdida. Ao invés disso ele tomou de um só gole o líquido que ainda restava em seu copo e voltou-se novamente com o olhar em direção ao horizonte. Um suspiro profundo foi o único som que emitiu.
Demonstrando preocupação, Narcissa se aproximou do rapaz, percebendo que algo se passava em seu interior. Apesar da educação rígida que sempre lhe aplicara, ela jamais poderia ser acusada de não demonstrar o amor que sentia pela sua descendência, tendo arriscado a própria vida mais de uma vez por ele.
— O Ministro já marcou uma data para recebê-lo em sua nova atividade? – ela mudou de assunto, achando melhor não se aprofundar em um possível momento de fraqueza do filho.
— Ministro? – ele respondeu com desdém. – Como lhe disse, foi-se o tempo em que os Malfoy eram recebidos pela mais altas patentes. Será o seu assessor... o Weasley, a me atender... esta tarde.
— Oh, meu filho! – ela desabafou, num lamento. – Sei que passamos por tempos difíceis, mas seu pai lutou muito e usou de todo o conhecimento que nos restou para lhe arranjar esta colocação. Agarre-a com todas as suas forças! Somente com você tendo um cargo digno e fazendo um casamento influente é que poderemos voltar a ocupar nosso lugar de direito na comunidade bruxa!
— Não se preocupe, eu farei a minha parte – ele respondeu enchendo o peito e empinando o nariz como lhe fora ensinado e, apanhando sua capa que repousava a um canto, dirigiu-se em silêncio para a porta principal da casa.
— Aonde você vai a essa hora? – perguntou-lhe a matrona no momento em que este atravessava a soleira da porta, mas o único som que recebeu em resposta foi o estalo seco, típico de alguém aparatando.
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Conforme sugerido por Harry, Ginny enviou logo cedo uma coruja à uma de suas colegas do time de Quadribol, com quem combinou de se encontrar no final daquela manhã para fazerem compras. Ela a aguardava defronte à Gemialidades Weasley, mas seu pensamento estava distante: idéias e sentimentos desconexos viajavam muito longe dali.
A conversa que teve com Harry naquela manhã ainda perturbava seus pensamentos. Ela sempre esperou por ele, desde o primeiro momento em que o conheceu, e não desistiu quando o viu enlaçado pelos braços de outra. Finalmente ela teve sua presença percebida por ele, em seu quinto ano em Hogwarts, mas também teve que abrir mão disso por algum tempo devido à terrível carga que ele tinha em seus ombros. Ela não era e nunca foi uma tola, pois sabia da importância e necessidade de que seu amado cumprisse seu destino, e mesmo quando a guerra acabou, ela compreendeu que após ambos terem concluído seus estudos, ele quisesse se dedicar à carreira que escolheu.
A oportunidade de se profissionalizar como jogadora num time formado só por bruxas caiu como uma luva em sua vida, pois assim ela poderia se dedicar à sua carreira e ao mesmo tempo se distrair com algo que adorava fazer. E um ano depois teve como prêmio o seu casamento, tudo parecia estar indo muito bem, mas pouco mais de três anos deste relacionamento a deixaram profundamente carente e insatisfeita: suas viagens constantes aliadas às também constantes ausências de Harry, os desencontros de datas para ficarem juntos, a falta de interesse deste em abrir mão de sua rotina para compartilhar de sua companhia com ela... o assédio de outros bruxos que acompanhavam o circuito de Quadribol...
Ela sempre foi fiel a Harry. Na verdade esta fidelidade nunca foi sequer abalada, pois todos aqueles que a desejaram não conseguiram lhe despertar qualquer sentimento ou interesse, por menor que fosse. Mas ela não negava a si própria que o seu envolvimento com Harry fora prematuro: se ela tivesse tido uma relação mais íntima com outros rapazes antes de se casar, talvez não sentisse agora a carência e o saudosismo daquele tempo em que não era prisioneira de um compromisso.
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Draco desaparatou no início da rua principal do Beco Diagonal e se dirigiu resoluto até o "Bola de Cristal", um pub freqüentado geralmente por bruxos de sangue-puro, mas em decadência, como aconteceu à quase totalidade dos simpatizantes das artes das trevas.
Ele se sentou à uma mesa próxima da janela que dava para a rua e logo o barman se aproximou com uma taça de vinho dos elfos, aparentemente já habituado com suas visitas. O jovem bruxo mal olhou para aquele que o servia. Pela vidraça suja e empoeirada ele observava os transeuntes que admiravam as vitrines. Uma ou duas garotas que passavam eventualmente o encaravam também, afinal ele havia se tornado um playboy conhecido no mundo bruxo, famoso também pela fortuna que sua família possuiu até a pouco, mas que estava se desintegrando rapidamente nos últimos tempos.
Ele admirou a pulseira de prata que carregava em seu pulso e que era o único objeto de valor que lhe restara, uma herança de seus antepassados e que trazia o brasão de Slytherin em relevo. A imagem da jóia era refletida pela incomum taça que repousava à sua frente: artefato de tamanho exagerado e que imitava a metade de uma bola de cristal. Ele segurou sua base entre os dedos indicador e médio, girou suavemente o seu conteúdo em movimentos circulares e aspirou o aroma, provando o bouquet logo em seguida com uma expressão de satisfação: o líquido branco e encorpado que emitia uma luz fraca e cintilante era famoso por possuir efeitos mágicos.
O pensamento de Draco foi remanejado ao passado e às palavras que deixou escapar à sua mãe há pouco. Estaria realmente aquilo que ele procurava ligado à presença de uma outra pessoa? Seria por isso que desistira dos outros noivados pouco antes destes tomarem o rumo de um casamento? E o fato de todas que o interessaram terem sido ruivas, seria uma mera coincidência? Sua mente se perdeu em devaneios até que ouviu uma voz conhecida chamá-lo pelo nome:
— Malfoy? Sr. Malfoy?
Ele teve sua atenção desviada e viu a professora Trelawney ao seu lado, com seus xales, colares de contas, correntes, anéis e os tradicionais óculos de lentes grossas.
— Oh! Eu sabia que era o senhor... – ela continuou –... Rocco...
— Draco – ele corrigiu mal-humorado.
— Mas é claro! – ela disse se sentando à sua mesa. – Jamais esqueço um ex-aluno... e vejo que tem bom gosto – completou, apontando para a taça sobre a mesa. – São poucos os que conhecem a fineza de um bom gole de vinho pela manhã! – ela colocou a bolsa enorme sobre a mesa e de lá retirou uma garrafa de xerez quase vazia e um pequeno copo de dosar. – Permite que eu o acompanhe?
Draco fez um gesto cansado de aprovação, e a bruxa encheu o copinho até quase transbordar e o virou garganta abaixo. Em seguida, encheu-o novamente e então dirigiu os olhos anormalmente ampliados pelas lentes de grau para o outro.
— Mas me conte – disse ela com um sorriso íntimo, o cheiro que transpirava e a indolência na voz sugerindo que aquela garrafa deveria estar cheia até bem pouco tempo atrás –, tem visto o Potter? Vocês estudaram na mesma época, não é mesmo?
— Não – ele se limitou a dizer, entediado.
— Por diversas vezes eu previ a morte daquele garoto – ela disse enquanto apreciava o formato da taça em que seu acompanhante se servia –, mas sempre errei e hoje eu sei o porquê! – concluiu e esvaziou o seu copo de um gole, tornando a enchê-lo com o restante de bebida que ainda descansava em sua garrafa.
— E... por quê seria? – ele disse, levantando uma sobrancelha.
— A clarividência está correta, apenas a data da ocorrência ainda está por vir – ela completou, e passou a analisar meticulosamente a taça que ainda continha vinho pela metade.
— O quê quer dizer? – o jovem insistiu.
— Ele ainda morrerá... só que, obviamente, não no período que previ... mas, será em breve – ela esvaziou a última dose de xerez e seu interesse se voltou novamente para a taça de Draco, mais precisamente para o conteúdo desta. – Eu vejo isso! – disse fazendo um movimento circular com as mãos ao redor do objeto que continha o vinho dos elfos e que teve sua luminosidade intensificada com este gesto.
— É só uma taça – ele disse, reparando no interesse dela. – Não é uma bola de cristal verdadeira em que possa fazer suas predições.
— Aí é que se engana, Sr Malfoy – retrucou a mulher, ajeitando os xales sobre os ombros. – Não é a bola de cristal que tem poderes, e sim o bruxo que a manipula.
Ela alternou seu olhar rapidamente entre o rosto ariano à sua frente e o conteúdo líquido que a atraía. Então, subitamente ela avançou a mão em direção à taça, ao mesmo tempo em que Draco imitou seu gesto. As mãos dos dois se tocaram na base. Draco sentiu uma estranha sensação tomar conta de seu corpo, o líquido branco mostrou um brilho mais intenso. Ele olhou para o semblante da bruxa, que estava transfigurado e etéreo. Presa em algum tipo de transe, ela começou a falar, numa voz estranha:
"A dívida que o perturba será quitada em breve, e aquilo pelo que você anseia e que habita seu inconsciente será atirado contra você. Só possuindo o que deseja você será dono do seu destino!".
Draco olhou para a taça de vinho e viu o rosto de suas três últimas noivas passarem rapidamente, imersas na bebida, suas imagens fracas e descolores, até que um novo rosto começou a se formar na superfície do líquido. Seus cabelos envolveram o restante da taça tornando o vinho vermelho como sangue: ele reconheceu o rosto a quem pertenciam aqueles olhos cor de mel que o fitavam intensamente.
— Ginny Weasley! – ele balbuciou e retirou a mão da taça num impulso, desfazendo a união com Sybill.
Esta saiu do transe e, olhando à sua volta um pouco desconcertada e sem recordar do que ocorreu, levou à boca a taça onde há pouco havia a imagem daquela que foi mencionada em sua recente profecia.
— Hã? Não era vinho branco? – ela disse, pouco antes de entornar o líquido, agora em um tom rosé, num grande e demorado gole.
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