ED. 2/6/2012: Capítulo repostado com modificações semi-perceptíveis. A história pode ser localizada mais ou menos após o arco da invasão da Ordem Negra, mas antes do arco que introduz o personagem Timothy Hearst. Grande parte dessa história se foca num OC, um personagem original, mas -Man (FF vai cortar esse nome pela metade, eu aposto) e todos os seus personagens pertencem à dona Katsura Hoshino. Espero que apreciem a leitura.

xx Katsucchi

PEDAÇO DE ESPELHO

Primeiro Ato

"... Qual é seu nome, criança?"

Ele não podia ver a face de quem lhe falava, pois nem ao menos erguia o rosto para encará-los. As pessoas eram sombras e a cidade, uma construção disforme, fracamente iluminada pelo sol que se punha, vermelho.

- Spiegel.

A voz respondeu rouca e fraca, como se não a utilizasse com freqüência. Para qualquer um que o olhasse, era um menino, uma criança em roupas escuras que se molhavam porque seus pés desapareciam na água escura do lago. Ele apenas, ninguém mais na água gelada.

- ...Eu sou Spiegel. – ele repetiu para que pudessem ouvi-lo.

Era uma criança, mas possuía o olhar maduro das pessoas que já viram demais, olhos opacos e feridos, como vidro embaçado no lugar que era aos poucos devorado pela sombra.

"... Se aproxime agora, Spiegel."

O menino obedeceu, pisando na terra com os pés pálidos e sentiu a corrente escorrer para seu pescoço, gelada. O pingente tinha a forma de uma cruz e era feito de prata escura. Uma cruz celta.

"... A coragem é que vai guiá-lo agora, criança..." foram as palavras das sombras. "Não seja enganado pelo que há dentro de si, nem pelo que está ao seu redor... Apenas permita aos seus olhos refletir a verdade que você sabe que é única."

Spiegel apenas envolveu a corrente entre os dedos, em silencioso acordo para com aquela ordem.

XXXXX

O que é escuro atrai o escuro.

Ainda assim, sem escuridão não há luz. E sem luz não há escuridão.

Dividi-los parece pura perda de tempo. E mesmo assim, desde sempre, eles são marcados diferentes a ferro e fogo.

Daquilo ele ainda se lembrava.

- Você não fala?

A pergunta de Road Camelot veio acompanhada do toque de seus dedos no rosto pálido e sujo da criança. Eles se encararam nos olhos e o menino viu os da pequena garota do clã Noah escurecerem um tom de dourado-âmbar com irritação.

- Não vai responder? – ela perguntou, segurando o queixo do garoto que continuava completamente inexpressivo. – E gritar? – sussurrou Road, pressionando uma unha afiada contra sua pele. – Você pode?

As pupilas dos olhos verdes do garoto se retraíram quando sangue aflorou em sua face e Road alargou os lábios num sorriso sádico, aumentando o corte na pele.

- Engraçado... – ela comentou quando o corpo dele enrijeceu preso à pilastra em que pregara suas mãos depois de encontrá-lo perto do local que escolhera para brincar naquele dia. – Que engraçado... Mesmo sentindo dor, você não fala... – ela riu. – Quanto tempo será que você agüenta?

O garoto viu a vela de extremidade afiada como uma faca surgir na mão erguida. Road Camelot seria algo que qualquer determinaria maligno sem pensar duas vezes. Ela encarnava a maldade infantil, mas em essência era um ser humano que dera as costas aos seus iguais e mergulhara em morte.

Chegava a ser fácil de ver.

Ela amava a guerra porque não tinha nada mais para amar.

E ele não gritava porque, naquele ponto, eram parecidos. Então, gritar não fazia diferença.

O corte já havia ido da metade de sua face esquerda até o meio do pescoço quando se ouviu a explosão.

Road virou a cabeça e sua expressão escureceu com insatisfação pouco madura.

- Mas eles já chegaram...? – ela soltou, afastando-se dele.

A cabeça do garoto pendeu na direção do peito quando ela se levantou e ele permitiu-se ofegar uma vez. Sua pele estava ardendo na área do corte, assim como nas mãos atravessadas por pregos. Ao longe, os guardas-máquina eram destruídos com poucos golpes. Road Camelot sorriu.

- Alô, Al-len~! – cantarolou ela, alto, acenando com uma mão e, com a outra, agarrando os cabelos negros da criança no chão.

O vulto branco a localizou de longe e, num piscar de olhos, tinha uma espada gigantesca apontada para seu peito.

- Solte-o, Road! – mandou a voz por trás da máscara azul.

A pequena Noah riu embora o rosto do garoto, que ela obrigara a ficar erguido, pingasse sangue em suas botas.

- Vem tirar ele de mim, Allen! – convidou, aproximando o pavio aceso da vela do corte aberto. - Mas veja lá o que você vai fazer... Ou eu posso acabar piorando as coisas.

Os lábios do garoto estremeceram, mas ele permaneceu em silêncio com os olhos arregalados e fixos num ponto. O mascarado rosnou em ameaça:

- Road...

Ela deu-lhe a língua, puxando mais a cabeça do menino.

- Não pense que eu vou deixar você tomar ele de mim tão fácil. – avisou num tom malicioso e sombrio. – Ele é um brinquedinho muito divertido... – de novo, seu sorriso se alargava de forma quase inumana. – Eu odiaria ter que matá-lo só pra não entregá-lo a você...

Por trás dos olhos de vidro da máscara, o olhar da pessoa refletiu sua raiva. Num salto rápido demais para Road antecipar, ele a obrigava a se afastar com um golpe de espada. A pequena Noah fez uma expressão de desgosto ao se encontrar longe de seu foco de interesse original e declarou:

- Você é um chato. – ergueu uma mão, conjurando as velas no ar e as lançando em sua direção como dardos.

O mascarado defendeu-se com o manto branco e, quando este baixou, ela abria uma porta para a escuridão.

- Me cansei de vocês. – falou. – Na próxima nós brincamos mais... – apontou para o garoto no chão com um sorriso sombrio. – Nós três dessa vez, soldadinho de chumbo.

A criança não respondeu, apenas ergueu ligeiramente os olhos para encará-la. E seu olhar verde foi tão vazio e escuro que o sorriso de Road se apagou e ela desapareceu contrariada na passagem, que se foi com sua partida.

O vulto branco deixou o fôlego escapar e fincou a espada no chão afastando a máscara do rosto. A face revelada também era muito jovem, mas marcada por uma longa cicatriz vermelha. Seus olhos, cinza-prateados, mostravam preocupação ao se abaixar para examinar a pessoa no chão.

- Hey? – chamou com a voz mais suave, tocando o ombro do garoto. – Está me ouvindo?

Mas, além de um brevíssimo tremor, a criança não lhe deu resposta, cabeça de novo pendendo na direção do peito. O rapaz segurou seu queixo e o ergueu com delicadeza, mas os olhos do menino mal pareciam capazes de se abrir.

- Está acordado? – perguntou o rapaz de olhos claros que tinha cabelos tão brancos quando a capa que usava. – Pode falar alguma coisa?

O garoto entreabriu os lábios e puxou o ar como se tivesse dificuldade em fazê-lo, mas, misturado ao gesto, pareceu formar uma palavra muda:

Frio.

- Frio? – repetiu o rapaz chamado Allen, um pouco preocupado. – Ah, mas que... – ele olhou em volta e foi até a arma fincada no chão. – Calma, eu vou te ajudar...

Um clarão de luz, e a coisa que eles chamavam de Innocence retomou sua forma original – o braço esquerdo do exorcista. Ele caminhou então até a pilastra de pedra e encontrou as estacas com que Road prendera o garoto.

- Agüente firme. – pediu Allen num murmúrio, segurando o primeiro dos pregos com uma mão. – Isso vai doer um pouco.

Quando arrancou a estaca, o garoto de cabelos escuros jogou a cabeça para trás com violência, os olhos fechando-se, apertados, e parecendo marejar enquanto seu corpo estremecia. Mas seus lábios permaneceram cerrados.

- Desculpe. – sussurrou o exorcista, se adiantando para arrancar a outra estaca. – Desculpe, mas é o único jeito...

Da segunda vez, pensou que ele fosse gritar, mas de novo isso não aconteceu. Uma lágrima chegou a escapar, mas a criança insistiu em trincar os dentes e não pronunciar qualquer som. Allen o amparou e o cobriu com a capa enquanto ele respirava pesadamente e se encolhia, as roupas sujas úmidas com o suor gelado que lhe cobria o corpo.

- Calma. – pediu o exorcista, rasgando duas tiras de tecido da própria camisa para amarrar em torno de suas mãos, estancando os ferimentos. – Calma, vai ficar tudo bem...

Ergueu-se com o garoto nos braços e notou que ele era muito leve e pequeno. Allen não conseguia determinar sua idade de forma alguma, de tão magro e baixo que ele era. Olhou na direção da entrada do salão a tempo de ver o resto do grupo se aproximar, tendo terminado de derrotar os akuma que ele deixara para trás ao avançar sobre Road. Caminhou até eles, carregando o menino consigo.

- O que é isso, Walker? – indagou Howard Link antes de qualquer coisa.

- Uma criança. – respondeu Allen, simplesmente. – Road Camelot estava aqui com ele. Ela o manteve prisioneiro.

- Quantos anos ele tem? – perguntou Lavi estendendo a mão para o pingente do garoto, que o outro exorcista notara por alto, por ser uma corrente com uma cruz feita de prata bem antiga. – Parece que foi maltratado mesmo...

- Eu não sei nada sobre ele. – respondeu o rapaz, mirando a face aparentemente desacordada da criança. – Ele não falou até agora.

- Vamos deixá-lo na cidade. – opinou Kanda Yuu sem pensar muito para decidir. – Alguém pode levá-lo num médico, nós temos que retornar à Ordem.

Mas Allen meneou a cabeça, segurando o garoto perto de si teimosamente.

- Não tem nenhum médico na cidade, Kanda, eles teriam que levá-lo à vila vizinha. – ele falou. – E esses ferimentos são perigosos.

O japonês revirou os olhos.

- E o que você sugere, moyashi? – perguntou impaciente.

Allen o olhou atravessado, mas respondeu sem relutância:

- Vamos levá-lo conosco. Para a Ordem.

-Absurdo, Walker. – devolveu Link, de imediato. – Não pode levar essa criança para a Ordem Negra sem motivo.

- Ele está ferido. – retrucou o exorcista mais novo. – E precisa de ajuda, por que a Ordem não pode ajudá-lo?

Os dois se encararam e Kanda soltou um "tsc" baixo. E depois ainda perguntavam por que Walker estava tão afogado em problemas. Lavi ergueu os olhos naquele momento da corrente que estivera observando e declarou:

- Eu acho que devíamos levá-lo conosco.

Allen e Link o olharam um tanto surpresos por suas palavras e por seu olhar, estranhamente sério, e o ex-membro da CROW perguntou:

- Por que pensa isso?

O ruivo mostrou o pingente de prata.

- Isso aqui não é qualquer coisa. – falou. – Tem inscrições na corrente e no pingente... Eu nem sei se ele consegue tirá-lo do pescoço se quiser. – olhou para a cruz celta. – Dezenas de feitiços e selos num único objeto. E Road Camelot o prendeu aqui. – ele largou a corrente, meneando de leve a cabeça diante do conjunto de fatores inquietantes. – Nós devíamos levá-lo mesmo até a Ordem. E logo, ele já perdeu um bocado de sangue.

Um breve silêncio caiu sobre o grupo, mas por fim, Kanda deu as costas e chamou impaciente:

- Então vamos embora de uma vez!

- Ah... Espera aí, Yuu!

- Kanda!

Allen apoiou melhor o garoto ferido no ombro e correu para seguir o espadachim, tentando não pensar no olhar silencioso que Link lançara para a criança.

Ainda não sabia se aquela era a escolha certa, só que era a melhor que podia fazer no momento. De resto, teria que esperar.