Indomado

(Untamed)

Parte 1

O ar ficou tenso. A imensa besta ergueu a cabeça, cheirando a brisa. Sua companheira fez o mesmo. Os pássaros estavam quietos, o que na selva era sempre um sinal de perigo. Entretanto, os únicos cheiros reconhecíveis vinham de animais pequenos, que não serviam de ameaça aos poderosos langossauros. Depois de alguns instantes, o casal relaxou e voltou à sua refeição de grama e folhas.

Langossauros eram herbívoros, mas também estavam entre as maiores criaturas que habitavam aquele mundo esquecido. O número de predadores que ousava arriscar a vida por um pedaço de sua deliciosa carne era muito pequeno, especialmente quando se tratava de um casal e a fêmea estava grávida. A gravidez impregna a carne das fêmeas de langossauros com um hormônio que a deixa mais macia, mas que também libera um cheiro que deixa o macho em alerta, tornando-o mais protetor e desconfiado. Por causa disso, estavam em segurança. Ou teriam estado há cinco anos atrás, antes de uma misteriosa estrela cair do céu, como um castigo dos deuses por algum pecado que ninguém cometera.

Daquela noite em diante, uma nova fera passara a aterrorizar todos os animais; tanto predadores como presas eram igualmente alvos do monstro, desde que fossem grandes o bastante para merecer sua atenção. O estranho ser parecia preferir as criaturas maiores e mais perigosas; e, enquanto até mesmo as feras mais cruéis matavam apenas para comer ou defender o território, ele matava principalmente por prazer.

Um par de olhos negros espiou através da folhagem a alguns centímetros do langossauro macho, tão imóveis quanto o resto de seu corpo. O único movimento detectável era um leve tremor na ponta da cauda que denunciava sua excitação, embora o rosto estivesse impassível. Todos os músculos estavam tensos, protuberando magnificamente através de sua pele nua. A única coisa que o cobria era uma mistura de fluidos e gorduras de animais pequenos, cujo cheiro enganara os langossauros.

As coisas que ele odiava dariam um livro bem grosso, e aquela gosma fedorenta com certeza estaria na primeira página; infelizmente, não havia outra opção. Ao longo de seu exílio, seu cheiro sutil se tornara tão conhecido dos animais que era suficiente para deixá-los em pânico. Pelo menos aquela graxa era melhor que a antiga camuflagem de esterco.

O macho soltou um ronco e virou-se para comer do outro lado. Era agora ou nunca.

Ele saltou. Seu minúsculo pé atingiu o macho no flanco, derrubando-o. O animal soltou um berro surpreso, e sua queda soltou nuvens de poeira da grama. Entretanto, um simples chute não seria suficiente para derrotar o rei das florestas. O berro se transformou num urro de fúria. Ele abanou a cauda perigosamente na direção de seu agressor, enquanto virava de lado e tentava se levantar. A cauda era a parte mais perigosa do corpo de um langossauro, não só por causa do estrago causado pelo impacto, mas principalmente por causa dos espinhos venenosos na ponta : um simples arranhão podia ser fatal. O próprio homem apanhara uma febre terrível de um ferimento obtido na primeira vez que atacara uma daquelas bestas, e só escapara graças à sua poderosa resistência física, excepcional até para os de sua raça. Desde então, se tornara especialista em evitar aquelas caudas. Saltou de lado, com uma risada escarninha, escapando do ataque com facilidade; logo que a ponta afastou-se para retomar impulso, ele se abaixou e desceu a mão na base da cauda, decepando-a.

Um urro terrível ecoou pelo vale, espantando os pássaros e animais que conheciam bem aquele som: era o sinal de que o terror voltara à floresta. O langossauro rugia de dor e incredulidade. Já lutara com diversos predadores e até com animais da sua espécie, mas nenhum jamais o ferira daquela maneira. Antes que pudesse se recobrar do choque, o homenzinho pulou rápido para seu dorso. A besta soltou um ronco indignado e tentou alcançar o atrevido com os dentes, mas ele estava no ponto mais alto de suas costas, e não podia ser alcançado. Ele ria e saltava, batendo com força no dorso do animal para provocá-lo, saboreando seu desespero.

Se ele ainda pudesse manipular o ki, aquela caçada teria sido muito diferente. Teria voado na direção do bicho e explodido sua cabeça com um simples disparo de energia. Infelizmente, seus poderes haviam desaparecido desde o início do seu exílio; restavam-lhe apenas sua agilidade e força excepcionais, porém lhe bastavam contra as criaturas fracas daquele mundo nojento.

"Okay, chega de brincar."

Deu um passo para o lado, pondo-se deliberadamente ao alcance da fera. A criatura arreganhou os dentes, achando que seu inimigo se descuidara e investiu. Grande erro: o homenzinho saltou para o lado, evitando as presas, ao mesmo tempo que erguia de novo a palma da mão. Segundos depois, a cabeça do langossauro atingia o chão, completamente separada do corpo.

A fêmea, que assistira toda a luta, ficou catatônica ao ver seu companheiro cair. O homem quase podia ver o pequenino cérebro do animal debatendo entre o dilema de fugir ou atacá-lo. Finalmente, atirou-se sobre ele, urrando enraivecida. Uma tolice, embora não fizesse diferença: atacando ou lutando, já estava condenada.

Ele saltou, evitando o ataque, e rolou para baixo da barriga da fêmea. Embora a pele dos langossauros fosse extremamente dura no resto do corpo, era mole e vulnerável no ventre, porém de difícil acesso, por ser tão perto do chão. O homem, no entanto, era pequeno o suficiente para ficar debaixo dele, ainda que um pouco apertado. A fêmea estacou quando sentiu uma dor excruciante rasgá-la de um lado a outro; tentou se virar para fugir... mas era tarde demais. Caiu de lado, junto ao corpo do companheiro. Um jato de sangue espirrou da barriga, bem na cara de seu agressor, que o recebeu com uma gargalhada de excitação. Ela fitou em agonia o pequeno monstro banhado em sangue, seu e de sua cria não-nascida; seus olhinhos minúsculos se arregalaram em terror, enquanto a mão da Morte descia uma vez mais.

Foi a última coisa que ela viu.

Rindo selvagemente, o homem dilacerou os dois corpos com as mãos e os dentes, dando várias mordidas na carne exposta, mais por excitação do que propriamente por fome. Mordeu, despedaçou, riu e banhou-se em sangue, até que finalmente caiu exausto no chão ensangüentado. Lá ele ficou, virado de borco, pelo que pareceu uma eternidade.

De repente, seus olhos se abriram. Ele virou o rosto de lado e respirou fundo várias vezes, como se tivesse acordado de um pesadelo.

"Vegeta... meu nome é Vegeta. Eu sou o... príncipe dos Saiyajins. "murmurou, depois ficou quieto por um momento. Então virou de lado e apoiou-se nas mãos para levantar.

O som de sua própria voz lhe parecia algo estranho, agora. Antigamente, Vegeta costumava pensar em voz alta, quando estava só, e retivera o hábito durante os dois primeiros anos de sua estadia naquele planeta. Com o passar do tempo, o hábito fora rareando mais e mais, até que sua fala se reduzira a resmungos ocasionais; a maior parte do tempo, ele apenas grunhia e rosnava. Sua vida mudara tanto que coisas que fazia antigamente sem sequer pensar haviam sido esquecidas. Como comer carne cozida, usar roupas, ou até mesmo lavar-se diariamente.

Olhou para baixo, subitamente cônscio de sua nudez coberta de sangue, poeira, gordura e Deus sabia o que mais. Limpou o sangue da boca com a mão suja, sentindo a pele áspera de barba no queixo. Maldição. Como a maioria dos Saiyajins, nunca tivera muito pêlo do rosto, felizmente. No entanto, sempre se orgulhara de seu belo queixo escanhoado. O que aquele mundo estava fazendo com ele?

"Já chega. Mais um pouco e vou estar de quatro, rosnando e babando, que nem esses bichos patéticos."resmungou.

Agarrou um dos maiores pedaços da carne que despedaçara e carregou-a para o seu abrigo. Sua vontade era de marchar direto para o rio e tomar um banho, mas sabia que se fizesse isso restaria muito pouco de sua caça quando voltasse.

Pouco depois de sua chegada ao planeta, ele se abrigara temporariamente numa caverna, mas logo se tornara claro que o abrigo seria mais que temporário. O odor da fera que "generosamente" lhe cedera seu lar (e cuja pele forrava a cama de Vegeta), ainda persistia, misturado agora ao seu próprio cheiro; era o suficiente para manter possíveis ladrões afastados, embora não houvesse muito que roubar. E _Vegeta franziu o nariz enojado _ se não fizesse uma boa limpeza já, muito em breve bastaria para manter a ele afastado, também!

Pôs a caça no chão e olhou carrancudo para a cama. Não passava de um buraco cavado no chão e forrado de peles. Suas "roupas de cama" necessitavam de uma boa limpeza e sol, mas não agora. Ainda tinha que cortar a carne em pedaços, talvez acender um fogo para secá-la... droga, detestava fazer isso! Mas assim ela durava mais e seria bom variar, depois de tantos meses comendo carne crua. Abaixou-se e pegou um objeto caído junto à cama. Era uma pequena adaga triangular, feita de lutânio, um mineral raro _principalmente porque a maioria dos planetas de onde ele vinha não existiam mais. Vegeta encontrara aquilo em meio aos ossos de um azarado que estivera exilado ali antes dele, junto com...

Olhou para um monte de pedras no fundo da caverna. Foi até o monte, agachou-se e começou a remover as pedras uma por uma. Era perda de tempo, pois sabia de cor o que havia ali, mas não podia evitar, como um menino que checa seus tesouros com a desculpa de ver se ainda estão onde os deixou.

Depois que todas as pedras haviam sido removidas, apareceu uma pequena esfera laranja com uma estrela, aninhada sobre o que parecia uma pilha de trapos velhos. Vegeta apanhou a bolinha, olhou-a por um instante e colocou-a de lado. Além da adaga, era a única coisa de valor que achara entre os despojos de seu antecessor. O Saiyajin jamais conseguira entender por que o morto trazia aquilo com ele, não parecia servir pra nada. Talvez fosse algum tipo de amuleto... se fosse, não trouxera muita sorte ao antigo dono, haha! Vegeta não tinha muita certeza sobre porque ficava com aquilo: talvez porque não conseguira descobrir de que material era feito. E também... porque não possuía quase nada agora.

Finalmente, os itens mais preciosos. Retirou um conjunto de calça e blusa colantes, feitos de um material que outrora fora azul-marinho, mas agora tinha um indefinido tom acinzentado. Apanhou também um par de botas encardidas (antigamente brancas), com pontas de um metal baço, ainda levemente dourado. Originalmente, um par de luvas e uma armadura de borracha especial completavam o traje, mas haviam desaparecido há anos atrás. Fora nessa época que Vegeta percebera que suas roupas estavam se desgastando com o uso, e a idéia de perder a única coisa que restava de sua antiga vida quase o deixara em pânico. Experimentara vestir peles e couros de animais, porém nunca aprendera a curti-los direito; não só cheiravam mal como também eram horrivelmente quentes durante o dia. Depois, tentara usar tangas, mas elas pinicavam e restringiam-lhe os movimentos. Além do mais, era ridículo preocupar-se com o pudor num lugar onde os únicos que poderiam vê-lo eram animais estúpidos, que não davam a mínima para a exposição de parte íntimas!

Quase com carinho, desdobrou a calça e a blusa. Um odor desagradável de coisa velha se despendeu das roupas, mas Vegeta mal o percebia. Sentiu um forte desejo de vestir-se, apenas por uns momentos, só para lembrar quem ele era. Aquelas roupas lhe traziam tantas lembranças... nenhuma agradável na verdade, porém agora lhe pareciam amargamente doces. Quantas vezes se queixara das correntes que o prendiam ao seu odiado patrão? Fora mais livre naquela época do que era agora.

Abruptamente, dobrou as roupas e colocou-as de volta no lugar, junto com a bola. Depois que terminou de reempilhar as pedras, marchou para fora da caverna, pegando a faca de passagem. Não parou até chegar a uma clareira onde havia uma cachoeira gigantesca. Aquele lugar era a única coisa do planeta que Vegeta não odiava. De início, costumava vir ali tocaiar os animais que vinham matar a sede, porém logo se habituara a vir apenas para descansar e passar horas meditando ao som da água corrente. Aquela clareira lhe dava algo que jamais conhecera na sua antiga vida: lhe dava paz.

Vegeta saltou para uma rocha no meio do rio, bem onde a cachoeira caía, e fechou os olhos, quase feliz com a água fresca em seu corpo suado. Atirou a cabeça para um lado e para outro, fazendo o cabelo chicotear o ar, mandando gotículas de água para todos os lados. Ficou ali por um longo tempo, até tirar toda a sujeira do corpo. Depois, pegou a adaga e sentou-se numa pedra na beira do rio para raspar a barba. Raramente usava a arma, pois preferia despedaçar coisas com as mãos, mas ocasionalmente era útil para cortar couro ou carne, e, especialmente, para barbear-se. Que ironia. O trouxa que estivera naquele planeta antes dele provavelmente matara para ter aquela adaga. Mas aqui, ela valia o mesmo que cocô de langossauro. Aquele mundo transformava um tesouro numa simples lâmina de barbear... e um príncipe Saiyajin, guerreiro de elite e vencedor de incontáveis batalhas, num selvagem nu e insignificante.

Inconscientemente, a ponta da faca penetrou na pele do queixo, tirando uma gota de sangue. O Saiyajin abaixou a mão e fitou o sangue na arma. Lutânio podia cortar até pele de Saiyajin... talvez pudesse penetrar através das costelas, direto ao coraçã...

Com um grito horrível, ele atirou a adaga longe. Ela se enterrou numa pedra como se esta fosse manteiga, mas Vegeta nem reparou. Estava ocupado demais escalando as rochas ao lado da cachoeira, escolhendo deliberadamente as bordas mais afiadas para apoiar os pés e as mãos, sem ligar para as manchas de sangue que deixava para trás. A maioria das criaturas vivas teria levado dias para escalar aquelas pedras, e terminaria o percurso exausta; porém Vegeta sequer resfolegava quando chegou ao topo.

Ficou de pé no alto da rocha, fitando o mundo lá do alto. Dali, podia ver a selva espalhada por toda a parte, como um oceano verde. Ao longe, a serrilha azul de uma cadeia de montanhas. Aquele lugar era seu reino e sua prisão.

O sol se punha, assinalando o fim de mais um dia sem sentido, igual ao de ontem e aos que os precederam. E assim continuaria, até que o ciclo terminasse, final e misericordiosamente. Podia levar anos, séculos... nem mesmo ele sabia o quanto podia durar alguém de sua raça, se não fosse assassinado. Saiyajins tinham, em média, uma vida muito mais longa que a maioria das raças mortais, mas geralmente não duravam muito devido ao seu amor às batalhas.

Morrer em batalha... a melhor morte para um Saiyajin. Até isso lhe era negado. A única morte possível naquele mundinho miserável seria se deixar matar por uma daquelas feras de araque, o que seria uma completa vergonha.

Olhou para baixo. Uma queda poderia acabar com tudo... porém era mais provável que sobrevivesse a ela. Ficaria deitado lá embaixo com um monte de ossos quebrados, em grande sofrimento, até morrer de fome por não poder se mexer. Também poderia saltar no rio e se afogar, porém seria ainda mais desonroso do que se esfaquear com a adaga. As únicas formas de suicídio consideradas aceitáveis pelos Saiyajins eram ou se autodestruir numa explosão de energia para matar os inimigos, ou enterrar a mão incandescente no próprio peito. Quando criança ouvira falar sobre Saiyajins exilados em desonra que cometiam essa última prática : era seu modo de recuperarem o orgulho, limpando-se da própria infâmia. No entanto, ele não podia mais usar ki.

Estava preso ali para sempre, sem escapatória. Poderia levar anos até que alguém chegasse, se é que isso aconteceria. E quando esse dia chegasse, estaria velho e fraco demais para poder tirar sua vingança, ou mesmo para gozar a liberdade. Não tinha roupas, poder, nem dignidade. Absolutamente nada. Freeza havia pensado em tudo. Acabaria enlouquecendo e se matando, como último passo em sua degradação... já estava até começando a ficar louco!

"Freeza! " gritou para o ar, a voz estrangulada pelo desespero, porém com uma nova energia _Você pode ter tirado tudo de mim, mas não pode me obrigar a me matar! Está me ouvindo, seu filho da puta? Se me quiser morto, terá que me matar VOCÊ MESMO! _ergueu o punho numa maldição inútil, pois o responsável por seu tormento estava a anos-luz de distância, completamente inacessível.

Então deixou-se cair no chão, completamente exausto, e ficou ali, o rosto apoiado nas rochas, sem perceber as lágrimas que pela primeira vez na vida jorravam de seus olhos.