A Principal Suspeita
Capítulo 1
Tudo o que ele precisava estava na mochila pendurada em seus ombros. Inclusive sua calibre 38. Se tudo fosse bem, não precisaria dela.
Harry tirou um cigarro do maço amassado no bolso da camisa e afastou-se do vento para acendê-lo. Um menino, de uns oito anos, corria alegremente ao longo dos trilhos do trem, ignorando solenemente os chamados da mãe. Harry sentiu uma onda de empatia para com o garoto. Estava bastante frio. O vento que chicoteava em Puget Sound não parecia ser de primavera. Mas a vista era linda. Se ficasse sentado no salão envidraçado, certamente estaria mais aquecido, mas era preciso tirar alguma coisa daquela experiência.
O menino foi agarrado por uma mulher ruiva de bochechas coradas e um nariz que ficava vermelho rapidamente. Harry escutou os dois reclamando um com o outro enquanto ela o arrastava para dentro. Parece que as famílias nunca concordam em nada. Virando-se, reclinou-se no parapeito que acompanhava os trilhos, fumando preguiçosamente, enquanto a barca passava por ilhas que pareciam torrões de açúcar escuro, soltando vapor.
Tinham deixado a linha de prédios de Seattle para trás, apesar das montanhas de Washington ainda configurarem a paisagem, maravilhando e impressionando o observador. Havia uma sensação de solidão ali, apesar do movimento de passageiros caminhando pelo deque ou espreguiçando-se ao longo dos bancos de madeira, para aproveitar as nesgas de sol. Ele preferia a cidade, com sua pressa, suas multidões, sua energia. Seu ar anônimo. Sempre preferira. Pela vida que levava não compreendia de onde vinha a inquietação descontente que sentia, ou por que ela pesava-lhe tanto.
Seu trabalho. Durante o ano anterior inteiro pusera toda a culpa no trabalho. A pressão era uma coisa que ele sempre apreciara, até mesmo gostava. Sempre pensara que a vida sem ela seria extremamente sem graça e sem atrativos. Mas ultimamente isso não fora o suficiente. Mudara-se de um lugar para outro, levando pouca coisa e deixando menos ainda para trás.
Está na hora de descer, pensou, enquanto observava um barco de pesca que passava por perto. Hora de seguir em frente. E fazer o quê?, perguntou-se com desgosto, soprando com força a fumaça do cigarro. Podia ter o próprio negócio. Brincara com essa idéia uma ou duas vezes na vida. Poderia viajar. Sempre percorrera o mundo, mas poderia ser diferente fazer isso como turista.
Uma pessoa aproximou-se do cais com uma câmera de vídeo. Harry virou-se, afastou-se, saiu de seu raio de visão. Provavelmente, era uma precaução desnecessária; mas a reação foi instintiva. Assim como o jeito com que observava tudo, o jeito desligado, que escondia uma prontidão esperta.
Ninguém prestava muita atenção nele, apesar de algumas das mulheres olharem duas vezes. Tinha altura acima da média, com o corpo forte e bem constituído de um boxeador peso-leve jaqueta displicente e os jeans surrados cobriam músculos bem torneados. Não usava chapéu e os cabelos negros e espessos voavam livremente, afastando-se do rosto bronzeado e bonito. Tinha a barba por fazer e um aspecto másculo. Os olhos, de um verde-claro, poderia ter suavizado aquela aparência que parecia dizer "Vá para o inferno", mas eram intensos. Diretos e, naquele momento, entediados.
O que tinha a fazer prometia ser uma rotina lenta e costumeira. Harry ouviu o chamado de descida e pegou a mochila. Rotina ou não, era seu trabalho. Ele o faria, preencheria o relatório e, depois, tiraria algumas semanas para pensar no que faria do resto da vida.
Desembarcou em meio aos outros passageiros. Agora havia um odor forte de flores, que competia com o cheiro marcante da água. As flores cresciam em seu esplendor livre e romântico, muitas delas com botões do tamanho de seu punho. Uma parte dele apreciava a cor e o encanto, mas raramente usou seu tempo para parar e cheirar as rosas.
Carros desciam a rampa e dirigiam-se para suas casas ou para um passeio. Logo que os deques estavam vazios, novos passageiros subiam a bordo e ajeitavam-se para seguir para outras ilhas ou para uma viagem mais longa e fria para a Colúmbia Britânica.
Harry pegou outro cigarro, acendeu-o e olhou casualmente em volta — para os belos jardins floridos, o encantador hotel branco, com restaurante, as placas que davam informações sobre as barcas e sobre os estacionamentos. Agora, era só uma questão de tempo. Ignorou o café do pátio, apesar de ter adorado tomar uma xícara de café, e seguiu o caminho para o estacionamento.
Divisou a van imediatamente, o modelo americano branco e azul com o letreiro Whale Watch Inn pintado no lado. Sua função era convencer-se a entrar na van e, depois, no hotel. Se os detalhes sobre isso fossem decididos, seria um caso de rotina. Se não, encontraria outro meio.
Para disfarçar, abaixou-se para amarrar o cadarço do sapato. Os carros recebiam seus ocupantes, e os passageiros a pé já se encontravam na barca. Não havia mais de 12 veículos agora no estacionamento, incluindo a van. Levou mais um tempo para desabotoar a jaqueta quando viu a mulher.
Os cabelos estavam presos em um coque, e não soltos como na foto da ficha. À luz do sol, pareciam ser de um ruivo mais profundo e mais rico. Usava óculos escuros bem grandes, que cobriam metade do rosto, mas ele sabia que não estava enganado. Reconheceu a linha delicada do queixo, o nariz pequeno e reto, a boca cheia e bem-feita.
A informação que ele obtivera era detalhada. Tinha l,70m, pesava 55 quilos e possuía uma constituição pequena, porém atlética. Estava vestida casualmente — jeans, suéter tricotada creme sobre uma blusa azul,.Os jeans estavam enfiados em botas de arremate de lona, e brincos delicados de cristal pendiam das orelhas.
Ela caminhava decidida, com as chaves balançando em uma das mãos, e uma bolsa grande de lona pendurada no outro ombro. Não havia um convite sensual em seu andar, mas chamaria a atenção de qualquer homem. Passadas largas e firmes, um balanço sutil dos quadris, cabeça empinada, olhar direto à frente.
Sim, qualquer homem a perceberia, pensou Harry, enquanto jogava o cigarro longe. E pensou que ela devia saber disso.
Esperou até ela chegar à van antes de começar a andar em sua direção.
Gina parou de cantarolar a Nona Sinfonia de Beethoven, olhou para o pneu da frente à direita e xingou. Como pensasse que ninguém a estaria olhando, chutou-o e, em seguida, foi para a traseira da van, para pegar o macaco.
— Está com problemas?
Ela levou um susto e parou, quase deixando o macaco cair sobre o pé, em seguida, virou-se.
Um cliente chato, foi o que Gina pensou, quando olhou para Harry, cujos olhos estavam apertados por estar de frente para o sol. Uma das mãos segurava a alça da mochila e a outra estava enfiada no bolso. Ela colocou a mão sobre o coração para ver se ainda estava batendo, e sorriu.
— Sim, o pneu furou. Acabei de deixar uma família de quatro pessoas na barca, dois dos quais têm menos de seis anos e são fortes candidatos a um reformatório. Meus nervos estão em frangalhos, o encanador está esperando na unidade seis e meu auxiliar acabou de ganhar na loteria. Muito prazer.
A ficha não dizia que sua voz parecia café com leite, daquele tipo escuro e rico que só se toma em Nova Orleans. Ele observou esse fato, arquivou-o na mente e olhou para o pneu furado.
— Quer que eu troque para você?
Gina poderia ter trocado o pneu sozinha, mas não era mulher de recusar uma ajuda quando esta lhe era oferecida. Além disso, com certeza ele seria mais rápido e parecia precisar dos cinco dólares que ela lhe daria.
— Obrigada. — Entregou-lhe o macaco e, em seguida, tirou um pacote de drops de limão da bolsa. O pneu deveria roubar o tempo que ela pensara ter para o almoço. — Você acabou de chegar pela barca?
— Sim. — Ele não ligava muito para conversas inúteis, mas sabia usá-la, assim como sua simpatia, tão adequadamente quanto usava o macaco. — Andei viajando por aí. Pensei em passar algum tempo em Orcas, para ver se via alguma baleia.
— Pois veio ao lugar certo. Vi um cardume ontem da minha janela. — Disse isso e reclinou-se sobre a van, para apreciar o sol. Enquanto ele trabalhava, ela observava-lhe as mãos. Fortes, competentes, ligeiras. Sempre admirara quem conseguia fazer bem um trabalho ainda que simples. — Você está de férias?
— Só estou viajando. Aceito trabalhos estranhos aqui e ali. Sabe de alguém que esteja precisando de ajuda?
— Talvez. — Franzindo os lábios, ela estudou-o enquanto ele tirava o pneu furado. Ele endireitou-se, mantendo uma das mãos sobre o pneu. — Que tipo de trabalho?
— Uma coisa aqui e outra ali. Onde está o estepe?
— Estepe? — Percebeu que olhar para os olhos dele por mais de dez segundos era como ser hipnotizada.
— O pneu! — O canto da boca contorceu-se em um ligeiro sorriso. — Vai precisar de um que não esteja furado.
— Ah, certo. O estepe. — Sacudindo a cabeça para sua própria tolice, foi pegá-lo. — Está ali atrás. — Virou-se e esbarrou nele. — Desculpe.
Ele colocou a mão em seu braço para ampará-la. Ficaram por um instante à luz do sol, franzindo os olhos um para o outro.
— Está tudo bem. Eu pego.
Quando ele subiu na van, Gina suspirou profundamente. Os nervos estavam mais em frangalhos do que ela imaginara ser possível.
— Oh, cuidado com... — Ela sorriu quando Harry sentou-se nos calcanhares para tirar os restos de um pirulito de cereja do joelho. O sorriso foi espontâneo e tão rico quanto sua voz. — Desculpe. Um suvenir da ilha das Orcas, de Jimmy "O Destruidor" McCarthy, um delinqüente de cinco anos de idade.
— Eu preferia uma camiseta.
— Sim, quem não preferiria? — Gina ajudou-o a tirar o pirulito pegajoso, embrulhou-o em um lenço de papel amarrotado e jogou-o dentro da bolsa. — Somos um estabelecimento familiar — explicou, quando ele saiu com o estepe. — Quase todos gostam de ter crianças por perto mas, de vez em quando, encontra-se um par como Jimmy e Judy, os gêmeos e, então, pensa-se em transformar o local em uma estação de serviços. Você gosta de crianças?
Ele levantou os olhos para ela, enquanto colocava o pneu no lugar.
— De uma distância segura.
Ela riu, apreciando a resposta.
— De onde você é?
— St. Louis. — Poderia ter escolhido uma dúzia de lugares. Não sabia dizer por que escolhera dizer a verdade. — Mas não vou muito lá.
— Família?
— Não.
O jeito como ele falou aguçou a curiosidade de Gina. Ela não invadiria a privacidade de ninguém, assim como não jogaria o resto do pirulito no chão.
— Eu nasci aqui mesmo em Orcas. Todo ano digo para mim mesma que vou tirar seis meses para viajar. Para qualquer lugar. — Encolheu os ombros, enquanto ele apertava as últimas porcas do pneu.— Nunca consigo fazer isso direito. De qualquer maneira, isto aqui é lindo. Se não tiver nenhum projeto a cumprir, talvez fique mais tempo por aqui do que planejou.
— Talvez. — E levantou-se para guardar o macaco. — Se encontrar um trabalho e um lugar para ficar.
Gina não considerou seu ato como um impulso. Tinha estudado, medido e considerado o rapaz por quase 15 minutos. A maioria das entrevistas de trabalho levam mais tempo. Ele tinha costas fortes e olhos inteligentes, ainda que desconcertantes, e o estado da mochila e dos sapatos indicavam que ele não se encontrava na melhor das sortes. Tinha sido ensinada a ajudar qualquer pessoa que necessitasse. E se pudesse resolver um de seus problemas mais imediatos e difíceis ao mesmo tempo...
— Você é bom em trabalhos manuais? — perguntou. Ele olhou para ela, incapaz de evitar que a mente tomasse o caminho desejado.
— Sim. Sou muito bom.
A sobrancelha de Gina, assim como a pressão, subiu ligeiramente, quando ouviu a resposta rápida.
— Quero dizer, com instrumentos. Martelo, serra, furadeira. Entende um pouco de carpintaria, de consertos domésticos?
— Claro. — Ia ser fácil, muito fácil. Ele se perguntou por que sentia aquela ligeira culpa, com a qual não estava acostumado.
— Como eu disse, meu auxiliar ganhou na loteria, uma grande soma. Foi para o Havaí estudar biquínis e comer poi com muita pimenta. Desejei muita sorte para ele, só que estávamos no meio da reconstrução da ala oeste — acrescentou, apontando para a logotipo da van. — Se você sabe lidar com ripas e pintura de parede, posso lhe dar casa e comida e mais cinco dólares por hora.
— Parece que resolvemos o problema dos dois.
— Ótimo. — Ela ofereceu-lhe a mão. — Sou Gina Weasley.
— Potter — disse, apertando a mão da moça. — Harry Potter.
— Certo, Harry. — E abriu toda a porta do carro. — Pode entrar.
Ela não lhe parecia crédula, pensou Harry enquanto se acomodava no banco ao lado dela. Mas então ele soube — melhor do que a maioria — , isso parecia-lhe decepcionante. Ele estava exatamente onde tinha desejado estar, e não teve de apelar para uma música e uma dança. Acendeu um cigarro logo que ela saiu do estacionamento.
— Meu avô construiu o hotel em 1938 — disse ela, abrindo a janela.— Acrescentou alguma coisa a ele algumas vezes durante estes anos, mas ainda continua sendo um hotel. Não podemos chamá-lo de um resort, mesmo nas brochuras de publicidade. Espero que esteja procurando alguma coisa remota.
— Isso me serve.
— Para mim, também. A maior parte do tempo. — Rapaz falante, ela pensou, sorrindo ligeiramente. Mas assim estava bem. Ela poderia falar o suficiente pelos dois. — Estamos no começo da temporada, portanto o hotel não está lotado. — Apoiou o cotovelo na janela aberta e retomou alegremente a conversa. A luz do sol refletia-se em seus brincos, formando belas cores. — Você vai ter bastante tempo livre para passear. A vista do monte Constitution é realmente espetacular. Ou, se preferir, as trilhas para caminhada são ótimas.
— Pensei que poderia passar algum tempo na Colúmbia Britânica.
— Isso é fácil. Pegue a barca para Sidney. Nós temos vários grupos de excursões para todos os lados.
— Nós?
— O hotel. Meu avô, construiu meia dúzia de cabanas nos anos 1960. Damos um desconto especial para grupos. Podem alugar as cabanas e ter o café-da-manhã e o jantar incluídos. São um pouco rústicas, mas os turistas gostam muito delas. Temos aproximadamente um grupo por semana. Durante a temporada, pode triplicar.
Ela virou o carro, e entrou em uma estrada cheia de curvas e manteve a velocidade em 80 quilômetros.
Harry já sabia as respostas, mas sabia também que pareceria estranho se não fizesse as perguntas. — Você dirige o hotel?
— Sim. Tenho trabalhado por lá, em idas e vindas durante tanto tempo que já nem me lembro direito. Quando meu avô morreu, faz alguns anos, assumi a direção. — Fez uma pausa; ainda doía e ela acreditava que doeria sempre. — Ele o adorava. Não só o local, mas a idéia de conhecer gente nova todos os dias, fazer com que ficassem confortáveis, passando a descobri-los.
— Imagino que está indo de vento em popa.
Ela deu de ombros.
— Nós nos viramos. — Passaram por uma curva, onde a floresta dava lugar a uma ampla extensão de água azul. A curva da ilha era nítida, lançando-se para a frente e recolhendo-se em sombras contrastantes de um verde profundo e de marrom. Algumas casas pareciam penduradas nos penhascos adiante. Um barco, com velas brancas enfunadas, navegava com o vento, cortando o espelho d'água. — Existem vistas como esta por toda a volta da ilha. Elas nos surpreendem, mesmo quando somos moradores daqui.
— E o cenário é bom para os negócios.
Ela franziu ligeiramente a testa.
— Mal não faz— disse e olhou de volta para ele. — Está mesmo interessado em ver baleias?
— Pareceu-me uma boa idéia, já que estou aqui. Ela parou a van e apontou para os penhascos.
— Se você tem paciência e bons binóculos, lá em cima é um ótimo lugar. Nós as vimos do hotel, como eu disse. Mesmo assim, se quiser ver melhor, é bom ir de barco. — Como ele não fez o menor comentário, ela ligou a van outra vez. Ele a estava deixando nervosa, ela percebeu. Parecia não estar olhando nem para a água, nem para a floresta, mas para ela.
Harry olhou para as mãos dela. Fortes, competentes, não eram mãos sem personalidade, concluiu, apesar de os dedos começarem a tamborilar nervosamente no volante. Ela continuou a dirigir depressa, levando a van decididamente por entre os obstáculos encontrados no caminho. Outro carro aproximou-se. Sem diminuir a velocidade, Gina fez um aceno para a motorista.
— Era Lori, uma de nossas garçonetes. Ela trabalha em um turno mais cedo, para poder voltar para casa quando os filhos retornam da escola. Geralmente temos uma equipe de dez pessoas, que é aumentada em cinco ou seis para trabalho temporário durante o verão.
Rodearam a curva seguinte, e o hotel ficou visível. Era exatamente o que ele esperava, mas, ao mesmo tempo, era mais charmoso do que nas fotos que tinham lhe mostrado. Era de um branco perfeito, com contornos de um azul aguado em torno das janelas em arco e ovais. Havia delicados torreões, caminhos estreitos e um amplo pórtico. Um gramado levava diretamente para a água, onde podia ser visto um deque, amarrado a ele, um barco a motor, que balançava preguiçosamente ao sabor da corrente.
Um moinho de roda despejava água em um lago raso, que ficava ao lado do hotelzinho, fazendo um ruído musical. Para o lado oeste, onde o bosque começava a ficar mais espesso, ele pôde divisar uma das cabanas de que ela havia falado. Havia flores por toda parte.
— Temos um lago maior nos fundos. — Gina levou o carro para o lado e estacionou em um pequeno terreno de cascalhos junto ao lago, que já estava meio cheio. — É aqui que mantemos as trutas. A trilha nos leva para as cabanas 1, 2 e 3. Depois, bifurca-se, dando para a 4, 5 e 6. — Ela desceu do carro e esperou que ele se juntasse a ela. — A maioria das pessoas usa a entrada dos fundos. Posso mostrar-lhe tudo mais tarde, se quiser, mas antes vou levá-lo a seu quarto.
— É um lugar bonito — disse ele, quase sem pensar e falava sério. Havia duas cadeiras de balanço no terraço dos fundos além de uma cadeira de vime que precisava ter a pintura branca retocada. Harry virou-se para apreciar o que um hóspede teria visto do lugar vazio. Parte de uma floresta, parte das águas, e tudo muito bonito. Repousante. Muito receptiva. Pensou na pistola que estava em sua mochila. As aparências, pensou de novo, podiam ser enganadoras.
Com as sobrancelhas ligeiramente franzidas, Gina observava-o. Ele parecia mais estar absorto do que observando. Era um pensamento estranho, mas teria jurado que, se alguém perguntasse a ele para descrever o hotel dali a seis meses, seria capaz de fazê-lo, até o último detalhe.
Então, virou-se para ela e a sensação permanecia, só que mais pessoal agora, mais intensa. A brisa acariciou-os, balançando as folhas novas que pendiam dos caules.
— Você é artista? — perguntou ela, abruptamente.
— Não. — Ele sorriu e a mudança em seu rosto foi rápida e encantadora. — Por quê?
— Só imaginei. — Você precisa ter cuidado com esse sorriso, decidiu Gina. Ele fazia com que as pessoas se sentissem relaxadas, e ela duvidava que fosse um homem perto do qual não se deveria relaxar nunca.
As portas duplas de vidro abriram-se para um aposento grande e arejado, cheirando a lavanda e a fumaça de madeira. Havia dois sofás longos e macios e um par de poltronas super estofadas, junto de uma enorme lareira de pedra, onde a lenha queimava. Antigüidades estavam espalhadas por toda a sala— uma escrivaninha com cadeira, um trio de tinteiros antigos, um chapeleiro de carvalho e um bufê, com portas entalhadas e brilhantes. Encaixada em um canto havia uma pianola com teclas amareladas, e duas janelas amplas e arqueadas, que dominavam a parede oposta, davam a impressão de que a água fazia parte da decoração da sala. Em uma mesa perto deles, duas mulheres jogavam preguiçosamente uma partida de Scrabble.
— Quem está vencendo hoje? — perguntou Gina. As duas levantaram os olhos. E sorriram.
— Está empatado. — A mulher da direita afofou os cabelos quando viu Harry. Tinha idade suficiente para ser avó dele, mas tirou rapidamente os óculos e endireitou as costas. — Não sabia que você ia trazer outro hóspede, querida.
— Nem eu — Gina disse, e colocou mais lenha no fogo. — Harry Potter, Sra. Sibila e Sra. Minerva.
Seu sorriso voltou aos lábios, desta vez suave.
— Senhoras.
— Potter. — A Sra. Sibila recolocou os óculos para ver melhor. — Nós não conhecemos um Potter uma vez, Minerva?
— Não que eu me lembre. — Minerva, sempre pronta a flertar, continuava sorrindo para Harry, apesar de, para ela, ele não passar de um borrão. — Já esteve aqui no hotel antes, Sr. Potter?
— Não, senhora. Esta é minha primeira vez em San Juan.
— Está convidado para uma partida. — Minerva soltou um pequeno suspiro. Era uma pena o que os anos faziam. Parecia que tinha sido ontem que homens bonitos e jovens beijavam sua mão e convidavam-na para dar um passeio. Agora, chamavam-na de senhora. Ela voltou sua atenção para o jogo.
— Estas senhoras vêm ao hotel há mais tempo do que consigo me lembrar— Gina disse para Harry, enquanto guiava-o por um corredor. — São adoráveis, mas devo preveni-lo sobre a Srta. Minerva. Disseram que ela tinha uma certa reputação em sua época, e que ainda não pode tirar os olhos de um homem atraente.
— Vou me cuidar.
— Tenho a impressão de que você sempre faz isso. — Ela pegou um conjunto de chaves e abriu a porta. — Esta porta leva à ala oeste. — Ela avançou por outro corredor, rápida e eficiente. — Como pode ver, a restauração já estava bem avançada quando George achou seu pote de ouro. O rodapé foi arrancado. — Apontou para as pilhas arrumadas de madeira ao longo das paredes pintadas e frescas. — As portas ainda precisam ser terminadas e os enfeites originais estão naquela caixa.
Tirou os óculos escuros e jogou-os dentro da bolsa. Então pela primeira vez conseguir ver os olhos dela. Olhou para eles como se examinasse o trabalho feito por George.
— Quantos quartos?
— Temos dois de solteiro, um de casal e uma suíte familiar nesta ala, todos em vários estágios de desordem. — Ela afastou a porta, que estava apoiada contra a parede e entrou no quarto. — Você pode ficar com este aqui. É o que está mais próximo de estar pronto nesta ala.
Era um quarto pequeno e claro. O vidro da janela era encaixado em molduras de aço e dava para o moinho. A cama estava sem lençóis e o chão, nu, precisando de reparos. Papel de parede, obviamente novo, cobria as paredes do teto até o encosto de uma cadeira branca. Abaixo dali, a parede também estava nua.
— Não parece muito bom, no momento — comentou Gina.
— Está ótimo. — Ele já passara por locais que fariam aquele quartinho parecer uma suíte do Waldorf.
Automaticamente, ela verificou o armário e o banheiro, fazendo uma lista mental do que era necessário.
— Pode começar por aqui, se isto o deixar mais confortável. Você é quem decide. George tinha o próprio sistema. Nunca o compreendi, mas, geralmente, conseguia fazer o que se propunha.
Ele enfiou os polegares nos bolsos da frente do jeans. — Você tem um plano de jogo?
— Com certeza.
Gina passou os 30 minutos seguintes levando-o para percorrer a ala e explicando exatamente o que queria. Harry escutava, comentava pouco e estudava as cercanias. Sabia pelos esquemas que estudara que o plano do solo desta seção espelhava o mesmo da ala leste. Sua posição ali lhe daria um acesso fácil ao andar principal e ao resto do hotel.
Mas teria que trabalhar, riu para si mesmo, enquanto olhava para as paredes semi-terminadas e as latas de tinta. Mas considerava isso um pequeno bônus. Trabalhar com as mãos era uma coisa que ele gostava de fazer e para a qual teve muito tempo no passado.
Ela era bastante precisa em suas instruções. Uma mulher que sabia o que queria e que pretendia obtê-lo. Ele admirava isso. Não teve a menor dúvida de que ela seria muito boa no que fizesse, fosse dirigir um hotel... ou outra coisa qualquer.
— O que fica lá em cima? — perguntou, apontando para um lance de escadas no final do corredor.
— Meus aposentos. Vamos pensar neles depois que os quartos dos hóspedes estiverem terminados. — Sacudiu as chaves, enquanto os pensamentos voavam para vários assuntos diferentes. — Então, o que achou?
— Do quê?
— Do trabalho.
— Você tem ferramentas?
— No galpão, do outro lado do estacionamento.
— Posso cuidar disto.
— Sim. — Gina entregou as chaves para ele. Tinha certeza de que poderia. Estavam parados no hall octogonal da suíte familiar. Estava vazia, a não ser por materiais de construção e latas de tinta. E estava silencioso. Ela percebeu então, repentinamente, que estavam muito próximos um do outro e que não ouvia o menor ruído. Sentindo-se tola, tirou uma chave do chaveiro.
— Vai precisar disto.
— Obrigado. — E colocou-a no bolso.
Ela respirou profundamente, perguntando-se por que se sentia como se tivesse dando um longo passo de olhos fechados.
— Você já almoçou?
— Não.
— Vou levá-lo até a cozinha. Mae vai preparar um almoço para você. — E encaminhou-se para a porta, um pouco apressada demais. Queria escapar logo daquela sensação estranha de estar completamente sozinha com ele. E desamparada. Gina moveu os ombros incomodada. Que pensamento bobo, disse para si mesma. Nunca tinha estado desamparada. Mesmo assim, soltou um suspiro aliviado quando fechou a porta atrás deles.
Levou-o para o andar de baixo, passando pelo hall vazio e entrando na grande sala de jantar, decorada em tom pastel. Lá, havia pequenos vasos leitosos em cada mesa, cheios de flores frescas. Grandes janelas abriam-se para uma vista da água, e como que para insistir no mesmo tema, um aquário tinha sido construído na parede sul.
Parou ali por um instante, examinando toda a sala, até ficar satisfeita por ver que as mesas estavam perfeitamente postas para o jantar. Então, empurrou a porta de vaivém que dava para a cozinha.
— Pois eu digo que precisa de mais manjericão.
— E eu digo que não.
— Faça o que fizer — Gina murmurou para ele —, nunca concorde com nenhuma delas. Senhoras — disse, usando o melhor sorriso — , eu lhes trouxe um homem faminto.
A mulher que estava junto da panela segurou no ar uma colher que pingava. A melhor maneira de descrevê-la seria ampla — rosto, quadris, mãos. Fez uma análise rápida de Harry, examinando-o de cima a baixo.
— Então, sente-se — disse, apontando com o polegar para uma mesa longa de madeira.
— Mae Jenkins, Harry Potter.
— Senhora.
— E Dolores Rumsey. — A outra mulher segurava um vidro de ervas. Era tão estreita quanto Mae era larga. Depois de cumprimentar Harry com um pequeno aceno de cabeça, ela dirigiu-se para a panela.
— Afaste-se dela — Mae ordenou — e sirva frango frito para o homem.
Resmungando, Dolores foi pegar um prato.
— Harry vai retomar o trabalho de onde George parou — Gina explicou. — Ele vai ficar na ala oeste.
— Você não é daqui. — Mae olhou de novo para ele, do jeito que ele imaginava que uma babá olharia para uma criança pequena e levada.
— Não.
Ela fungou e serviu-lhe café.
— Acho que está precisando de comida decente.
— Vai ter aqui — Gina intrometeu-se, representando o papel de pacificadora. Estremeceu ligeiramente quando Dolores jogou um prato de frango frio e salada de batatas na frente de Harry.
— Precisava de mais manjericão. — Dolores fixou o olhar nele, como se o desafiasse a dizer o contrário. — Ela não quer me ouvir.
Harry decidiu que a melhor política seria sorrir para ela e manter a boca cheia. Antes que Mae pudesse responder, a porta abriu-se outra vez.
— Será que um homem pode tomar uma xícara de café aqui? O homem parou e lançou um olhar curioso para Harry.
— Bob Mullins, este é Harry Potter. Eu o contratei para terminar a ala oeste. Bob é um dos meus vários braços-direitos.
— Bem vindo a bordo. — Dirigiu-se para o fogão para servir-se de café, colocando bastante açúcar, enquanto Mae mostrava a língua para ele. O gosto pelo açúcar não parecia afetá-lo em nada. Era alto, talvez mais de l,80m, e não pesava mais do que uns 80 quilos. Os cabelos castanho-claros eram cortados curtos, na altura das orelhas, e estavam penteados para trás da testa larga.
— Você é do leste? — Bob perguntou entre goles de café.
— A leste daqui.
— Muito bem.— Sorriu, quando Mae bateu-lhe na mão para afastá-lo do fogão.
— Você resolveu aquele caso com o verdureiro? — perguntou Gina.
— Está tudo cuidado. Telefonaram para você enquanto esteve fora. E precisa assinar alguns papéis.
— Vou fazer isso. — Ela consultou o relógio de pulso. — Agora. — Olhou para Harry. — Vou estar no escritório ao lado do hall, se quiser saber de mais alguma coisa.
— Está tudo certo.
— Muito bem. — Ela estudou-o por mais um momento. Não conseguia compreender como ele podia estar em um aposento com outras quatro pessoas e parecer tão sozinho. — Até logo.
Harry fez um longo passeio de reconhecimento pelo hotel antes de começar a pegar os instrumentos para a ala oeste. Viu um jovem casal, possivelmente recém-casados, abraçados perto do lago. Um homem e um menino jogavam bola em um pequeno campo de basquete de concreto. As senhoras, foi o que ele pensou, tinham largado o jogo para sentarem-se na varanda e discutir sobre o jardim. Parecendo exaustos, uma família de quatro pessoas entrou em uma espécie de trailer e dirigiu-se para as cabanas. Um homem com um boné caminhava pelo píer com uma câmera de vídeo no ombro.
Os pássaros cantavam nas árvores, e ouvia-se o som distante de um barco a motor. Havia também o som de um bebê chorando fortemente, e as notas de uma sonata de Mozart ao piano.
Se ele mesmo não tivesse colhido as informações, juraria que estava no lugar errado.
Escolheu a suíte familiar e começou a trabalhar, perguntando-se quanto tempo levaria para chegar aos aposentos de Gina.
Sentia um certo bem-estar ao trabalhar com as mãos. Duas horas passaram-se e ele relaxou um pouco. Uma olhada no relógio de pulso fez com que decidisse fazer outra viagem desnecessária até o galpão. Gina mencionara que o vinho seria servido, no que ela chamava de sala de reuniões, todas as tardes às cinco horas. Não faria mal nenhum dar outra olhada de perto em todos os hóspedes.
Dirigiu-se para lá, mas resolveu parar na porta de seu quarto. Ouvira alguma coisa, algum movimento. Cuidadosamente, passou pela porta e examinou o quarto vazio.
Cantarolando baixinho, Gina saía do banheiro, onde havia colocado toalhas limpas. Desdobrou os lençóis e começou a arrumar a cama.
— O que está fazendo?
Com um grito abafado, ela tropeçou e sentou-se na cama para recuperar o fôlego.
— Meu Deus, Harry, não faça isso.
Ele entrou no quarto, observando-a com os olhos semicerrados.
— Perguntei o que você estava fazendo.
— Não parece óbvio? — disse ela e bateu a mão na pilha de lençóis.
— É você quem faz o serviço de arrumadeira?
— De tempos em tempos. — Já recuperada, ela se endireitou e alisou o lençol sobre a cama. — Há sabonete e toalhas no banheiro — ela disse e depois entortou a cabeça —, acho que está precisando. — Esticou o lençol superior com habilidade. — Tem estado ocupado?
— Esse foi o trato.
Com um murmúrio de concordância, enfiou os cantos dos lençóis nos pés da cama, como lembrava-se de ver a avó fazer.
— Coloquei um travesseiro e um cobertor extras no armário. — Ela moveu-se de um lado da cama para o outro, apreciando o que fizera, e ele a admirava com a simples apreciação masculina. Não conseguia lembrar-se da última vez em que vira alguém arrumar uma cama. Isso provocava-lhe pensamentos que ele não podia dar-se ao luxo de ter. Pensamentos do que poderia acontecer, confundir todas as coisas de novo, com ela.
— Você nunca pára?
— É o que dizem de mim.— Estendeu uma colcha branca de casal na cama. — Estamos esperando uma excursão para amanhã, portanto estamos todos um pouco atarefados.
— Amanhã?
— Sim. Pela primeira barca de Sidney. — Afofou os travesseiros, satisfeita. — Se você...
Interrompeu-se, quando se virou e quase caiu por cima dele. As mãos de Harry instintivamente foram para os quadris dela, enquanto as dela abraçavam seus ombros. Um abraço — não planejado, não desejado e chocantemente íntimo.
Ela era esbelta por baixo daquele suéter longa e larga, ele descobriu, até mais esbelta do que um homem poderia esperar. E os olhos eram mais castanhos do que tinham o direito de ser, maiores, mais suaves. Seu cheiro era o mesmo do hotel, um cheiro de uma combinação bem-vinda de lavanda e madeira. Atraído pelo cheiro, continuou abraçando-a, apesar de saber que não devia.
— Se eu o quê? — Os dedos abriram-se sobre os quadris de Gina, puxando-a um pouco mais para junto de si. Ele viu a confusão em seus olhos; a reação dela atraía-o ainda mais.
Ela se esquecera de tudo. Só conseguia olhá-lo, quase tonta pelas sensações que perpassavam por seu corpo. Involuntariamente, os dedos enroscaram-se na camisa dele. Deu-se conta de sua força, uma força implacável com um grande potencial para a violência. E o fato de isso excitá-la deixou-a sem fala.
— Você quer alguma coisa? — murmurou ele.
— O quê?
Ele pensou em beijá-la, em colar os lábios com força nos dela, em abraçá-la mais forte. Apreciaria o gosto, a paixão momentânea.
— Perguntei se você queria alguma coisa. — Lentamente, correu as mãos para cima, sob a suéter, chegando à cintura dela.
O choque do calor, a pressão dos dedos trouxeram-na de volta.
— Não. — E começou a afastar-se, descobrindo que estava rígida, e lutando contra um pânico crescente. Antes que conseguisse falar novamente, ele a soltara. Desapontamento. Aquela era uma reação estranha, pensou, no momento em que por pouco não fora queimada.
— Eu estava... — Respirou profundamente e esperou que os nervos em frangalhos se recuperassem. — Eu ia perguntar se você encontrou tudo que precisava.
Seus olhos não se afastaram dos dela.
— Parece que sim.
Ela apertou os lábios para umedecê-los.
— Ótimo. Tenho muito que fazer, portanto, vou deixá-lo trabalhar.
Ele segurou-lhe o braço antes que ela pudesse afastar-se. Talvez não fosse uma boa idéia, mas ele desejava tocá-la outra vez.
— Obrigado pelas toalhas.
— De nada.
Observou enquanto ela quase corria para fora, sabendo que seus nervos estavam tão abalados quanto os dele. Pensativamente pegou um cigarro. Não conseguia lembrar-se de nem uma vez em que estivera fora de seu equilíbrio tão facilmente. E, certamente, não por uma mulher que nada fizera além de olhar para ele. Ele sempre tivera o hábito de manter os pés bem colados ao chão.
Poderia ser vantajoso para ele aproximar-se dela, jogar com a reação que percebera que ela havia sentido. Ignorando uma onda de desgosto consigo mesmo, riscou um fósforo.
Tinha um trabalho a fazer. Não podia dar-se ao luxo de pensar em Gina Weasley como alguma coisa mais do que um meio para alcançar um fim.
Aspirou a fumaça, amaldiçoando a dor forte que sentiu no estômago.
**** Nota da autora:
Voltei!!!! Não ia agüentar de saudade desse meu mundinho do Universo Alternativo!!! Essa é fic é meio "quente" então já aviso logo pra quem não curte muito! Também é uma adaptação!
O capítulo tá gingante né?? Se tiver grande demais por favor me falem que o próximo vem menorzinho!!! Espero que gostem de verdade! Aguardo os coments/opiniões/reviews!!!!
Obrigada a todos que acompanharam "A imagem do amor"! Adorei a participação de vocês!!!
Beijocas e pipocas!!
*_Lya_Love
