Prólogo 1, Livro 1.
Matei mais uma gazela hoje.
Por mais vezes que o volte a fazer, nada me tira os remorsos de tirar mais uma vida. Este remorso diminuí quando me lembro que a razão pela qual o fiz foi involuntária, porque tenho de sobreviver. Mas de novo aumenta quando me corre nos olhos a dificuldade em sobreviver no meio selvagem, quando me lembro de como apenas mais uma gazela teve de crescer. Mas não posso perder tempo com reflexões morais.
É apenas importante marcar que foi graças a isso que finalmente me decidi, enquanto resistia ao instinto e me recusava a lamber as minhas garras, demasiado grandes, que ainda tinham sangue escorrendo entre o pêlo, manchando-me o corpo e a mente. Ergui-me, mirando o pôr-do-sol fixamente, ouvindo o que ainda pingava do meu focinho para o chão. Passados alguns momentos, os quais passei a observar o vale, que lentamente se apagava em tons de ouro, virei-me e corri. Trotei pelas montanhas e planícies no que me pareceu serem horas quando na verdade podiam ter sido apenas breves momentos. A minha atenção vagueava novamente pela imensidão da história da qual era agora guardião. Abrandei quando senti um cheiro familiar há muito esquecido. Um cheiro distinto da comida, da poluição, das milhentas plantas que já havia farejado, no entanto um cheiro que mais ninguém reconhecia. Humanidade.
Tirei então proveito da camuflagem que me era providenciada pelo mesmo pêlo que me mantinha quente todas as noites passadas na solidão. Infiltrei-me no meio das ervas que me protegiam da vista tão alegremente como as barras de uma cela que me queriam impedir de voltar aquele mundo. Mas a cada som que ouvia, a cada voz que ressoava, o meu coração partia-se de novo como o rebentar de uma bolha, como o acordar de um sonho, uma história que não a minha. Consegui sorrateiramente entrar numa choupana que eu sabia estar desocupada, pois o meu faro, desumanamente apurado, apenas me trouxe a humidade e a secura de um lar vazio. Deitei o meu corpo maciço em cima de uma esteira, que já com certeza tinha abrigado o cansaço de muito trabalho, e parei. Parei tudo. O meu sentimento nostálgico, o meu terror de acordar, o meu pensamento, a minha alma.
Foi nesse preciso momento que a réstia de pessoa que ainda vivia tormentada e abafada dentro de mim veio ao de cima, mudando o meu corpo. A minha cauda listada diminuíu de tamanho até desaparecer no fim da coluna. Senti o formigueiro dormente na cara quando o focinho, desenhado desde o início apenas para matar, se afogou na minha verdadeira cara que renascia aos poucos. As patas que usara todo o caminho até aqui agora cresciam à medida que se convertiam nas pernas que dentro em pouco usaria para me levantar pela última vez. Todo o meu pêlo desaparecera, fazendo-me sentir o frio, experienciar o calor de umas roupas pela primeira vez em meses, anos. Mais uma vez, tirara o que era meu, ao levar comigo vestimentas e dinheiro, enquanto me aventurava num mundo que, por me ausentar dele, se me apresentava agora vividamente novo. O suor que leve e progressivamente me escorria pelo pescoço não se devia só ao meu esforço anterior, mas também ao duvidar da minha possibilidade de conseguir algo que me permitia redimir-me.
-Airport, please. – Foi tudo o que consegui dizer, quando me enfiei pelas portas de um taxí, fazendo por sentir o conforto que qualquer um estaria à espera quando se recosta nos estofos dos bancos, mas que, na verdade, apenas me deu mais um calafrio nas costas. Ao bater a porta, tive medo. Receava que esta se abrisse a qualquer momento para causar mais pesadelos.
O trânsito em Singapura, que de tradicional não tinha nada mais ainda assim chamado "típico", induzia-me em comparar a luta que o condutor fazia constantemente à de uma selva, mas para instantaneamente me aperceber de que, mesmo que tivesse sido torturado na natureza, o caos era avassalador e o meu ritmo, tão cuidadosamente sintonizado com o resto da cadeia alimentar, se perdia de novo. Inconscientemente, sentia-me a contar os minutos, senão os segundos. Cada uma destas parcelas de tempo me estava limitada. Havia que saber usá-las.
A minha cara, já mitigada pela pressa, não me concedeu o charme de outrora, mas ainda assim pude saber que em nove horas estaria em casa. Ou o que era a minha a casa.
Dentro da aeronave, o prodígio da tecnologia que a natureza havia há muito superado, dormi. Dormi como nunca dormira há meses.
