A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão.
Na realidade estou adiando o momento de escrever o discurso que terei que apresentar num dos dias mais sôfregos desde a morte de minha mãe aos dezesseis anos.
Fui escolhida para prestar as últimas homenagens ao amor da minha vida, mas ignoraram o fato de eu não ter me recuperado do choque e ainda não estar preparada para o triste adeus.
Imagens de nós dois invadiam minha mente como num filme, e por onde quer que eu fosse enxergava seu rosto, seu lindo sorriso, que me deixava sem ar.
E sua voz, ecoando docemente pelos meus ouvidos, como uma sinfonia viciante.
Vagando entre as ruas, já perto de casa, presa num pesadelo que parecia não ter fim, cheguei a este estabelecimento, precisava de algo que me mantesse desperta, e nas minhas atuais condições, não conseguiria preparar algo assim sozinha.
Foi assim que vim parar onde estou agora.
Olho para a até então intocada xícara de café e observo o meu reflexo no conteúdo escuro e de cheiro forte ali presentes.
Percebo que mesmo depois de ter conseguido dormir um pouco, os vestígios das noites mal dormidas e dos pesadelos ainda estavam bastante evidentes.
Minha face estava pálida e os olhos inchados e com enormes olheiras, devido às noites em claro e pelas lágrimas a pouco derramadas.
Havia dias que eu não tinha um encontro com o chuveiro e a escova de dentes.
Um estado deplorável, eu estava com a aparência de um cadáver.
E de fato, me sentia uma.
Ele partiu, e junto dele uma parte de mim se fora, se perdera com o mesmo.
Sobraram-me apenas às lembranças, acredito que apenas elas ainda me mantêm de pé.
Nós estávamos noivos, íamos casar em março.
Éramos felizes...
Até o fatídico dia em que no caminho de casa ele fora abordado por dois bandidos armados.
Acabara por reagir e o gatilho da arma do bandido acabou disparando, a bala do revolver ficou alojada entre as costelas e acabou perfurando seus pulmões.
Não havia ninguém por perto para socorrê-lo e infelizmente ele acabou falecendo.
Fui avisada algumas horas depois do ocorrido, entrei em choque, aquilo não podia ser real, não estava acontecendo, não com ele.
Ainda hoje não me recuperei totalmente do acontecido.
Já havia se passado alguns poucos dias desde o incidente e amanhã a tarde seria o enterro...
Absorta nas lembranças, nem percebi as lágrimas que caíam pelo meu rosto novamente.
Enxuguei-as e respirei fundo para logo após pegar a xícara de café e beber tudo num só gole.
Coloquei-a no balcão novamente e com a manga da camiseta limpei o restante do liquido de minha boca, acabei por deixar escapar um suspiro.
Olhei para o relógio e percebi que passei duas horas sentada junto ao balcão sem fazer nada, tinha estado tão compenetrada em meus pensamentos que o tempo passou voando onde apenas recordei o passado-recente.
Empurrei a cadeira com gentileza para poder levantar-me, peguei minha carteira e então depositei o dinheiro em cima do balcão.
Eu sabia que não poderia fugir para sempre, mais cedo ou mais tarde eu teria que aceitar.
Ao chegar em casa, já sabia o que teria de fazer: preparar o discurso...
Está uma droga, mas espero que alguém leia, quem sabe goste.
