1 Julho, 1978
Pus os pés em casa já sabendo pelo que esperar: caixotes e mais caixotes de mudança. Petunia só não tinha dado fim nas minhas coisas porque eu pedi expressamente para que ela as deixasse em paz. Afinal, a casa só deixaria de ser nossa a partir do dia 2 de Julho. Consegui a permissão dela para fazer minha mudança no dia seguinte e dormiria lá. A viagem toda no trem se baseou em olhar pela janela e imaginar como seria minha vida depois de sair de Hogwarts. Ainda mantinha alguma espécie de contato com Tuney depois da morte de papai, mas na maioria das vezes eram apenas trocas de cartas. Na última, além de me dizer tudo aquilo sobre a casa, fui comunicada de que no final do ano ela celebraria seu casamento e eu estaria convidada – com direito a um par. Talvez ela não quisesse ficar completamente sem família. Imagino que nem ela goste dos parentes ogros de Vernon.
Respirei fundo: estava tudo empoeirado. Petunia havia deixado a casa três meses atrás e eu estivera em Hogwarts. Não havia mais ninguém por lá. Talvez os fantasmas dos meus pais. Papai sempre falava de como ele sentia a presença de mamãe. Lembrei disso e senti uma brisa fria vinda de dentro da casa. Imaginação. Segui a brisa e me encontrei em uma cozinha vazia, com uma janela aberta. Estranhamente fazia frio naquela noite de Julho.
– Vamos, Lance – chamei o gato preto. Lancelot, meu companheiro para a vida toda. Era metade amasso, metade gato. Ele detestava qualquer um que não fosse eu. Era muito inteligente. Uma vez, veja só, ele me trouxe papel higiênico sem eu precisar gritar para minha mãe.
Ele miou roucamente e trouxe meus pertences para dentro. Nos instalamos na sala: eu já não tinha minha cama. Conjurei um colchão e aquela foi, provavelmente, a noite mais mal dormida da minha vida. Eu não tinha certeza de nada. Eu tinha: cinquenta mil libras no banco, dez galeões e seis sicles no bolso, um malão com roupas, um gato, e nenhum amigo na cidade (sim, eu decidi que moraria em Londres). Meu plano atual era alugar um quarto no Caldeirão Furado até achar algum studio que comportasse uma pessoa de estatura média e um gato. Tinha de ser barato porque eu não sabia como ficariam meus N.I. – outro aspecto preocupante que cabia ao meu futuro eu –, mesmo que eu não tivesse decidido o que fazer quando os recebesse.
2 Julho, 1978
Levantei sem ânimo. Não poderia comer ali. Bem que eu queria transfigurar alguma daquelas caixas em uma omelete. Pus uma regata branca, shorts e tênis, prendi o cabelo e comecei a arrastar o malão para fora de casa. Lancelot me seguiu pesadamente, como se sentisse o mesmo que eu ao deixar o lugar no qual eu passara toda minha vida. Aquela provavelmente seria minha última lembrança da casa: vazia, gelada no verão, lembrete de que eu não tinha mais ninguém. Meu queixo tremeu e eu senti o nariz esquentando. O primeiro soluço veio do nada. Sentei-me na soleira da porta da frente e, olhando para cima, chorei como não chorava desde a morte de papai.
Por que minha vida virou essa bagunça? Tudo estava começando a dar certo e de repente desandou. Vi-me com um único propósito na vida: esperar pelos N.I. . Eu não tinha família, não tinha amigos, não tinha namorado e não tinha planos. O pior de tudo é não ter planos sólidos. Você pode achar que tudo vai dar certo, mas não é bem assim. Tudo é diferente do que você planeja. Eu não planejava ter de vender a casa, e muito menos planejava virar órfã de pai e mãe.
Ainda com rosto contorcido e vermelho, virei-me de costas e arrastei o malão para o meio da rua. A vizinhança nunca fora muito agradável por ali. Aparatei em cima de uma mesa do Caldeirão Furado.
— Desculpe, Tom, sabe como é – eu disse, enxugando as lágrimas. –, eu não calculei muito bem, não venho aqui muitas vezes.
— Sem problemas, Srta. –ele disse, me ajudando a descer, enquanto alguns homens desinteressados davam risadas. Não havia muita gente no bar. –- Posso ajudá-la?
— Sim, por favor, você tem algum quarto sobrando? –- perguntei, sorrindo. Ele parecia preocupado. Talvez minha cara estivesse pior do que eu esperava. Ele assentiu e pegou meu malão, embora eu tivesse protestado.
Tom me deixou alojada em um quarto simples, mas mais do que perfeito para a minha situação. A estadia me custaria um galeão por dia. Pelo menos por dez dias eu tinha moradia. A cama não era ruim.
— Tom, mais uma coisinha, por favor?
— Sim, Srta.
— Você sabe de algum bruxo que conseguiu alugar algum apartamento trouxa sem comprovante de trabalho?
— Vários, Srta., na verdade eles sempre fazem a mesma coisa: forjam um documento.
Eu agradeci com a cabeça e ele se foi. Forjar documento? Não me parecia bom. Não, definitivamente não. Preferia ter de lidar durante vários dias com os duendes em Gringotts para transformar meu dinheiro em galeões do que forjar documentos. Até porque Tom conhecia todo tipo de bruxo, por mais esdrúxulo que fosse, e não tinha morais que se adequassem às minhas.
— Pelo menos decidi algo – falei, postando-me à frente do espelho. Meu reflexo piscou para mim, confiantemente, e eu sorri. Parecia que, talvez, as coisas não ficassem tão ruins assim.
7 de Julho, 1978
O dia amanheceu quente e eu continuei na cama, mesmo acordada. Tive a impressão de que tinha sonhado com hipogrifos e uma cachoeira, mas não podia ter certeza. Eu carregava uma sensação de não ter feito absolutamente nada durante aquela semana, exceto por visitar os túmulos de papai e mamãe, acompanhada de Lancelot. Amaldiçoei-me por ter esquecido de fechar completamente as cortinas. Infelizmente, para mim, meu gato era matutino, e terminou de abrir as cortinas. Quando eu me sentei, irritada, ele me lançou um olhar triunfante e foi até seu potinho de ração. Não o culpava por estar com fome, mas sim por ter me obrigado a levantar.
–- Bastardozinho – reclamei, enquanto saía debaixo das cobertas. Estava um tanto suada. Depositei a ração no potinho e fui tomar banho.
Saí revigorada e meu estômago já roncava. Esta sensação se foi quando avistei uma coruja marrom com uma carta presa à sua perna no parapeito da janela. De repente senti vontade de vomitar. Trêmula, comecei a andar em direção à coruja, peguei a carta e vi o brasão de Hogwarts. Abri, rasgando-a pelo meu tremor.
Prezada Srta. Evans,
Estão disponíveis os resultados dos Níveis Incrivelmente Exaustivos de Magia (N.I. ). Boa sorte.
Prof. McGonagall,
Diretora Substituta.
Oh, meu Deus. A outra folha estava fechada na minha mão.
Defesa Contra as Artes das Trevas O
Feitiços O
Transfiguração E
Poções O
Herbologia E
História da Magia O
Astronomia A
Aritmância O
Runas Antigas O
Não quis ler o resto da carta.
–- APROVADA! –- gritei, pulando. A toalha caiu. –- QUEM LIGA PRA ASTRONOMIA, LANCE?
Pulava, agora pelada, pelo quarto todo. Recebia olhares de desaprovação do gato e finalmente acalmei. Ria sozinha. Fazia tempo que não me sentia tão feliz. Senti-me como se tivesse feito algo certo pelo menos uma vez naquele verão desastroso. Olhei para o relógio: 7h34.
Desci, feliz, as escadas e fui tomar café na Florean Fortescue. Estava muito quente, mas nada me deixaria preguiçosa naquele dia. Eu estava vestindo uma blusinha, saia até os joelhos e sapatilha. Meu plano para o dia era, finalmente, retirar dinheiro da minha conta em Gringotts e ir até o Ministério para verificar opções de carreira. Se desse tempo, também gostaria muito de procurar um lugar para morar.
Depois de terminar de comer, tomei um chá e levantei-me, vitoriosa. Antes de dar algum passo, uma coruja pousou na minha mesa com uma carta maior que ela presa à perna.
Querida Lily,
Tudo bem com você? Acabei de receber meus N.I. (não que faça alguma diferença). Consegui uma vaga de estagiária no Profeta Diário ontem e precisava contar para alguém. Hoje foi meu primeiro dia de trabalho e já posso dizer que quero ser jornalista pelo resto da minha vida. Nunca me senti tão à vontade assim em algum lugar.
Não saí da casa dos meus pais por motivos óbvios: é muito mais simples ficar em casa. Aquele bonitinho do Hathaway me manda cartas diariamente e tenho que esconder de papai, já que ele é muito ciumento.
Mais uma coisa, Lily... Eu sei que brigamos, mas gostaria que esquecêssemos desse episódio. Faria bem a nós duas. Desculpe por ter dito todas aquelas coisas bobas. Eu sou uma boba.
Se precisar de alguma coisa, pode me escrever.
Abraços,
Mary MacDonald.
Irônico. Guardei a carta no bolso da saia e segui decidida para o Ministério. Eu não precisava de ninguém. Tinha me virado muito bem sozinha no momento mais crítico, e agora as coisas estavam melhorando. Eu não preciso de ninguém.
Aparatei ao lado da cabine telefônica, que era a entrada de visitantes para o Ministério. Entrei e disquei: seis, dois, quatro, quatro, dois.
–- Bom dia, identificação, por favor – uma voz feminina irrompeu dentro da cabine.
–- Ahn, Lily Evans – comecei. –- Vim me candidatar a empregos, eu acho.
–- Mantenha o crachá à vista sempre, Srta. Evans, e aproveite sua estadia no Ministério – ela continuou, enquanto eu pegava o crachá que fora cuspido pelo telefone. Tinha os dizeres: "Lily Evans, candidata a empregos."
Quando ela anunciou o Átrio, a porta se abriu e eu vi um salão enorme, lotado de pessoas, em sua maioria com expressões sérias, embora ouvisse algumas risadas aqui e lá. Andei vagarosamente, olhando para tudo. As estátuas, as pequenas corujas que voavam (e defecavam) para cá e para lá, o piso de madeira lisa e refinada, a enormidade que a fazia lembrar do Salão Principal de Hogwarts. De repente me senti completamente mal vestida. Os bruxos e bruxas vestiam tecidos finos, escuros e esvoaçantes. Minha saia era azul clara e meu cabelo era vermelho. Apesar disso, ninguém olhava para mim (agradeci por isso). Achei o balcão de informações e atravessei a multidão.
– Com licença, eu gostaria de saber onde ficam as informações sobre... – comecei.
– Os classificados ficam neste andar, sala à esquerda do elevador aqui de trás, PRÓXIMO!
Demorou um pouco para eu chegar à conclusão de que ele conseguira saber o que eu queria apenas por olhar os dizeres do meu crachá. Bem pensado, disse para quem quer que fosse o inventor desse tipo de identificação, Isso torna o trabalho do carinha, lá, muito mais fácil. Saí do caminho de uma senhora bem grisalha que aguardava atrás de mim na fila e segui em direção à tal sala.
Entrei e logo pensei: Nunca vi tantos murais juntos. Eles eram identificados por placas, como num supermercado. Encontrei a seção do Departamento de Leis e Execução da Magia. Não havia vagas, apenas anúncios da Academia de Aurores e programas de treino para certas carreiras. Isso também era bom. Eles ofereciam um salário modesto de duzentos galeões, além de horários flexíveis. Uma em particular me chamou atenção:
SUBDEPARTAMENTO ESTRATÉGICO LEGISLATIVO
Três vagas para recém-formados em N.I. .
Habilidades necessárias:
– Pensamento lógico desenvolvido;
– Interesse por legislação mágica;
– Oratória;
– Trabalho em equipe;
– Notas altas em Runas Antigas, Aritmancia, História da Magia, Defesa Contra as Artes das Trevas e Feitiços;
Etapas de candidatura:
1) Submeter este formulário até o dia 8/07/1978 na banca;
2) Seis selecionados serão avisados por correio coruja sobre a data da entrevista;
3) Os três selecionados assinarão os contratos.
Eu quis vibrar e dançar. Aquilo parecia perfeito. Preenchi o formulário e entreguei ao funcionário da banca de submissões. Olhei para o relógio: 12h40. Não me admirava que eu estivesse com tanta fome, mas precisava terminar os meus objetivos do dia. Ainda me faltava um lugar para morar. Achei a seção de alugueis e comecei a olhar. Todas aquelas casas me pareciam muito grandes, embora várias delas estivessem pregadas ao mural apenas por buscarem colegas de quarto. Eu não sabia se gostaria de morar com desconhecidos logo de cara.
Casa grande com seis quartos. Vaga feminina para dividir suíte com uma mulher. Valor...
Não.
Casa grande de oito quartos...
Não.
Apartamento pequeno de três quartos (todos suítes). Dividir com duas outras moças. Ok, esse parece interessante. Lugar pacato, ninguém nunca está em casa pois trabalhamos muito e gostamos de dormir até tarde no final de semana. São permitidos animais de estimação (com exceção de sapos). De preferência gatos, ratos, corujas (animais que não são gosmentos). Ta aí um anúncio peculiar. Valor: 100 galeões/mês e 50 galeões/mês de serviços (eletricidade, água e comida). Eletricidade? Ótimo, elas devem ter TV. Enviar coruja para Emmeline Vance ou Edith Abbey no seguinte endereço: Av. Beans, Londres, n°88, apto. 63.
Copiei o endereço e fui, feliz, direto ao corujal (também no átrio). Peguei a pena de uso comum e um pergaminho que trouxe comigo e comecei a escrever.
Caras Emmeline e Edith,
Escrevo aqui para me candidatar à vaga que vocês anunciaram nos murais do Ministério da Magia. Meu nome é Lily Evans, tenho dezoito anos e estou me candidatando ao programa de treino do Subdepartamento Estratégico Legislativo. Sou solteira e tenho um amasso mestiço chamado Lancelot. Ele é um amor. (Nessa parte eu parei para rir)
Ainda não tenho salário mas sou independente financeiramente por outros motivos. Vocês parecem legais. Eu também odeio gosma e enquanto eu ficar em casa sem arrumar trabalho, prometo limpar tudo.
Podemos marcar um horário para visitação?
Atenciosamente,
Lily Evans.
Li de novo e a carta me pareceu boa. Coloquei-a atada à perna da coruja cinza mais próxima e a lancei no ar. Olhei no relógio novamente: 13h35. Meu estômago roncava. Não queria comer no Ministério: eu só faria isso o dia em que eu trabalhasse lá. Era uma promessa. Resolvi sair de lá e procurar algum lugar para comer. Eu tinha um pouco de dinheiro trouxa, então não seria um problema. Voltei à superfície de Londres e respirei o ar puro. Parando pra pensar: todas aquelas janelas do Ministério eram enfeitiçadas. Senti-me em Hogwarts, quando eu ainda descobria os segredos do castelo diariamente. Afinal, minhas surpresas com o mundo mágico ainda não tinham terminado. Tive a sensação de que elas estavam apenas começando.
10 de Julho, 1978
Fui desperta por Lancelot, novamente. Ele tinha criado um estranho hábito de vir se esfregar em mim assim que acordasse. Acho que percebeu que eu levantava mais bem humorada quando desperta com carinho do que com sol na cara. E isso significava uma porção mais generosa de comida na tigela dele. A esperteza desse gato me assusta às vezes.
– Bom dia, Lance – disse, com voz rouca. Olhei para o relógio: 7h e alguns minutos. O sol já tinha saído havia algum tempo. Bati os olhos na carta aberta no criado-mudo. Sorri e a peguei. Reli pela nonagésima vez:
Cara Lily,
Gostamos muito da sua carta e especialmente da sua caligrafia. Te faz parecer divertida e confiante. Seu nome também me dá a impressão de asseamento e perfumes florais, por algum motivo. Queremos te conhecer. Emme e eu marcamos um almoço 11h, dia 10, no Kirk's, que é praticamente na frente do nosso prédio (você provavelmente já sabe o endereço). Se não puder, por favor comunique por carta.
Tudo de bom,
Edith.
Aquilo era bom. Só precisava passar uma boa impressão para ser escolhida. Edith parecia meio avoada. Elas me acham divertida. Pulei da cama e coloquei uma grande quantidade de comida no potinho do Lancelot. Em seguida, tomei um longo banho e, depois de uma hora pensando, decidi vestir um vestido azul de saia plissada até o joelho e sapatilhas pretas. Pela nona vez na minha vida, tomei café da manhã no Florean e Fortescue.
Andei pelo Beco Diagonal, olhando as lojas, enquanto a hora não chegava. Comecei a pensar em Mary. Eu a respondi um tanto imparcialmente na carta. Não sabia se deveria tê-la procurado ou não. Embora eu não devesse me sentir culpada, não posso negar que eu me sentia, sim, mesmo que fosse só um pouquinho. Tentei afastar o pensamento quando vi Sirius Black, sozinho, entrando na loja de quadribol.
Nem por um segundo pensei em chamá-lo. Não sabia se ele se lembraria de mim. Ele, Peter Pettigrew, Remus Lupin e James Potter eram um ano mais velhos que eu, embora os últimos dois devessem se lembrar de mim porque ambos trabalharam na monitoria de Hogwarts. Além disso também havia o pequeno fato de James Potter ter saído comigo no meu sexto ano. Foi apenas uma vez, afinal ele se formou e foi embora de Hogwarts. Acho que teríamos saído mais vezes, não fosse pela diferença de idade, eu gostava dele. Mas ele voltara a ser apenas Potter para mim depois de um tempo. Uma leve sensação de pânico se instalou no meu estômago: eu o veria no Ministério caso fosse aceita no programa de treino. Ele trabalhava no Departamento de Execução das Leis da Magia, segundo Mary, que ouvira do pai dela.
Ok, nada de ficar enjoada. Foi só uma vez e ele provavelmente nem se sentiria obrigado a falar oi. Já faz mais de um ano, enfiei na minha cabeça. Eu só precisava me preparar psicologicamente para rever várias pessoas da escola no Ministério. Por melhor que tenham sido meus primeiros anos em Hogwarts, agora não parecia a mesma coisa. Agora eu vivia no mundo real.
– Lil?
Pulei, assustada. Olhei para trás e uma mulher um pouco mais baixa que eu, com cabelos curtos e louros, feições e voz infantis. O grande sorriso destacava o rosa das bochechas da garota. Apesar de tudo, eu ainda fiquei muito feliz por vê-la.
– Mary! – disse, abraçando-a fortemente. – Senti sua falta.
– Eu também, Lily, me desculpe mesmo por ter dito aquelas coisas idiotas – ela começou. – Sabia muito bem que eram rumores, mas eu só queria colocar a culpa em alguém.
– Foi um ano difícil pra nós duas – respondi, suspirando. – Mas são águas passadas, me conta como vão as coisas.
– As pessoas no Profeta Diário são metade incríveis, metade horríveis – ela sussurrou, chamando-me para sentar em um banco. – Não faz nem uma semana que estou trabalhando e já sei fofocas de quase todo mundo.
– Fique esperta pra ninguém te passar a perna – disse. – Quem fala mal das pessoas para você, fala mal de você para as pessoas.
– Com certeza, mas e aí, já se candidatou pra alguma coisa?
– Sim, mas é um programa de treino, nada demais – respondi. – Desculpe, Mary, mas eu tenho que ir, marquei um almoço e não posso me atrasar.
– Podemos marcar algo? – ela perguntou esperançosa.
– Claro, mando uma coruja ainda essa semana – respondi, sorrindo o mais sinceramente que pude. Desaparatei.
A rua era movimentada e eu não tinha certeza se dormiria bem por lá. Aí lembrei que era bruxa. Ri sozinha e continuei a observar. Kirk's era um bistrô meio escuro, mas movimentado. O garçom parecia muito simpático e me indicou uma mesa próxima à porta. Sentei-me e pedi uma coca. Isso é realmente bom. Fazia muito tempo que eu não tomava bebidas trouxa. Refrigerante parecia uma coisa muito nojenta, mas... realmente boa.
– Lily Evans? – ouvi uma moça de cabelos castanhos e lustrosos perguntar ao garçom, com uma voz suave. – Certo, obrigada.
Ela abriu um sorriso para mim, andando na direção da minha mesa, enquanto eu levantava para cumprimentá-la. Ela era mais alta que eu e parecia ter a vida toda decidida. Uma mulher que planeja as coisas. Alguém que cuida da saúde e não bebe refrigerante.
– Prazer em conhecê-la – ela disse, elegantemente.
– O prazer é todo meu – respondi, de repente sentindo-me envergonhada pelo meu bobo vestidinho azul.
– Gin e tônica, por favor – ela disse, dirigindo-se ao garçom. Ok, ela vai beber álcool às onze horas da manhã. – Edith deve chegar em alguns minutos, ela ficou presa no trabalho.
– Mas hoje é domingo, ela trabalha nos domingos? – perguntei.
– Edith é editora junior da Little Red Books – ela disse, juntando as mãos. – Eles estão preparando uma nova tiragem de História da Magia e está dando um trabalho danado.
– Que importante! – disse, sentindo-me mais intimidada. – E você?
– Departamento de Acidentes e Catástrofes Mágicas, meu cargo oficial é "assistente" no papel, mas eu realmente trabalho na papelada dos processos chatos e insuportáveis de gente irresponsável que faz mágica no meio da rua, sem se importar com os trouxas – ela respondeu, um tanto desgostosa. – Veja só, outro dia eu tive de passar a noite no escritório porque um idiota resolveu flertar com umas garotas dando uma de ilusionista.
– Ilusionista?
– Sim, aqueles mágicos trouxas, só que ele realmente estava fazendo mágica – ela disse. – Às vezes acho que deveria existir uma matéria em Hogwarts sobre como se comportar no mundo mágico.
– Isso seria ótimo – concordei.
– Conte mais sobre você – ela pediu, sorrindo.
– Bom, tenho dezoito anos, acho que fui uma boa estudante e acho que só – disse. – E estou esperando uma carta do Ministério me dizendo se ganhei ou não a entrevista.
– Aposto que tudo vai dar certo – ela disse, ainda sorrindo. – Ah, ela chegou.
– Oi, Emme, oi, Lily! – ela disse. Edith era quase loira, quase ruiva. Muitas sardas. Do meu tamanho. Poderíamos ser primas. – Ah, outra ruiva.
– Prazer – eu disse, estendendo a mão. Ela a apertou e deu uma risadinha.
– Poderíamos ser da mesma família – ela disse, sentando-se e chamando o garçom. – O de sempre pra mim.
– Eu vou querer um número um – Emmeline falou. – Lily?
– Acho que um sete – disse.
– Ótimo.
– Desculpa a demora, pelo menos não volto pra lá amanhã – Edith sussurrou. – Adoro segunda-feira livre! Vou dormir o dia inteiro.
– Não sei o que passa pela sua cabeça – Emmeline começou. – Quer dizer, trabalha de Domingo pra não ter que trabalhar de segunda.
– Eu até que entendo – eu disse. – Eu também queria fazer duas pausas por semana: sábado e segunda.
– Ela me entende – Edith guinchou, apertando minhas bochechas. – Me sinto muito mais descansada.
– Falando em descansar, hoje é meu dia de ficar à toa – Emmeline disse, mexendo no saleiro.
– Já lavei a louça hoje de madrugada – ela respondeu, dando de ombros e recebendo a comida do garçom.
– Você e seus estranhos hábitos de virar a madrugada.
– Não são estranhos, eu só estudo pra caramba – respondeu. – Ser editora não é um caminho fácil.
– Falando nisso, Lily, a gente queria te emprestar umas literaturas sobre legislação que a Edith guarda lá em casa, sem motivo algum.
– Ótimo, obrigada mesmo – respondi. As duas pareciam bem familiarizadas uma com a outra. Eu já me sentia confortável e elas me divertiam muito. Eu e Emmeline recebemos nossos pratos e começamos a comer. Alguns minutos se passaram com as duas conversando e divagando. Eu ria muito e minhas perspectivas para a semana, para o mês e talvez até para a vida, estavam melhorando exponencialmente. Havia muito tempo que não ria daquela forma, quanto mais me sentir à vontade. E foi aí que o assunto mudou.
– Lily, vou te perguntar uma coisa e espero que não fique muito ofendida ou na defensiva, e por favor, me chame de Emme.
– Ok, Emme, pode perguntar.
– Como foi sair com James Potter?
– Quê! – eu engasguei. – Ah, eu... Saí... – meu estômago estava lutando contra vários pássaros que o bicavam vorazmente. – Ahn, isso foi há mais de um ano – foi tudo o que consegui dizer sem gaguejar.
– Emme, que pergunta é essa?! – exclamou Edith. – Mas, sério, Lily, ele é muito bom.
– É a promessa do Quartel dos Aurores – Emmelinde completou. – Ele deve ser muito interessante.
– Ele era legal – respondi. – E vocês, namoram?
– Não uma a outra, se é o que você quer saber – Edith disse, rindo. – Mesmo que pareça um pouquinho.
– Edith está noiva faz um mês – Emmeline respondeu, cortando a amiga.
– E quem é o sortudo?
– Gilbert Hawthorne, ele é australiano, veio para a Escócia para lidar com um dragão foragido ano retrasado e nos conhecemos quando eu ainda trabalhava no Profeta Diário e fiz uma matéria sobre o caso.
– É um cara muito legal – a morena completou. Quantos anos será que elas tinham? Quer dizer, noiva, já trabalhou no Profeta no ano retrasado e eu não lembrava delas em Hogwarts. – E eu não tenho namorado desde a nossa formatura.
– Falando nisso, por que você está procurando uma casa tão cedo, Lily? Quando eu me formei, ainda fiquei um tempo na casa dos meus pais.
– Bom, hm, meus pais morreram – eu respondi, fazendo o máximo possível para evitar reações de pena. O que, é claro, não foi possível. – Não fiquem assim, eu já estou bem, só preciso de um lugar pra ficar. Além disso, eu tenho uma irmã.
– E por que não fica com ela?
– Bom, nós não nos damos muito bem... – disse, sentindo que não estava fazendo favores a mim mesma. – Mas isso não é nenhum problema pra mim. – finalizei, o que deixou todo mundo em silêncio por alguns segundos.
– Certo, então vamos acabar com esse climão e visitar o apartamento? – Edith perguntou, colocando dinheiro em cima da mesa. Fiz menção de pagar, mas ela não deixou. – Vamos, Lily, hoje eu pago, outro dia você paga, ok?
– Tudo bem.
Não demoramos mais do que dois minutos para alcançar o prédio. Tinha um elevador: eu raramente usava elevadores. Na verdade eu só usava durante visitas a shoppings e afins, o que não acontecia havia mais de três anos. Parecia minha primeira vez, o que era esquisito, já que eu era a nascida trouxa aqui. Havia mais três portas no nosso andar, e eu segurei minha respiração quando estava prestes a entrar.
A sala era pequena, mas confortável, com vários livros espalhados aqui e ali. Depois a cozinha, branca, desarrumada, mas limpa. Uma pequena mesa ainda tinha restos do café da manhã (provavelmente de Emme). Aí meu quarto. Quase meu quarto. Não tinha nada, mas eu já podia dizer que era pequeno. E mesmo assim era perfeito.
– Bem vinda ao seu quarto, se quiser – Emme enunciou, abrindo os braços. – E nós podemos te ajudar a comprar a mobília.
– Então estou dentro? – perguntei, juntando as mãos. – Realmente estou dentro?
– Sim, nós só precisávamos ver sua reação em relação aos objetos trouxas aqui – Edith começou, parecendo um tanto temerosa. – Sabe como é, com essa caça aos nascidos-trouxa que anda acontecendo ultimamente.
– Bom, não se preocupem, eu sou nascida-trouxa – respondi, orgulhosa. – E tenho vários vinis para ouvirmos juntas.
– Excelente! – disse Edith. – Meu pai é trouxa e Emme é considerada traidora do próprio sangue na comunidade puro-sangue, então vamos nos dar muito bem.
– Vamos começar já! – disse, Emme, pegando a minha mão, e depois o braço de Edith.
Voltamos para casa assim que eu escolhi uma cama, uma cômoda, um espelho pequeno e dois criados-mudos. Resolvi não gastar muito para estar segura caso não fosse aprovada no programa, então deixaria a decoração para depois. A esta altura eu já estava muito cansada. O relógio mostrava 16h. Fui até o Caldeirão Furado para pagar minha última diária, agradeci a todos, peguei minhas coisas (incluindo Lancelot) e fui para a minha nova casa.
Os móveis só chegariam no dia seguinte, e por isso eu dormiria no sofá. Depois de tomar banho, postar-me à frente da TV, ficar confortável e cochilar por alguns instantes, eu escutei um ruído na janela. Acordei meio zonza, demorei para ver que era uma coruja. Meu estômago se embrulhou. Saí debaixo das cobertas e andei vagarosamente até a janela. Abri, peguei a carta.
Prezada Srta. Evans,
A srta. foi selecionada, dentre dez candidatos, para a entrevista que tomará lugar no dia dezesseis de julho (15/07/1978) às 14h. Serão necessárias vestes bruxas. A entrevista durará, no mínimo, duas horas.
Atenciosamente,
Amelia Bones
Subsecretária Sênior do Departamento de Execução das Leis da Magia.
18 de Julho, 1978
PRIMEIRO DIA DE TRABALHO, PRIMEIRO DIA DE TRABALHO!
Estava atrasada. Merda, merda, merda. Saí correndo do apartamento, esqueci que não tinha colocado sapatos, voltei para dentro, coloquei os sapatos, saí correndo do apartamento.
Aparatei no Átrio, completamente nervosa. Aquele provavelmente seria o primeiro dia de muitos. Eu vestia um vestido azul escuro de veludo, mangas curtas e saia na altura dos joelhos, sapatos altos de boneca, uma capa negra e cabelo em coque baixo. Assim que decidiram me contratar me deram uma folha com meus horários e material que devia trazer ao Ministério:
Segunda-feira: 14h-18h~Legislação Mágica
Terça-feira:14h-16h~Comunicação Mágica: Redação, Oralidade e Leitura
Quarta-feira: 14-15h~Feitiços Defensivos
Quinta-feira: 18h-20h~Tribunais
Nos horários livres de aulas, os senhores atenderão aos chamados de Amelia Bones, Subsecretária Sênior do Chefe do departamento.
Materiais necessários: vestes bruxas, tinta e pergaminho para uso próprio e varinha.
Aquilo tudo me parecia um sonho, exceto pelas vestes bruxas. Eu não tinha nada bruxo. Saí correndo para comprar algumas roupas no final de semana. Foi uma experiência agradável, eu nunca havia feito compras tão livremente. Acho que todo mundo deveria poder fazer isso um dia.
O clima era agradável dentro do Ministério. Fui até o elevador e dei bom dia aos presentes. O número dois já estava pressionado no painel, então apenas aguardei. Várias pessoas saíram até estacionarmos no nível dois, onde eu e mais duas pessoas saímos. Encontrei meus colegas do programa parados em frente da porta de Amelia Bones, que, pelo visto, ainda não chegara. Acenei para os dois (Grant, muito alto, cabelos castanhos e Brody, um pouco mais alto do que eu e negro), que me devolveram um rápido sorriso, extinguido pela aparição de uma mulher imponente, ruiva e não muito mais velha do que nós.
– Bom dia, Evans, Grant e Brody, por favor, entrem – disse ela, abrindo a porta. – Sentem-se.
Os três sentamos nas cadeiras à frente de sua mesa.
– É um prazer conhecê-los – ela começou, distribuindo copos e despejando vinho. Nós hesitamos, mas bebemos. – Deixe-me introduzir um pouco do que é este programa – ela disse, bebericando o próprio copo. – Primeiramente, os aurores vão tentar colocar nas suas cabeças que vocês não são hardcore. Isso é uma mentira. Não é porque vocês estão dentro de uma sala, com os papeis, que são menos hardcore. Na verdade, este é um trabalho extremamente divertido. Você faz decisões que afetam diretamente todo o Ministério, participa das decisões de estratégia do Quartel dos Aurores, e eles não podem fazer nada sem a sua permissão. Claro que antes disso acontecer serão necessários alguns anos de prática. Enquanto isso vocês serão apenas meus capachos.
Engoli seco e senti que meus companheiros estavam inquietos.
– Apesar de tudo eu sou muito legal, então ainda essa semana os levarei a uma sessão do tribunal – ela disse. – Estas são suas vestes oficiais, só precisam usá-las na corte. Hoje só preciso que vocês revisem esta pasta para mim (ela entregou a pasta para nós) e grifem os parágrafos que contenham a palavra "depoimento", entendido? Dividam-se como acharem melhor, preciso tomar café. Ah, preciso disso até meio dia.
Com isso ela bateu a porta e nos deixou no silêncio. A pasta era gigantesca. Pelas minhas contas, continha umas mil páginas. Aquilo levaria toda a manhã. Olhei para o relógio.
– Oito e quinze – disse, estendendo a mão para a pasta, segura nas mãos de Grant. – um terço pra cada, pode ser?
– Certo – ele disse, dividindo a pasta em três partes e passando uma para cada um. Debruçamo-nos sobre a mesa e começamos a trabalhar.
– Eu não vi vocês em Hogwarts – disse, grifando um parágrafo.
– Eu sou americano – respondeu Brody. Bem que eu notei um sotaque diferente.
– E eu terminei Hogwarts há uns quatro anos, decidi mudar de carreira – disse Grant. – Eu lembro de você, era a única ruiva da escola.
– Sim, mas isso foi até ano retrasado, uma menina até mais ruiva do que eu entrou para a escola – respondi, sorrindo. – Como são os Estados Unidos?
– Uma bagunça, vim para cá porque tem uma perseguição trouxa de negros – Brody disse, dando de ombros. – Muita gente morrendo. Prefiro ficar de fora disso, eu tenho família.
– Eles também são bruxos? – Grant perguntou.
– Os pequenos são, mas Linda é trouxa, foi realmente um choque quando ela ficou sabendo.
Todos rimos. Eu não fazia ideia do que acontecia nos Estados Unidos porque não assistia a noticiários havia muito tempo. A última coisa que eu escutei algo a respeito foi sobre a morte de um cara que chamava não-sei-o-que-King. Tenho quase certeza de que começava com M. Fiz uma nota mental para procurar sobre isso mais tarde.
As horas se passavam lentamente e eu descobri que Grant também era casado e tinha uma filha de dez meses. Senti-me extremamente nova. Eles eram bem serenos e nós nos dávamos muito bem. Desde que mudei para o novo apartamento eu nunca mais ouvi falar de política e situações de estresse no mundo bruxo – era tudo mágico, colorido e feliz quando se vivia com Emme e Edith. Pensando bem, as duas eram mais velhas do que eu. Será que minha idade mental é muito maior do que a das pessoas da minha idade? Eu não consigo fazer (ou manter, no caso de Mary) amizades saudáveis nas quais eu não me sentia intimidada? Talvez eu precise de um psicólogo. Será que existem psicólogos no St. Mungo's? Quer dizer, psicologia não funciona se você mente para o seu terapeuta. E eu teria de mentir sobre muita coisa caso frequentasse um consultório trouxa.
Pra falar a verdade, eu não poderia gastar dinheiro com isso nem se existissem psicólogos bruxos. Talvez eu devesse falar com o meu reflexo, pareceu funcionar muito bem no Caldeirão Furado.
Que estante cheia. Filosofia Bruxa: a busca pelo poder. Deve ser o maior livro que eu já vi na vida. Provavelmente custa mais do que meu aluguel. Mais do que vários alugueis. Não parece muito interessante, de qualquer maneira. Ok, foco.
Finalmente terminei minha parte e resolvi revisar. Ainda faltava uma hora para Bones voltar à sala e eu queria que meu trabalho fosse exemplar. Não deu tempo de chegar nem no final da primeira metade.
– Terminaram? Ótimo! – ela disse, com voz energética. – Agora podem ir almoçar e estejam na pequena sala no final do corredor a tempo da sua primeira aula.
Todos respondemos que sim, audivelmente, e seguimos para o almoço. Meu estômago roncava. Chegamos na cafeteria. Não havia muita gente por lá. Comemos conversando e eu fiquei sabendo de algumas coisas assustadoras.
– Vocês leram o Profeta Diário de hoje? – perguntou Brody, sério. Meneamos a cabeça. – Caroline Ferret foi encontrada morta dentro de casa.
– Já têm algum suspeito? – perguntei, assustada.
– Não dizem nada por aqui, mas vocês não escutaram o que os aurores disseram enquanto estávamos parados na porta da chefe?
– Na verdade, não, eu cheguei depois de vocês, lembra?
– Sim – ele respondeu, chocalhando a cabeça. – Mas eles disseram que ela era nascida-trouxa.
– E que tinha uma marca em cima da casa, no céu – continuou Grant, com sotaque arrastado.
– Não me parece muito bom – eu disse, enfiando o garfo na boca.
Fiquei tensa até o final do almoço. Os dois não sabiam que eu era nascida-trouxa, e talvez não teriam me contado caso soubessem. Mas é melhor se eu souber, tentei colocar na minha cabeça. Preciso tomar mais cuidado. Aquele era o primeiro ataque confirmado e noticiado pelo jornal. Antes de sair da escola eu já tinha ouvido falar dele. De Voldemort. Mas tudo o que sabíamos era que ele era perigoso. Nenhum professor tomou partido e comentou sobre isso, nem Dumbledore. Mas eu tinha a impressão de que ele queria ganhar o máximo tempo possível de ignorância sobre aquele nome. Uma vez ele disse em um discurso que o medo do nome só faz aumentar o medo da própria coisa. Não exatamente nessas palavras. Na verdade eu não lembro nem se foi ele quem disse isso. Mas acho que funciona pra essa situação.
Finalizado o almoço, voltamos para o nível dois e aguardamos na salinha. Era pequena e tinha uma mesa circular com algumas cadeiras em volta. Não tinha janelas e era iluminada por várias velas. Estava abarrotada de livros. Foi nesse dia que eu descobri minha alergia a ácaros e pó. Também foi nesse dia que criei uma grande dose de respeito pela Madame Pince, que conseguia manter a biblioteca limpinha e frequentável.
– Boa tarde – disse Bones, entrando de repente na sala. – A aula de hoje será escrever um trabalho sobre o código legislativo de Azkaban. O livro deve estar aqui em algum lugar. Quero que foquem nos dementadores. Existe uma lei em particular que regulamenta a participação dele como guardas na prisão. Quero uma crítica completa disso. Não me interessa se você é a favor ou contra, me interessa que vocês tenham uma opinião e conheçam bem a legislação. Isso é extremamente importante pois daqui uns meses nós visitaremos a prisão para colher depoimentos e eu escolherei um de vocês para fazê-lo. Quero os trabalhos prontos na minha mesa às dezoito horas.
Assim que ela saiu da sala nós corremos desesperados para as estantes. Não, não estava organizado em ordem alfabética. Grant achou o primeiro exemplar, eu o segundo e Brody o terceiro. Começamos a ler e escrever um rascunho simultaneamente. Era muito difícil. Aquele código fora escrito havia uns trezentos anos, o inglês era arcaico. Por que não havia mais praticidade nesses livros legislativos? Quer dizer, até parece que alguém decoraria aquelas leis e não precisava mais checar o livro de vez em quando. Para mim aquilo era impossível. O dia foi seguindo lentamente, embora parecesse que estávamos parados no tempo.
Terminamos o trabalho com as mãos latejando. A direita pela escrita, a esquerda por segurar o livro. Eu provavelmente teria de colocá-las no gelo. O expediente havia terminado.
– Boa noite e até amanhã! – disse Bones, feliz, com os pergaminhos nas mãos. – Durmam enquanto podem.
Aquela última frase me deixou apreensiva. Hardcore. Sim, hardcore foi a primeira coisa que se passou na minha cabeça. Tudo o que eu queria era um longo banho, comida rápida (aqui eu estava torcendo para haver algo pronto em casa) e minha cama nova. Seguimos todos juntos para o elevador.
– Que dia longo – reclamou Brody, suspirando. – Minha mão direita está travada, acho que terei de ir até o St. Mungo's.
– Pelo menos a sua é só a direita – eu disse, olhando para as minhas, pesarosa.
Ping! O elevador chegou. Levanto os olhos e encontro James Potter, parado na minha frente. Eu tinha que cumprimentá-lo. Potter? James? Do que eu o chamaria?
– Com licença, Evans – ele disse. O seu corpo roçou no meu quando ele saiu do elevador e meus sentidos se aguçaram. Ele não cheirava a perfume, como quando saímos pela primeira e única vez. Ele parecia um tanto suado, na verdade. E seu rosto tinha um corte recente. Ele não sorriu para mim. Ele me chamou pelo sobrenome.
Evans? Bom, isso resolvia tudo. O status do nosso relacionamento era, obviamente, de ex-colegas de escola. Nem isso. Nós não estudávamos na mesma série. Meu rosto ainda estava quente quando o elevador começou a subir. Grant e Brody começaram a rir baixinho.
– Que foi? – perguntei, incisiva.
– Ele te chutou, né? – Grant perguntou, ainda rindo. Eu abri a boca, indignada. – Bom, Evans, você não podia ter ficado mais vermelha.
– Pra sua informação, não, ele não me chutou – eu respondi, ainda indignada. – Nós saímos há muito tempo. E eu não estava vermelha.
Aquilo era uma mentira enorme. Obviamente eu estava vermelha. Minhas orelhas ainda queimavam e eu decidi começar a usar base e corretivo. Não daria para viver sem maquiagem trabalhando no mesmo andar de James Potter. Até eu acostumar com sua presença, levaria tempo. O elevador parou no Átrio e todos saíram.
– Boa noite – eu disse, mais calma. – Até amanhã.
Os dois responderam e desaparataram. Eu respirei fundo e os imitei. Cheguei em casa exausta. Lancelot parecia bravo por eu não ter lhe dado atenção alguma durante o dia, mas passou depois de eu depositar uma grande quantidade de ração em seu pote. Fiz conforme prometido: tomei um longo banho e me deitei na cama. Lancelot me seguiu. Ainda eram oito horas da noite e eu já estava pronta para dormir. Fazer o quê. Era cansativo. Esse programa era cansativo, mas manteve minha mente longe das coisas horríveis da minha vida por tempo o suficiente para eu me sentir aliviada. Além disso, eu realmente gostei de saber sobre Azkaban. E não, eu não concordava com os dementadores na prisão. Nunca vira um de perto, mas tinha certeza de que eram criaturas horríveis. E ninguém merece um destino tão cruel quanto ter sua alma roubada. Ninguém merece viver sem felicidade alguma. A tristeza era muito triste.
