I. You Wouldn't Like Me – Tegan and Sara
Faziam duas semanas que Kyle tinha me "sequestrado", uma semana que Wanda tinha trocado de hospedeira e cinco dias desde a última vez que Kyle gritara comigo.
Eu mal conseguia enxergar de tanto que eu chorava. Não era algo que eu pudesse evitar, afinal, como alma, eu não estava acostumada a nenhum tipo de violência. E mesmo que Kyle ainda não tivesse partido para a violência física, as agressões verbais eram demais para mim.
- Você está mantendo a Jodi trancada aí, sua verme egoísta! - ele gritava, apontando para mim com tanta raiva que eu não pude evitar me encolher contra a parede mais um pouco. Humanos podem ser bem violentos, ainda mais um grande e descontrolado como Kyle O'Shea. Contudo, eu sabia que ele não encostaria um dedo em mim enquanto ele achasse que sua querida Jodi ainda vivia aqui comigo. Incrivelmente, saber que ele poderia me machucar se não fosse pela Jodi doía mais do que a agressão em si.
Entre soluços eu tentei dizer a ele, pela enésima vez, que não havia mais Jodi. Eu sempre procurava vestígios dela, pois eu estava disposta a trocar de corpo, assim como Wanda fizera, se me deixassem. Eu até iria para outro planeta, como era o plano inicial, se não me deixassem ficar; eu faria isso pela felicidade de Kyle. Não consigo entender bem porque, mas eu faria. O problema é que não havia mais Jodi e todo mundo sabia disso, até Kyle. Eles aguardaram por ela quando me tiraram do corpo, e ela não voltou. Ela nunca mais voltaria. Foi o próprio Kyle que pediu para me colocarem de volta no corpo de Jodi. Ele só não conseguia aceitar a perda de sua Jodi, e ao primeiro sinal de resposta por parte dela, ele explodia.
- Então como você sabia que eu gosto de dormir de conchinha? - ele corou um pouco ao fazer essa pergunta, mas toda a hostilidade ainda estava ali. Kyle era temperamental, irracional boa parte do tempo, e muito orgulhoso. Ele não conseguia entender, ou talvez apenas não quisesse entender, que eu não tinha acesso às memórias de Jodi do mesmo jeito que Wanda tinha às de Mel. Tudo que eu lembrava eram coisas retiradas dos sonhos que eu tinha com ele, os quais, creio eu, eram alimentados por algumas memórias de Jodi que ficavam escondidas em algum lugar do meu cérebro humano.
Desde que eu fui capturada, eu dormia com Kyle. Na verdade, eu só saía de seu lado quando um de nós precisávamos ir ao banheiro. Não era só para me proteger dos outros humanos da casa que por ventura se comportassem como ele outrora se comportara com Wanda. Ele queria estar com Jodi, ainda que Jodi não fosse realmente Jodi. Ele me chamava de Sunny e me respeitava – na maioria das vezes. Ele não tentava me beijar ou qualquer coisa mais afetuosa, como Ian e Jared costumavam fazer com Wanda e Mel. E além de estar agarrada a seu braço o tempo todo – Kyle era grande e forte, meu protetor -, nós dormíamos no mesmo quarto, lado a lado, geralmente de mãos dadas. Isso agradava aos dois lados, ainda que por motivos diferentes.
Nós estávamos deitados, nossas camas juntas como sempre, mãos entrelaçadas, e ele alisava meu braço, claramente pensando em Jodi, e não em mim. Mas era tão bom, suas mãos tão quentes e cuidadosas, e eu sentia calafrios, algo incomum para mim, mesmo estando em um corpo humano há algum tempo. Calafrios são reflexos de emoções humanas, e, bom, eu não sabia muito bem o que eram emoções de verdade até o dia em que Kyle me sequestrou. Ou resgatou, depende do ponto de vista. Então eu me aninhei nos braços dele – eu estava de costas para Kyle – deixando ele me abraçar, para que pudéssemos ficar em uma posição fetal, aparentemente chamado pelos humanos de "conchinha".
- O que você está fazendo? - Kyle perguntou, parecendo feliz com a minha atitude.
- Você gosta de dormir assim. - eu respondi, sem pensar. Como eu sabia disso? Acho que sonhei uma vez com essa cena. E então aconteceu. Ele me afastou, e se levantou abruptamente.
Eu me assustei com aquela reação e tentei identificar o que poderia ter causado aquilo. Nós, almas, enquanto vivíamos em um determinado planeta, aprendíamos tudo o que era necessário sobre ele e sobre a espécia que nos hospedaria. Eu gostava muito de estudar comportamentos, o que tinha me dado uma chance de ser uma Confortadora; se Kyle não tivesse me achado, em alguns meses eu estaria em treinamento para ser uma. Por isso eu sabia sobre os sentimentos humanos, sobre suas reações e comportamentos. Uma vez na caverna, eu vi que estudar as emoções é completamente diferente de vê-las em alguém ou senti-las você mesmo. Eu sabia o que era a raiva, o ódio, o medo, mas nunca tinha experimentado nenhuma dessas emoções. Exasperação, talvez, mas nada de ruim. Almas são alegres e bondosas, sempre altruístas. Eu também sabia o que era o amor, ou achava que sabia. O amor como os humanos o vivam era uma espécia de mito para as almas. Nosso amor era fraterno, e só. Por isso eu não conseguia entender o que eu sentia por Kyle. Wanda me alertara, em uma das poucas vezes que tivemos a chance de conversar a sós, que eu deveria ter cuidado com os sentimentos. Ela sabia dos sonhos, e me explicou como ela misturou os seus próprios sentimentos com os de Melanie, o que a levou a acreditar estar apaixonada por Jared. Ela estava, mas, segundo ela me disse, é como se ela tivesse sido conduzida a isso pelas memórias e pelas emoções de Melanie. Ela não queria que o mesmo acontecesse comigo. Eu não poderia tomar o lugar de Jodi na vida de Kyle, eu não poderia, nunca, ser Jodi para ele, mas eu poderia conseguir o meu próprio lugar e ser alguém, ser Sunlight Passing Through the Ice.
Uma das coisas que eu havia aprendido sobre o amor é que ele não se explica. Não há definição satisfatória, e nem sequer se deveria tentar defini-lo. Por isso eu vinha me perguntando nas últimas duas semanas o que me fazia tão dependente de Kyle, além de sua proteção. O que me fazia querer a sua felicidade e o seu bem acima de quase todo o resto, além da minha própria natureza de alma. Por que eu queria que Kyle fosse comigo como Ian era com Wanda?
- Jodi, eu sei que você está aí. Reaja! - Kyle gritava comigo, e me sacudia freneticamente, como se aquilo de alguma forma fosse fazer com que eu, a alma, saísse magicamente do corpo de Jodi. Eu estava com medo de verdade agora. Kyle estava fora de si. Acho que eu gritei, ou emiti um grunhido em meio aos soluços e as lágrimas, e isso provavelmente chamou a atenção de alguém no corredor. Ou talvez Kyle estivesse gritando mais alto do que eu pensava.
Alguém bateu na porta, o que tirou Kyle de seu transe. Primeiro ele notou suas mãos apertando meus ombros, em seguida meu rosto, afundado em lágrimas. Eu devia estar fazendo uma careta muito feia, porque ele me largou tão rapidamente e se levantou que eu engasguei de susto com um soluço.
- Kyle! - era Ian. Eu não tinha forças para responder e eu também não queria que ninguém me visse naquele estado, chorando para me derreter. Deus, por que os humanos vazam desse jeito? Quando soubessem da reação de Kyle, iriam censurá-lo e puni-lo, e só Deus sabe o que Jeb faria dessa vez. As ameaças dele contra Kyle ficavam cada vez piores.
- Kyle, se você não abrir essa porta agora, eu vou entrar. - Ian ameaçou. Não tínhamos trancas nas cavernas, apenas uma política de boa vizinhança, e eu sabia que Ian só não tinha entrado no quarto à força porque Wanda estava com ele, acalmando-o. Eu podia ouví-la.
Kyle praguejou algo baixinho, acho que finalmente se dando conta do que acabara de acontecer. Eu podia ver o arrependimento em seus olhos – como eu disse, eu era boa em ler sensações humanas, ainda mais depois de passar duas semanas apenas os observando, sem interagir muito, por causa do medo que eu ainda sentia.
Kyle abriu a porta, fechando a cara para o irmão. Ian o empurrou para poder entrar no quarto, Wanda em seu encalço, com suas mãos, como sempre, atadas as do namorado. Eu estava encolhida contra a parede, ainda na cama, abraçando meus joelhos, em posição fetal, porque aquilo era uma forma humana de se sentir menos desprotegido. O olhar preocupado de Ian me fez perceber o quão dramático aquilo tudo parecia – eu toda encolhida e indefesa – então eu me levantei.
Ian, ignorando os avisos do irmão de que tudo estava bem e que ele deveria deixá-lo em paz, aproximou-se de mim. Seus olhos, parecendo duas safiras, emanando preocupação e carinho, algo que também inundava os olhos de Kyle, vez ou outra, e me fazia sentir plena e segura.
- Está tudo bem, Sunny? Ele te machucou?
- O que? - Kyle perguntou, indignado. - Claro que não, seu idiota. Eu nunca machucaria ela!
Ian lançou um olhar furioso para o irmão, e depois, olhando ternamente para Wanda, disse: - Eu não tenho tanta certeza assim.
Eu não sabia da história inteira, pois Wanda se negava a me contar, mas só de ouvir conversas pelos corredores e na cozinha, eu já sabia que Kyle tinha tentando machucar Wanda, e teria feito bem pior, se Wanda e Mel não tivessem lutado juntas. E Ian, claro, vindo ajudá-las um pouco tardiamente, mas ainda em tempo.
Kyle ficou alguns tons mais rosado, acho que tanto de raiva, como de vergonha.
- Foi diferente. Eu não faria nada com a Jo... Sunny.
Eu não gostava quando Kyle trocava nossos nomes, mas eu não o culpava. Eu estava no corpo da mulher que ele amava, que ele conhecia há várias anos. Era compreensível que ele me chamasse de Jodi vez ou outra.
- Sunny? - Ian nunca hesitava ao dizer meu nome. Para ele, eu era sempre Sunny, desde o dia em que eu fui recolocada no corpo de Jodi.
- Eu estou bem. - eu o assegurei, tentando soar o mais confidente possível. - Nada aconteceu, só estávamos discutindo. Humanos fazem isso o tempo todo.
Claro que aquilo não se aplicava a Ian e Wanda. Jared e Mel brigavam vez ou outra, uma coisa normal para casais, pelo que eu ouvi dizer. Mas não Ian e Wanda. Eles podiam até discutir, mas sempre era porque um estava sendo altruísta demais, querendo sacrificar mais pelo outro, e tudo sempre acabava bem. Acho que parte disso era por causa de Wanda, afinal ela era uma alma, e nós somos pacifistas. Mas Ian também tinha passado por uma transformação tremenda nos últimos meses, por causa de Wanda.
- Eu acho melhor você mudar de quarto. Você pode ficar conosco por um tempo – Ian disse, procurando por uma resposta afirmativa nos olhos de Wanda. Eles não eram um casal como Melanie e Jared, que precisavam de sua privacidade. Não ainda. Wanda fez que sim e aproximou-se de mim, sorrindo. Ian continuou – Com certeza acharemos um quarto para você. Acho que Lily não se importaria. Ela gosta de você, Sunny.
- Não! - eu respondi, automaticamente. Mas houve eco à minha resposta. Kyle tinha dito o mesmo. Eu não queria ficar longe dele. Eu nem seri se eu ainda era capaz de dormir sem ele ao meu lado, segurando minha mão, o som da sua respiração como uma canção de ninar. - Eu... eu não quero atrapalhar ninguém, ou ser uma intrusa. Já basta eu invadindo o espaço de Kyle.
Ian e Wanda me olharam preocupados. Kyle prendia a respiração. Eu não conseguia saber se ele me queria ali ou não. Apesar dele também ter descordado da ideia de Ian, agora ele parecia hesitante, talvez arrependido. Eu estava sendo egoísta ao considerar apenas o meu desejo de ficar com ele. Talvez ele precisasse se afastar de mim para superar a Jodi.
- Mas eu vou conversar com Lily sobre isso amanhã, assim que a ver. - Eu acrescentei. Ian e Wanda pareciam mais felizes, mas não houve reação por parte de Kyle. Ele olhava para o chão, com as mãos nos bolsos, imóvel.
- Tem certeza que não quer vir dormir com a gente esta noite? - Wanda perguntou, encontrando meus olhos. Ela queria dizer mais, eu sabia disso. Ela queria me levar com ela, me proteger de Kyle, me alegrar.
Eu olhei para Kyle, em busca de uma resposta. Se ele não ia me dizer se me queria ali ou não, ele pelo menos poderia me dizer, ainda que sem palavras, que não iria ter outro ataque eu-não-vivo-sem-a-Jodi.
Kyle sorriu. Eu sabia o efeito que um sorriso, quando sincero, tinha nas pessoas. Nós, almas, sorríamos o tempo todo, e nós somos naturalmente sinceros, por isso acho que era uma das coisas que nos ajudava a estar em paz o tempo todo. Eu gostava muito dos sorrisos das crianças; eles irradiavam felicidade, bondade, vida, pureza. Um sorriso de uma criança feliz era iluminado. E era assim que Kyle sorria, como uma criança feliz. Em muitos aspectos Kyle me lembrava uma criança: as brincadeiras dele, seu espírito competitivo, sua impaciência, seu sorriso.
- Está tudo bem, gente. - Kyle disse aos dois, com aquele seu sorriso infantil, e tão perfeito que fez Wanda sorrir de volta. - Eu prometo me comportar. Pelo menos até amanhã de manhã, ok?
Ian ainda me olhou mais uma vez, para se certificar de que tudo estava bem. Estava tudo maravilhoso, com o Kyle sorrindo daquele jeito, mas eu apenas balancei minha cabeça, e sorri. Os dois se foram, fechando a porta atrás de si. Ian disse que estaria atento a qualquer barulho estranho antes de sair. O aviso era para o irmão, óbvio.
Um silêncio pesado tomou conta do quarto. O sorriso de Kyle estava se apagando. Ele estava a passos de distância, e eu queria tanto ir até ele e dizer que estava tudo bem. Eu dei um passo em frente, e Kyle, um para trás. Aquilo me pegou de surpresa, e levou apenas alguns segundos para que a realidade me atingisse. Ele não me queria por perto, não queria que eu o tocasse. Eu parei onde estava, incapaz de olhá-lo nos olhos. O que eu esperava que acontecesse? Que eu fosse até ele, e ele me abraçasse, e implorasse por meu perdão? De onde veio toda essa pretensão, Sunlight?
- Eu... eu vou ao banheiro. Pode ir dormir, Sunny. - ele disse, e então saiu.
Assistindo ele partir, eu percebi que havia mais um motivo que me prendia a Kyle. Eu queria salvá-lo. Salvá-lo de si mesmo, provavelmente, e de todo o resto do mundo que não o compreendia. Eu queria ajudar ele a não sofrer mais pela Jodi, queria ajudar ele a agir mais racionalmente, a compreender os outros, a ser alguém melhor – eu via a alma dele, e ela era tão linda e cheia de potencial como tantas outras que eu conhecia. E em troca, eu esperava que talvez ele pudesse me ensinar o que é o amor.
Eu tentei esperar acordada por Kyle. Fiquei deitada, de forma que se ele voltasse, ele achasse que eu estava dormindo e não se incomodasse. Mas o sono me venceu antes. Não sei que horas eram, mas eu acordei me sentindo leve, descansada... me sentindo bem. Foi aí que eu percebei as mãos. As mãos grandes e quentes de Kyle estavam ao redor da minha cintura, seus braços musculosos contra o meu corpo pequeno e tão frágil perto dele, seu rosto em meus cabelos. Ele respirava em meu pescoço, me fazendo sentir calafrios mais uma vez, e eu podia sentir seu peito subindo e descendo nas minhas costas. Estávamos dormindo de conchinha.
