Tempestade

O vento fustigava seu rosto, pequenas partículas penetravam nos seus olhos provocando dor e lágrimas enquanto ele se obrigava a continuar caminhando, apesar da dificuldade. Era preciso que se esforçasse, cada passo exigia resistência para não ser arremessado para trás. Precisava chegar, precisava alcançá-la antes, tinha que impedir que acontecesse.

Viu a casa suspensa no alto do furacão, ela dormia lá dentro e ele soube que ela estava bem, aquecida e aninhada em seus cobertores. Ele tinha que chegar antes do frio, ela não podia despertar ou perceberia tudo e o odiaria para sempre. Ele tinha que conseguir, se a alcançasse antes, todas as memórias ruins seriam apagadas, todos os acontecimentos se desvaneceriam como uma escultura de cinzas ao vento. Então poderiam recomeçar.

O furacão era negro e trespassado por raios verdes, e embora parecesse horrendo e ameaçador, era o que sustentava a casa. Ele não podia acabar ainda, se parasse ela cairia, ela se arrebentaria contra o chão.

Desejou voar e no instante seguinte viu-se erguido no ar. O vento já não impunha resistência, ao contrário, atraía-o para a casa, que tinha cortinas nas janelas e as luzes acesas, apesar de girar e girar no alto do furacão. Conseguiu agarrar-se ao batente da porta no exato instante em que viu a caveira surgindo no céu. Tentou gritar com todas as suas forças, mas sua voz não saiu. Tomou um forte impulso e lançou-se para dentro. Tudo estava fora do lugar, as paredes giravam e ele mal podia se manter de pé.

Apoiando-se no que encontrava pelo caminho, seguiu para o quarto onde ela dormia, com os cabelos ruivos que cheiravam a lírios espalhados pelo travesseiro, sorrindo feliz como quando era criança, quando ainda não tinha sido tocada pela impureza da vida. Esse era o momento, bastava alcançar a cama e toma-la em seus braços, então poderiam voar para longe.

Estava apenas a dois passos da cama e parou por um instante para contemplar o lindo quadro à sua frente. Ela respirava suavemente, seu peito desenhado sob o cobertor ia e vinha na cadência de uma canção de ninar, convidativo. Quantas vezes ele sonhara em pousar sua testa na turgidez daqueles seios e descansar das dores do mundo? Quantas vezes desejara estar aninhado entre aqueles braços brancos e bem torneados e sentir o calor emanado pela pele dela derretendo o iceberg que trazia dentro de si? Quantas vezes imaginara-se dentro dela, inaugurando sua condição de mulher, preenchendo-a com sua semente?

Adormecida, inocente, nua e linda, ela estava diante dele, ao alcance de suas mãos. Então por que parecia ao mesmo tempo inatingível? Sentiu dor, e demorou um pouco para compreender de onde vinha. Viu a marca em seu braço tornar-se nítida e então A Voz ecoou em seu cérebro. "Deixe-a, ela agora é minha".

Quis redarguir, ninguém nesse mundo, ou em qualquer outro, ele se lembrou a tempo, tinha mais direito a ela do que ele próprio, mas a ventania recomeçou nesse instante e ela foi erguida da cama, deixando para trás o calor e a proteção do cobertor. Ela girava lentamente suspensa no ar, com os cabelos ruivos revoando em todas as direções, linda em sua nudez e abandono. Ainda dormia.

Num esforço sobre-humano ele saltou para alcançá-la, mas nesse instante uma rajada verde e gélida a envolveu, e ele a viu contorcer-se no ar. Prendeu a respiração ao notar que os olhos esmeralda estavam muito abertos e cravados nele com fixidez. Ela despertara e agora estava perdida para ele, para sempre.

"Não!" Gritou tão forte, tão alto que o mundo inteiro devia ter estremecido ao som, e então mergulhou numa queda profunda e angustiante, que terminou com um violento baque no chão.

Acordou sobressaltado, trêmulo e sentindo as batidas do seu coração aceleradas. Estava na sala e percebeu, confuso, que tinha o rosto molhado de lágrimas. Levantou-se da poltrona onde adormecera, e depois de secar o rosto, abriu a porta e ganhou a rua. Fortes relâmpagos anunciavam a tempestade prestes a desabar. Ele percorreu a silenciosa e deserta Spinner's End em passos rápidos, e em minutos chegou ao seu destino. Continuou a caminhar até estar bem no meio do parque, e então parou.

Em meio à escuridão e aos gemidos do vento, caiu de joelhos sobre o solo. Era ali que ela estava, sob a terra. Não fora enterrada nesse lugar, mas ainda assim estava ali. Ela era tão forte, tão intensa, que seu corpo, ao decompor-se, aos poucos transmitia ao solo parte de sua essência. Ele se deitou no chão e deixou seus lábios tocarem a terra, num beijo amoroso e terno.

"Continue dormindo, não desperte, estou cuidando de tudo o que você deixou para trás. Está tudo bem, Lily. Apenas descanse e sonhe". Lentamente começou a ser tomado por uma sensação de torpor, e o acalanto repetido entre lágrimas acabou por aquietá-lo também.