Prólogo

Passei meses economizando para poder comprar um binóculo decente. Comprei. E então eu passava horas e horas observando os carros, as pessoas na rua, as casas, os prédios; enfim, tudo. Eu olhava tudo isso da varando do meu apartamento, confortavelmente sentado. Mas um dia enjoei da "paisagem" e resolvi ver da janela do meu quarto. Da varando eu podia ver o parque bem em frente ao meu prédio e do quarto já não dava mais para vê-lo. Mas eu podia ver cada janela de cada prédio ou casa. Passei dias observando as pessoas o que elas ficavam fazendo em suas casas. Algumas tinham uma rotina comum e não eram muito interessantes. Outras davam festas e, isso sim, era mais legal de se olhar.

Só que tudo começou quando uma vez, já anoitecendo, avistei uma casa um pouco mais longe, provavelmente já em outro bairro próximo, que podia ser visto por entre dois prédios grandes. Todas as casas lá eram iguais; dois andares, algumas janelas, um jardim pequeno. Mas aquela me interessou mais por causa da janela do segundo andar. Parecia ser um quarto. Com certeza era um quarto. Dava para ver um pedaço da cama, uma porta que parecia ser de guarda-roupa e uma mesa bem em frente á janela, com alguns livros e papéis em cima, além de alguns outros objetos que não consegui identificar, mas tudo muito arrumado.

De repente um garoto entrou no quarto. Não aparentava ter mais do que catorze anos e devia estar voltando da escola, porque usava uma calça social preta, sapatos pretos, uma camisa branca de botões e uma gravata vermelha que ele tirou assim que fechou a porta. Colocou a mochila em cima da cadeira em frente à mesa e começou a tirar a camisa, depois os sapatos e então a calça. Entrou numa porta mais pra dentro do quarto (que provavelmente era o banheiro) e saiu de lá alguns momentos depois com uma toalha enrolada na cintura e outra nas mãos que ele estava usando para enxugar os cabelos. Se aproximou um pouco mais da janela e puxou cortinas brancas. Esperei. Então ele abriu as cortinas de novo pouco tempo depois, já vestido. Se sentou na cadeira depois de tirar a mochila de lá e puxou alguns papéis que estavam na ponta da mesa pra mais perto de si. Amassou alguns e jogou no chão. Pegou um lápis e começou a fazer uns movimentos no papel que me fizeram pensar que era mais provável ele estar desenhando do que escrevendo. Minha teoria se confirmou quando ele levantou a folha a altura dos olhos e ela ficou meio "transparente" por causa da luz do quarto, e eu vi uns traços cinzas que com certeza eram um desenho, embora eu não pudesse distinguir o que era exatamente que estava desenhado. Ele pôs a folha de volta na mesa e recomeçou seu trabalho. Me levantei da minha cadeira e subi na minha própria mesa, me sentando lá e assim ficando mais perto - praticamente encostado - do vidro da janela. Impaciente, encostei de vez o binóculo no vidro, pouco me importando se ia arranhar ou não. Eu só não abria aquela janela por medo de cair os dois andares e quebrar o pescoço. De qualquer forma, continuei observando aquele garoto. Por causa da maior proximidade agora eu podia ver que seu cabelo era castanho claro. Ele também era pálido e não parecia muito feliz. Era só um garoto.

Passei mais ou menos um ano observando ele. Não sabia seu nome e não me atrevia a tentar ir na sua casa. Mas porque eu iria lá? Não sei. Ás vezes me dava vontade de vê-lo de perto. Só isso.

Em apenas um ano ele cresceu bastante. Todos os dias chegava da escola e tomava banho. Ás vezes descia logo após o banho, às vezes só mais tarde, depois de desenhar ou ler um pouco. Fazia as tarefas da escola quando subia ao quarto de novo. Vez ou outra ele sorria sozinho, talvez se lembrando de alguma coisa engraçada. Seus dentes eram grandes, formando um sorriso enorme, lindo. Muito raramente ele gargalhava. Era realmente incrível, mais incrível ainda que o sorriso. Um dia ele subiu ao quarto com alguns presentes nos braços e pôs em cima da mesa duas velas de aniversário, com as bases sujas de bolo. Eram um "1" e um "5". Ele fez quinze anos. Seu corpo ficou mais forte e ele aparentava estar mais alto. Os ombros largos e a cintura bem definida, mas não fina demais, deveriam ser por conta da natação; nos finais de semana ele saía de manhã e voltava à tarde, com uma bolsa de onde tirava óculos de natação, touca, essas coisas.

De vez em quando ele colocava flores num vasinho na mesa. Na maioria das vezes eram miosótis. Ele dormia cedo, acordava cedo. Fazia tudo certinho. Tudo sempre no mesmo horário, na mesma ordem, mudando uma coisinha aqui outra ali às vezes. Acordar-ir pra escola-voltar pra casa-tomar- banho-descer(provavelmente para jantar)-voltar ao quarto-desenhar-ler-dormir. Era basicamente isso. Recebia alguns telefonemas, que eram sempre rápidos. Só podiam ser amigos ou algo assim, porque se fosse uma namorada ele falaria com mais emoção e demoraria mais. Então deduzi que não tinha namorada.

Ele seguia uma rotina, como todas as pessoas que eu desisti de observar porque seguiam rotinas chatas. A dele não era diferente de nenhuma delas, mas algo me atraía ali. Eu não olhava mais nada por aquele binóculo, apenas ele. Agora ele era único.