Meu nome é Ryan. Eu não queria ser um meio- sangue. As coisas já eram complicadas demais para mim. Nunca tive muitos amigos, e as pessoas não gostam muito de mim. Pelo menos até eu completar 11 anos. Sempre fui estranho para as pessoas. Talvez por que eu posso mover coisas ou fazê-las desaparecer... Faço coisas inesperadas quando estou triste ou frustrado. Não preciso de monstro nenhum me seguindo para que os outros me achem ainda mais estranho. Mas mesmo em Hogwarts, não posso ser considerado comum. Hogwarts é a escola para gente como eu . Que faz coisas que os outros não fazem. Que podem usar varinhas, fazer poções, transfigurar coisas ou fazer feitiços. Uma escola para bruxos. Mas até lá, tenho algo a mais. Desde os 7 anos sou registrado como animago no ministério da magia. Esse não é um dom exatamente comum, mesmo entre bruxos. Minha mãe, de quem eu herdara o sangue mágico, tinha muito orgulho de dizer que seu filho pode se transformar em um morcego. Sim, em um morcego. Até em Hogwarts, eu era incomum.
Mas como se isso não bastasse, eu sou um meio-sangue. Como eu descobri isso? Às vezes, quando somos morcegos, escutamos coisas que não queremos ouvir.
Minha mãe estava na cozinha, falando com um cara que eu nunca tinha visto. Eu ainda descobriria que aquele estranho, era Hades.
Os dois conversavam sobre uma criança. Um menino. Eu. Antes, eu nunca havia pensado no por quê de meus cabelos serem tão negros, se os de minha mãe eram dourados. Por quê de eu ser tão pálido, tão tímido, se minha mãe era o oposto daquilo tudo. Mas aquele homem que falava com ela, tinha todas aquelas características. Ele se parecia comigo. Exceto pelos meus olhos incrivelmente azuis e brilhantes. Era aquilo o que eu tinha herdado de minha mãe.
O homem dizia que eu precisava fugir, ir para algum lugar seguro. Um lugar para pessoas como eu. Por um momento, pensei que até aquele homem, que eu estava tão certo de ser meu pai, também me via como uma aberração. Fiquei refletindo sobre isso durante alguns segundos sobre aquilo, até que ele completou, quase que em um sussurro "filhos de deuses gregos"
Tentei abafar um grito, o que não dá tão certo quando se é um morcego, isso foi suficiente para atrair atenção deles. Pensei que minha mãe me chamaria, mas ela voltou a olhar o cara que agora eu tinha certeza ser meu pai. O mesmo me encarou por alguns segundos, mas voltou a atenção para minha mãe e retomou a conversa.
Voei para uma árvore no quintal de casa, como sempre fazia como me sentia nervoso. Comecei a pensar em como minha vida se tornaria o inferno. Eu não sou o tipo de pessoa que se adapta fácil. Nem do tipo que tem muitos amigos. Silenciei meus pensamentos para tentar ouvir a conversa, novamente no corpo de menino.
– Ele é só um garoto! -ouvi minha mãe protestar - E ele tem uma vida, uma escola! Ele não pode ir para esse lugar!
– Clair... Por favor... Será só durante o verão, e ele precisa ficar protegido. Vamos Clair, por favor... - O homem, ou deus, eu não sei, parecia bem preocupado comigo, pois ele quase implorava.
– E se eles não o aceitarem lá? Ele é diferente, como eu... -minha mãe até podia estar decidida, porém, ela começava a pensar nas palavras dele.
–Clair, isso é para o seu bem também. Monstros virão atrás dele, ele não está seguro aqui! No acampamento ele terá proteção! - O homem continuava a argumentar, e não desistiria tão fácil.
– Hades, isso é mais difícil do que parece... Ele é o nosso único filho... Minha única parte de você. - Então era isso. Aquele homem era. Hades, o deus dos mortos, e era meu pai. E eu sabia, minha mãe iria ceder.
– Vamos Clair... Você o verá no natal, na páscoa... E eu cuidarei de você. Eu prometo. - Acho que o deus a abraçava, pois em sua voz havia um tom acolhedor.
– Você promete? - Minha mãe tinha esperança nas palavras de meu pai.
– Sim Clair, eu te prometo.
Minha mãe silenciou por um momento, e aceitou a proposta.
– Acho que será o melhor a fazer. Acho que eu aguento. - Falou minha mãe com a voz embargada.
– Me perdoe Clair... - Hades tinha a voz oscilante. Sentia pena de minha mãe.
– Vou falar com o garoto, está bem? - Mesmo entre soluços, minha mãe pronunciou essas palavras.
– Não Clair, deixe isso comigo. Eu o devo satisfação... - Pediu o deus.
Corri até minha árvore , para que eles não notassem que eu estava espiando, porém, creio que tenha sido inútil. Escalei a árvore o mais rápido que eu pude, e os assisti abrindo a porta da cozinha, que dava para o quintal. Hades pareceu querer que minha mãe ficasse dentro da casa, e ela fez a vontade do deus. Eu não tinha o menor desejo de falar com Hades, nem desejava ir ao tal acampamento e nem desejava ser um meio-sangue. Tudo se tornou turvo para mim. Eu me sentia explodindo, queimando, gritando, morrendo e enlouquecendo, mas ninguém podia notar. É como quando você sonha que está sendo torturado e você grita, mas não sai som algum e você se desespera.
Uma lagrima escorre em meu rosto, como costuma a acontecer quando me sinto assim. Sim, eu estava chorando.
Apesar de tudo, o que pareceu um século para mim, foram meros segundos na realidade, e meu pai se aproximava da árvore.
Eu continuava sem querer conversar e sem desejo de ir para onde quer que fosse. Aquele era o cara que abandonou a mim e a minha mãe quando precisávamos dele, e agora queria me tirar do mundo que eu conhecia.
O deus já estava aos pés de minha árvore, mas o que ele fez me surpreendeu. Simplesmente tomou a forma de um garoto de no máximo 15 anos.
O menino era ágil, como eu já esperava dele, apesar de ser magro e pálido como eu. Ele tinha o mesmo jeito de garoto tímido e inteligente que eu. Mas a agilidade com que ele subiu a árvore acabou me surpreendendo. O garoto agarrara um galho, e girando-se, agarrou outro com uma mão, e apoiando o pé na árvore, saltou para o galho onde eu estava, e lá se sentou, ao meu lado.
O menino olhou para mim durante um minuto inteiro, meio perplexo e sem graça. Ele comprimiu os lábios e passou a mão em seu queixo, de modo que ele abaixasse a cabeça. Ele até parecia ser um cara legal.
Mas eu ainda não o havia perdoado por me deixar sozinho. Ta que ele tem obrigações no Mundo inferior e tal, mas ele também tem obrigações com o filho. Depois de levantar a cabeça, ainda com os lábios comprimidos, ele começou a falar.
– Ryan, eu sei que é difícil para você, ter que ir embora assim com um cara que você nunca viu em toda a sua vida e que diz ser seu pai... Mas apesar de tudo é o que você tem que fazer. Mesmo ficando longe de toda a vida que você conhece, você tem que ir para o acampamento meio-sangue. Eu sei que você consegue fazer isso. -Ele falava como um amigo, não como um pai. Ele falava como um amigo que pedia desculpas.
– Como você sabia que eu estava ouvindo? - Eu não queria ter parecido tão frio quanto a proposta dele, e até quanto ao fato de ele se meu pai. Mas acabei sendo. -Pai. - Acrescentei.
Ele continuava sem graça e eu o havia deixado mais envergonhado ainda, porém, ele parecia ter se alegrado com a palavra "pai". Era bastante estranho falar com um garoto de 14 anos e chamá-lo de "pai".
– Conheço um morcego quando vejo um. Conheço um animago quando vejo um. Conheço meu filho quando o vejo.
Dessa vez fui eu quem ficou sem graça. Ele sabia quem eu era mesmo quando eu era um morcego, e eu nunca pensei nele em 12 anos inteiros. Na verdade já pensei, e nesses únicos momentos, eu o odiei. Eu queria perguntar se ele havia pensado em mim nesses 12 anos, mas acho que eu não deveria fazer isso.
–Sim, eu pensei. - Acho que deuses gregos podem ler mentes também. Eu fiquei mais sem jeito ainda. Então era aquele cara que eu odiei tanto todos esses anos? Um cara que agora só queria meu bem. Me senti realmente mal por tudo. Abaixei a cabeça, talvez assim ele pudesse ver que eu sinto muito.
– Ryan, não precisa se desculpar por nada. - O garoto de 14 anos sorria, o que foi reconfortante. Havia algo terno em seu sorriso.
– Está ficando frio, acho melhor agente entrar. - Meu pai desceu da árvore na mesma agilidade com que ele subiu. Eu não tenho a mesma agilidade dele, porém pude descer rápido.
Hades sorria para mim aos pés da árvore, e quando eu desci esperou que eu iniciasse uma conversa. Tinha muito a dizer, apesar de não saber como falar.
Eu continuava relutante quanto a idéia de ir para o tal acampamento meio-sangue, nunca tinha passado algo assim pela minha cabeça, eu não sabia como seria com os outros campistas, não sabia se eles iriam gostar de mim, ou me achar esquisito, na verdade estava com medo. As pessoas costumavam a não gostar muito de mim. Eu andava do lado de meu pai, pensando em uma infinidade de coisas que eu poderia ou não fazer no acampamento, mas acho que se dividisse esse pensamento, meu pai me acharia um doido.
– Morcego sim, varinha não, coruja... É a coruja pode ir, livros ficam, caldeirões também. Mais algo que queira saber? - Ainda não sei porque tento esconder os pensamentos de Hades.
– Não, é só isso mesmo. - Respondi, mais friamente do que eu pretendia.
Acho que o deus ia perdendo a animação quanto a mim, mas eu não estava exatamente animado para ir para o acampamento.
Andávamos para dentro de casa, num silencio quase profundo, que só era quebrado pelo som da nossa pesada respiração. Não me atrevia a dizer nenhuma palavra, e acho que o deus não queria conversar mais. Mas apesar de tudo, foi ele quem começou a falar. Já estávamos quase na porta quando ele me perguntou:
– Hum... Está animado para ir para o acampamento? - aparentemente ele já imaginava minha resposta. - Olha Ryan, sei que vai ser bem difícil para você no começo, mas as coisas vão dar certo.
– Não adianta tentar esconder nada de você, então não vou mentir que não estou animado, e que estou com medo. - É incrível, toda vez que eu falo com ele, sou totalmente seco e frio.
– Não precisa ter medo, nada de mal vai te acontecer. - Já entravamos em casa, e parecia que Hades havia recuperado sua vontade de conversar.
– Eu só não quero ficar sozinho. - Declarei friamente. -Não de novo. - Acrescentei.
– Você não vai ficar sozinho. Tem... Hum... Um detalhe em especial em você que me faz ter certeza disso. - Eu não tinha nem idéia de que detalhe era esse, e também não devia ser muito importante, ou ele não teria dito "detalhe".
Estávamos parados em frente a porta, quando o garoto de 14 anos voltou a se transformar em um homem de uns 25 anos pelo menos. Conservava o mesmo jeito tímido, porém no olhar ele carregava mais de mil anos de experiência. Ele abriu a porta cuidadosamente, e minha mãe estava sentada a mesa, aparentemente nos esperando. Ela olhou diretamente para Hades e seu olhar lhe perguntava: "ele te ouviu? Conseguiu falar com ele?". Em resposta, ele a lançou um olhar quase triste, que dizia algo como "Eu tentei, mas não fui exatamente bem sucedido". Eles basicamente começaram a conversar por olhares. Eu estava me cansando disso, porque eles não diziam nada? Eu estava cheio desses segredinhos, então acabei explodindo.
– Nada, nada que vocês disserem vai me convencer a ir para esse acampamento! Nada! Absolutamente nada! - Eu não deveria gritar com um deus, mas eu gritei. Gritei e subi as escadas correndo, e lagrimas começavam a escorrer pelo meu rosto, mas eu não ousava soluçar. Apenas correr. Aquela sensação, de gritar e não ser ouvido voltara. Quando cheguei ao meu quarto, bati a porta, e pulei em minha cama. Ela estava limpa, e minha mãe havia trocado o lenço colcha. Não há nada de mais no meu quarto. Apenas uma cama, um armário como qualquer outro e estantes. Cheias de livros. Mas nenhum desses detalhes me era interessante naquele momento. Apenas me joguei na cama e chorei. Chorei até as lagrimas acabarem. Não se sente melhor quando se chora, porém é inevitável. Quando se passa por muita coisa calado e sozinho, se aprende a não chorar. Mas isso é como uma barreira temporária. Ela também transborda. Eu me sentia transbordando naquele momento, e sinceramente, eu até queria que Hades ouvisse. Isso era como um protesto final. Mas foi pensando em Hades que me lembrei de minha mãe. Acho que magoei os sentimentos dela quando eu gritei e subi para meu quarto. Já era difícil o bastante para ela me deixar ir embora, e eu ainda tinha de piorar tudo. Voltei correndo pelas escadas, e ia com tudo que podia em direção a cozinha. Quando atravessei a porta, soltei de uma vez, embolando as palavras:
–Mãe me desculpe por tudo, eu vou ir para o acampamento e parar de causar problemas. Me desculpa por agora a pouco... - Eu pretendia continuar a frase, porém a cena que eu vi me fez sentir pior. Minha mãe chorava nos braços de Hades, e esse a abraçava, procurando palavras para consolá-la. Me senti culpado por aquilo. Eu a tinha feito chorar. E agora até mesmo Hades tinha lagrimas nos olhos, mas ele não ousava deixá-las cair. Eu havia deixado os dois tristes. Atraí a atenção deles, mesmo sem querer, e pude ver o rosto vermelho de minha mãe, ainda molhado, se desenterrando do corpo de Hades, e olhando para mim um tanto surpresa. Hades também mirou a mim por um momento, e o olhar dele me pedia para subir.
– Ah... Me perdoe... - Primeiro andei devagar, de costas, mas logo, com o auxilio do corrimão mudei de posição e voltei ao quarto.
Não pensei que ninguém fosse subir ao quarto, então me sentei sobre a cama, e fitei e porta. Não sei quanto tempo fiquei assim, porque, perdido em pensamentos, acabei sem pensar em nada. Me assustei quando a porta se abriu, foi muito de repente, e como eu estava distraído, acabei me assustando muito. Demorei a raciocinar quem havia aberto a porta, e me despertado do estado em que eu estava. Era minha mãe, seu rosto não estava mais vermelho, porém seus olhos brilhavam, como só brilham depois que se chora. Estavam maravilhosos, e ela me olhava com ternura. Depois de uma fração de segundo, ela se sentou ao meu lado e me abraçou. Lagrimas voltavam a lhe escorrer pelo rosto, e eu também começara a chorar silenciosamente.
– Mãe, me desculpe... Eu vou parar de te trazer tanto sofrimento, eu prometo. Eu vou ir com Hades e vou parar de reclamar, você vai ficar bem, tá? Não se esqueça... Ele vai cuidar de você. Ele prometeu. - Entre minhas lágrimas consegui falar isso, espero que tenha sido um bom consolo.
– Eu seu filho... Eu vou ficar bem... Eu me preocupo com você... Você vai ficar bem? - Eu realmente sabia que minha mãe estava sofrendo com tudo isso, mas ela ainda se preocupava comigo.
– Sim, eu vou ficar bem... Vai ficar tudo bem... Eu prometo. - Tomara que tudo ficasse mesmo bem, porque era insuportável vê-la sofrer daquela maneira sem poder fazer nada.
– Filho... -Mal pronunciou essa única palavra e minha mãe desabou em lágrimas. Nada pude fazer além de abraçá-la. - Você fala exatamente como seu pai... Até herdou o tom confortador dele... - Num intervalo de suas lágrimas minha mãe disse-me isso.
Eu não tinha notado que Hades estava encostado a porta, assistindo a cena, com uma cara triste, cara de quem sente muito por não fazer nada.
Na verdade, eu não queria que ele fizesse nada, mas isso era menos importante do que as outras coisas em que eu pensava. Mesmo eu não querendo que Hades fizesse algo, ele fez. Se aproximou de mim e de minha mãe e nos abraçou. Ele acariciava seus cabelos, e ele também tinha lágrimas nos olhos, mas acho que ele não as deixaria cair. Ficamos algum tempo naquela cena, ela era até reconfortante para mim. Na verdade, era como se dissemos tudo, um para os outros, só que silenciosamente. Talvez esse acampamento não fosse ser tão ruim assim. Talvez eu fizesse amigos, talvez parasse de ser considerado "o estranho". Talvez as coisas realmente melhorassem.
E foi assim que eu descobri que eu sou um meio-sangue.
